Eve Ottenberg – Caberá aos movimentos e revoluções socialistas das próximas décadas evitar a morte em larga escala decorrente das ameaças que hoje nos assombram: as mudanças climáticas, o fascismo e a guerra nuclear.
O mundo é gerido por uma oligarquia de bilionários, observou Bernie Sanders recentemente. Para tirar o poder dessa oligarquia, é necessário tomar parte de sua riqueza, através de mecanismos como tributação progressiva, uma renda máxima para todos os cidadãos, uma renda básica garantida para todos, sindicatos mais fortes, cortes no orçamento militar e fortalecimento do estado de bem-estar social, com ensino superior gratuito, perdão da dívida estudantil, Medicare (cobertura de saúde pública) para todos, entre outras medidas. Isso atenuaria a desigualdade? Ajudaria, como sugerem os professores canadenses e colaboradores do livro Socialist Register 2017, Leo Panitch e Bryan Palmer. Peter Edelman, ex-conselheiro de Robert Kennedy e Bill Clinton, também indica o potencial de algumas políticas de bem-estar social para erradicar a desigualdade em seu livro So Rich, So Poor. O professor de Stanford Walter Scheidel, no entanto, em seu recente livro The Great Leveler: Violence and the History of Inequality, expressa bem menos otimismo sobre o potencial dos programas sociais para acabar com as desigualdades. Scheidel argumenta que, ao longo de milhares de anos de história humana, a única coisa que já conseguiu equilibrar a riqueza de verdade, ou que levou mesmo à adoção em larga escala das políticas de bem-estar social, é a morte em larga escala. Em particular, ele aponta para a Peste Negra no final da Idade Média, vários estados violentamente derrotados da história, o terror, os expurgos e gulags de Stalin, a violência da revolução de Mao e as duas guerras mundiais. Scheidel defende que a “única” cura para a desigualdade – morte em larga escala – é pior do que a doença.
Mas a doença é absolutamente terrível, e há quem pense que o socialismo, e não a morte em massa, pode sim curá-la. Scheidel observa que no início do século 21 as 62 pessoas mais ricas no planeta possuem riqueza igual à da metade mais pobre da humanidade, isto é, mais de 3,5 bilhões de pessoas. E muitos desta metade mais pobre são completamente miseráveis. Scheidel especula que a criação de elites predadoras e ladras de riqueza pode ser natural de nossa espécie. Então, assim como Thomas Piketty em seus escritos sobre desigualdade no livro O Capital no século XXI, Scheidel observa que as guerras mundiais acabam combatendo a desigualdade, mas ele leva a observação ainda mais longe, em um pensamento pessimista que conclui implicitamente que, uma vez que só a morte em massa pode efetivamente criar igualdade, é preciso desistir da igualdade. (Scheidel, aliás, argumenta que muitas guerras só aumentam a desigualdade. Nem toda morte traz igualdade – apenas, diz ele, mortes em larga escala em circunstâncias muito específicas).
No entanto, como apontou o professor Bryan Palmer, da Universidade de Trent, em entrevista recente ao Truthout, a ideia de que a desigualdade só diminui efetivamente pela morte em larga escala “é pessimista e altamente preocupante – além de questionável”.
Na realidade, hoje, a próxima causa provável de morte em larga escala – as mudanças climáticas – será certamente um poderoso motor de desigualdade, uma vez que as populações mais pobres são as mais vulneráveis. O mundo já está enfrentando os horrores de epidemias (como a cólera no Iêmen) e calamidades decorrentes do clima, condições que só tendem a se intensificar. “É evidente que a desigualdade será reforçada por vários tipos de catástrofes”, disse Palmer, “uma vez que os realmente ricos podem, até certo ponto, se isolar”.
Segundo Scheidel, após a Peste Negra dizimar grande parte da população da Europa medieval, a escassez de mão-de-obra permitiu que os trabalhadores exigissem e recebessem salários mais altos. O colapso do Estado, a versão moderna de que vimos na Somália, também teve efeitos de equilíbrio de desigualdades, de acordo com Scheidel. No século 20, surgiram duas novas formas violentas de equalização da riqueza de elite: a “guerra total”, a saber, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, e as revoluções comunistas, particularmente na Rússia de Stalin e na China de Mao, embora muito do que tenha ocorrido nos dois casos pudesse ser chamado de contrarrevolução. “Mecanismos-chave de equalização, como a sindicalização”, escreve Scheidel, “intervenção pública para estabelecer salários privados e tributação altamente progressiva sobre renda e riqueza – tudo isso ganha proeminência em contextos de guerra mundial…” e no contexto de uma ameaça comunista.
No entanto, o sindicalismo já vinha crescendo décadas antes de a guerra mundial estourar, em 1914, bem como o socialismo. Eles podem ter ganhado terreno com as condições únicas de duas guerras e uma grande depressão, mas as precederam. “É preciso olhar as atividades anteriores de socialistas, sindicalistas e o sufrágio universal”, disse Leo Panitch, professor da Universidade de York, em entrevista recente ao Truthout. “Era preciso mobilizar a riqueza no contexto da luta de classes, e não é possível deixar isso de lado. Depois da Segunda Guerra, vê-se a conciliação de governos socialdemocratas e do Partido Democrata, que ajustam o estado de bem-estar social à acumulação de capital – e isso não podia ser mantido. Se os socialdemocratas tivessem avançado no controle da evasão de divisas – socialistas querem tomar o capital dos capitalistas para tomar o poder – poderiam ter sido bem sucedidos”.
Quanto ao capitalismo hoje, Panitch parafraseia o filósofo alemão Max Horkheimer, quando afirma que é impossível falar sobre o capitalismo sem falar do fascismo – pois um decorre do outro. Por exemplo, a repressão a manifestações locais e as políticas para refugiados são duas características extremamente brutais dos regimes capitalistas contemporâneos, das Filipinas de Duterte aos “campos de concentração” para imigrantes do xerife Joe Arpaio no Arizona, para citar apenas dois exemplos. Dada a inclinação do capitalismo ao controle total e sua prontidão em recorrer a métodos fascistas e do estado policial, Panitch vê “um futuro muito sangrento, como em Blade Runner”.
A tese da morte em larga escala de Scheidel é reforçada por importantes pesquisas sobre impostos e outros registros ao longo de milênios. Sua conclusão, de que há fortes razões para crer que a desigualdade vai aumentar em longo prazo e que há pouco a fazer para evitar isso, é, no entanto, enfraquecida por algumas de suas próprias observações. Segundo estimativa do próprio autor, a desigualdade não é inevitável. Scheidel reconhece que três mecanismos pacíficos de controle da desigualdade foram, de alguma forma, efetivos: reforma agrária, perdão de dívidas e sindicatos poderosos. Ele também destaca a “anomalia” da América Latina do início dos anos 2000, quando a desigualdade foi significativamente reduzida de forma pacífica. Esse desenvolvimento parece menos anômalo quando correlacionado com os ganhos de bem-estar social decorrentes da guinada à esquerda ocorrida na região.
Este pessimismo também é desmentido pela existência do Estado de Kerala, na Índia, com 35 milhões de pessoas, que desde 1957 elege governos comunistas. A taxa de alfabetização, segundo um recente artigo do Washington Post, passa de 95%. O comunismo eliminou pacientemente o sistema de castas e, em Kerala, um varredor de rua pode ter acesso a cirurgias complexas praticamente sem pagar nada. Com educação e saúde gratuitas, a marxista Kerala tem produzido há décadas excelentes médicos, engenheiros e cientistas. Muitos se mudam para os estados do Golfo Pérsico em busca de salários mais altos, mas muitos acabam voltando para Kerala. Este é apenas um exemplo que, junto com países que alcançaram características socialistas de forma pacífica, como a Bolívia e o Equador, enfraqueceria a conclusão derrotista de que devemos aceitar a desigualdade e abandonar a liberdade econômica, já que a única alternativa seria a morte em larga escala.
Nos EUA, há 103 milhões de pessoas pobres ou próximas da linha da pobreza – incluindo seis milhões sem nenhuma renda além dos food stamps (programa federal de ajuda suplementar à nutrição), como Peter Edelman contou alguns anos atrás no livro So Rich, So Poor (Tão rico, tão pobre, não traduzido em português). Enquanto isso, bilionários e empresas estão prestes a receber de presente a redução de impostos numa terrível reforma fiscal apresentada por um Congresso reacionário de maioria Republicana – e controlado pelos doadores de campanhas. A desigualdade explode nos EUA. Os benefícios de um modesto estado de bem-estar estão em frangalhos e os sindicatos estão enfraquecidos. Somente medidas realmente radicais – como um limite de renda e riqueza e uma renda mínima universal, como adotada na Finlândia, em Ontário, no Canadá e em muitas cidades europeias – podem frear e reverter nosso acelerado retrocesso. Como observou Edelman em seu livro, quatro milhões de americanos são beneficiados pelos programas sociais hoje. Antes dos cortes feitos por Bill Clinton (e que levaram Edelman a deixar o Governo Clinton), eram 14 milhões.
Dada a natureza violenta e predatória da elite, será o socialismo uma saída realista como força pacífica em direção à igualdade? “Devemos ser muito modestos sobre a probabilidade de alcançar o socialismo”, afirma Panitch. Ele, no entanto, acrescenta: “O socialismo pode ser irrealista, mas a história é imprevisível. As guerras e as revoluções não são escolhidas, são produzidas ao longo de décadas… As exigências bolcheviques em 1917 não eram o socialismo, mas pão, terra e paz. Não propunham derrubar o governo, então liberal, num primeiro momento”.
Para Palmer, “o socialismo é a única alternativa”. Ele argumenta que o reconhecimento de Scheidel de que as reformas progressistas foram muitas vezes adotadas em contextos de crise, especialmente de guerra, e para evitar a ameaça do comunismo, só prova que a criação do socialismo, com sua insistência em superar a desigualdade, pode ser mais fácil e menos traumática do que em situações limite. De acordo com Palmer, a globalização e a melhora da condição dos países em desenvolvimento, bem como a inovação tecnológica, significam que o socialismo hoje tem mais possibilidades do que em qualquer momento anterior. Ele argumenta que a economia global está cada vez mais aberta a um desenvolvimento racional e planejado. Mas lembra que as elites, é claro, resistirão. “A [Revolução Russa] foi, ainda assim, relativamente pacífica, e foi uma revolução popular, de massa”, que Palmer distingue claramente do “terror da casta no governo” sob Stalin.
Na América Latina, Panitch observou, “uma reação tenta barrar a maré de esquerda”. Porém, nenhum dos governos de esquerda atuais ou recentes na América Latina era realmente socialista. “Mesmo Chávez não fez movimentos fora da indústria do petróleo para tirar o capital da classe dominante venezuelana”, disse Panitch. “Ele não fez nada para construir uma economia mais equilibrada e mais orientada para o interior. O estado nunca foi reformado e permaneceu corrupto. O que aconteceu na Bolívia e no Equador não foi uma ruptura com o capitalismo”.
Enquanto isso, a desigualdade na China disparou. “A classe bilionária composta por membros do Partido Comunista”, observou Panitch, acrescentando que, mesmo que quisessem retornar ao socialismo, tornaram-se bilionários e não serão, portanto, a força que irá tomar suas próprias riquezas. Mas Panitch se pergunta se haveria, na China, elementos da esquerda que almejam o socialismo real. Ele observa que a classe trabalhadora chinesa realiza um número fenomenal de greves, cerca de 100 mil por ano, e se pergunta se isso poderia se desdobrar em uma espécie de movimento Solidarno%u05B%u007 de esquerda. Panitch observa que o que falta no livro de Piketty é a questão da desigualdade de poder no trabalho. Quem dá as ordens e quem recebe? “O socialismo visa, acima de tudo, a democratizar o local de trabalho, dando poder aos trabalhadores”, observou. “Se aumentou a igualdade após a Segunda Guerra, foi graças às subculturas operária, socialista e comunista, não por causa da guerra apenas”.
Como seria esse socialismo capaz de representar uma verdadeira alternativa à morte em larga escala e à desigualdade e à pobreza em massa? Os três programas pacíficos que Scheidel enxerga como tendo minimizado a desigualdade no passado funcionariam como pilares do socialismo – reforma agrária, perdão de dívidas e sindicalismo forte?
“Não, não bastam”, disse Panitch. “O socialismo teria que dar às finanças uma utilidade pública… Um socialismo viável precisaria construir novamente organizações socialistas de massa”.Palmer concorda que simplesmente implantar os três “programas pacíficos” não seria suficiente para transformar o capitalismo. Ele observa que “o problema com [autores] como Piketty e Scheidel é que eles abordam a desigualdade como uma ilha”, sem reconhecer que a desigualdade “está dentro do capitalismo”. Palmer também diz que a reforma agrária no Hemisfério Sul nunca bastará para mitigar a pobreza e a miséria. Para garantir o perdão da dívida, ele acredita ser necessário um desafio revolucionário à atual economia política mundial. Quanto aos sindicatos, pensa ser necessário um sindicalismo de luta de classe, contra a miséria para além das fronteiras. Palmer observa que o sindicalismo está sob ataque no mundo todo – o ataque é ainda mais forte onde os salários são mais baixos, as condições piores e a política da oposição mais severa – no Hemisfério Sul. Em resumo, diz Palmer, o socialismo exige novas organizações. Para ele, acabar com o capitalismo “é hoje um imperativo. As opções são o socialismo ou a barbárie… como Marx disse certa vez, falando da Índia, o progresso humano deve “deixar de parecer com este horrível ídolo pagão que somente quer beber o néctar no crânio de suas vítimas””.
Panitch concorda: “Dado o estado terrível e caótico do capitalismo no mundo, haverá, nas próximas décadas, movimentos e revoluções socialistas”. Caberá a esses movimentos e revoluções evitar a morte em larga escala decorrente das ameaças que hoje nos assombram: as mudanças climáticas, o fascismo e a guerra nuclear.
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