FERNANDA PERRIN – A emergência de novos tipos de relações de trabalho, em que limites de jornada são mais flexíveis e o rendimento, variável, é uma tendência “deletéria” para a população, avalia o sociólogo Ruy Braga, professor da Universidade de São Paulo.
Ele tem pesquisado o que chama de “precariado”: uma parcela crescente dos trabalhadores que se engaja em relações de trabalho precarizadas, como empregos de alta rotatividade e instabilidade. “A Rebeldia do Precariado” (2017) e “A Política do Precariado” (2012) são algumas obras do sociólogo.
Braga conversou com a Folha por telefone sobre as transformações pelas quais o mercado de trabalho passa e seus impactos sociais.
Folha – O aumento da flexibilidade do emprego parece gerar uma tensão entre ganho de autonomia e perda de estabilidade. Como isso deve afetar o trabalhador?
Ruy Braga – O código de trabalho é uma espécie de armistício entre as partes, porque você define ali os limites de consumo de uma mercadoria muito especial, que é o seu trabalho. Se você não tem esses limites, você vai ter uma situação explosiva no país. Do ponto de vista do trabalhador é bom ter limites, mas como ocorre agora com a nova CLT o que você vai ter vai ser esse modelo: o garçom entra às 7h, faz uma jornada na parte da manhã, fica a tarde sem fazer nada e depois volta à noite para terminar.
Como regular a chamada “gig economy”, ligada a plataformas online, que ao mesmo tempo em que gera empregos, não garante cobertura trabalhista?
O exemplo típico [da gig economy] é o Uber, é o que talvez melhor expresse essas novas tendências na economia de compartilhamento. Em Londres e São Francisco hoje existe uma legislação específica para regular o trabalho do motorista de Uber. A mesma discussão está sendo levada adiante em Nova York. São cidades de países desenvolvidos com economias bastante modernas, que já começaram a rever essa liberdade total que é você ter um trabalhador que é dependente de uma empresa multinacional do setor de tecnologia, mas que na aparência ele está trabalhando para si próprio. Isso é uma falácia, porque ele depende dessa empresa.
A questão é como proteger o trabalhador dessas tendências que são deletérias. De fato, a tecnologia permite que você trabalhe 24 horas por dia. Mas isso é aceitável socialmente, é desejável? Esse é o problema que vivemos. É claro que a tecnologia permite várias coisas, a questão é o que vamos fazer como sociedade com esses horizontes. Precisamos definir o que é aceitável ou não.
A reforma trabalhista buscou adaptar uma legislação dos anos 1940 às novas tendências econômicas. Ela foi bem sucedida?
É uma falácia dizer que a CLT é dos anos 1940. Um estudo muito minucioso feito pela USP demonstrou que dos mais de cem artigos alterados, nenhum deles datava da década de 1940. A CLT foi passando ao longo das décadas por constantes revisões e alterações. O que a reforma fez foi uma desestruturação daquilo que estava mais ou menos pacificado no direito com aumento da insegurança jurídica, porque eles alteraram tanto a CLT em itens tão importantes, que isso entra em contradição até com a Constituição. Isso vai criar uma série de disputas, o que não é bom para o trabalhador e nem para o empregador.
O que você chama de “precariado”, hoje ainda mais ou menos restrito à base da pirâmide do mercado de trabalho, tende a se alastrar para as outras ocupações?
Não tenho dúvida. Basta você ver a questão da ‘pejotização’. Até recentemente, você tinha duas grandes tendências de precarização: o trabalho subalterno, que ganha até 1,5 salário mínimo, exercido por famílias de baixa renda vivendo em bairros mais periféricos, e a outra é o PJ [pessoa jurídica], exercido por setores profissionais, pessoas que foram para a universidade, que falam várias línguas e são qualificadas. Hoje ele tende a se alastrar como nunca antes.
Essa multiplicação aponta para uma tendência de polarização nesses setores profissionais onde você encontra as classes médias: publicidade, jornalismo, arquitetura, professores universitários. Você também tem isso na área de saúde, como no caso de enfermeiros e psicólogos. A tendência de ‘pejotização’ afasta essas pessoas da aposentadoria, dos direitos trabalhistas e sociais em benefício de uma renda insegura e jornadas muito longas.
O sociólogo e professor da Universidade de São Paulo Ruy Braga
O aumento da insegurança e instabilidade do trabalhador é sustentável no médio e longo prazo?
Esse ataque à renda tem um impacto sobre o consumo das famílias. Isso é muito ruim. Um país com renda tão concentrada como o Brasil, entrar nessa trilha de aprofundamento da desigualdade com aumento ainda maior da concentração, é acabar com a possibilidade de crescimento da economia. Você perde um dos principais motores, que é o do consumo. Não acho isso sustentável.
O que você tem como perspectiva de futuro é um pouco o que já acontece no mercado de trabalho da África do Sul. Você tem aumento dessas oportunidades de emprego sem acesso a direitos, colapso do setor formal, afastamento dos direitos sociais, uma multiplicação de oportunidades ultraflexíveis de trabalho, com aumento da concentração de renda e violência social. O que a reforma aponta é um aumento da violência social, tendo em vista a desestruturação da renda e da proteção do trabalho.
Um problema é a chamada atomização dos trabalhadores, que desempenham suas funções à distância e não raro isoladamente. Como isso afeta o senso de coletividade e o movimento sindical?
A tendência é que haja um enfraquecimento do poder associativo dos sindicatos. E o sindicalismo brasileiro, que se notabilizou por assessorar o Estado para cumprir a CLT, esse sindicalismo burocrático está fadado a desaparecer, porque não tem mais o que fazer desse ponto de vista.
Ou ele se reinventa, o que passa por representar não apenas a sua base mas também todos os trabalhadores precários, ou vai ficar concentrado naqueles setores ultraprotegidos, como o funcionalismo público, ou vai desaparecer. Porque o setor privado vai passar por uma mudança estrutural, então se esse sindicalismo não se reinventar, organizado esses setores [precários], ele vai desaparecer.
A identidade coletiva já vinha sofrendo alterações muito significativas. Se você pegar o perfil de quem entrou no mercado de trabalho em 2002, 2003, é um perfil muito mais feminino, muito jovem, negro, pardo. Um trabalhador muito distante daquelas identidades mais sólidas do período anterior.
O que você tem hoje é um momento em que a identidade do trabalho não é muito clara, porque você tem um novo trabalhador por um lado, e por outro você tem uma situação de trabalho muito focada em serviços, em áreas que não eram tradicionalmente desenvolvidas do ponto de vista da representação sindical. Isso reproduz uma certa ‘desidentificação’ com setores mais tradicionais da classe trabalhadora.
Essa tendência geracional, de gênero e de raça, essa transformação ainda vai levar um tempo para decantar. Para que esses trabalhadores se identifiquem como trabalhadores, construam suas identidades coletivas, as suas formas de representação, que se aproximem dos sindicatos… Isso ainda vai levar um bom tempo. A identidade passada foi desconstruída e até agora não houve construção de nada muito sólido.
Em 2013, com os protestos, isso foi se tornando um pouco mais claro, para você ter uma identidade mais nítida desse precariado. Essa identidade vai passar por uma relação antagônica com o governo. Mas ainda é muito pouco, essas identidades não são nítidas, e isso é um problema para os sindicatos.
Você afirma que o mercado de trabalho brasileiro virou um “mecanismo de produção de ressentimentos sociais em massa”. Por quê?
O que se percebe é que até 2014 e 2015, quando ainda existia ganho líquido de empregos, havia a promessa de um emprego formal, mas na realidade era um emprego que pagava muito pouco, até 1,5 salário mínimo, localizado no setor de serviços, e que não oferecia uma perspectiva de progresso socio-ocupacional.
Existia a expectativa de geração de empregos formais, mas havia uma concentração muito aguda do emprego nessa fatia que paga muito mal, e ao mesmo tempo terceirizado, com taxas altas de rotatividade e acidentes de trabalho. Essa era a tendência de produção de frustração no mercado de trabalho. Essa realidade acabou transformando-se em ainda mais crítica e degradante com a crise do emprego em 2015 e 2016, com elevação muito significativa do desemprego e do subemprego.
Mas ainda que os salários fossem baixos, a formalização garantia a esses trabalhadores acesso a direitos trabalhistas, diferente do momento atual, em que cresce a informalidade. Nesse sentido, a frustração não seria pior agora?
É visível que mesmo que a remuneração não fosse maior, a entrada no mercado formal de trabalho garantiu acesso a direitos trabalhistas. Essa transição para a formalidade garantiu também oportunidade de cursar pelo menos uma faculdade particular, ainda que noturna e de baixa qualidade.
Com a crise do emprego, esse caminho é bloqueado, e você tem uma situação muito mais deletéria para os interesses dos trabalhador, que é exatamente o retorno da informalidade. Então mesmo que aquela frustração fosse ligada à remuneração, a condições muito duras do próprio processo de trabalho, ainda assim era uma frustração menos latente do que o retorno ao subemprego, uma realidade que havia sido superada.
Vemos um movimento de retomada do emprego, ainda que pela via da informalidade, ao mesmo tempo em que as empresas começam a implementar uma nova legislação trabalhista, aprovada no final do ano passado. Nesse cenário, como você vê o mercado de trabalho brasileiro em 2018?
Eu não acredito em uma retomada dos empregos em 2018. Imagino uma estagnação dos empregos formais, e aumento do subemprego. Isso porque não há uma recuperação econômica consistente, porque as empresas não estão contratando e o governo corta gastos e investimentos. As pessoas não são suficientemente ricas para ficar desempregadas muito tempo, então elas precisam fazer alguma atividade, o que as leva à informalidade, em situações de bico. Isso reduz estatística [de desemprego], mas não o lado dramático.
Aí você tem outra novidade que é o impacto da reforma trabalhista. Eu diria que a tendência, tendo em vista as características centrais, da flexibilização, com a afirmação do negociado sobre o legislado e multiplicação das formas atípicas de contratação, como o intermitente, é de aprofundamento do subemprego. Deve haver uma multiplicação do emprego intermitente, o que pode mascarar a realidade do avanço do subemprego no país.
Esses eixos da reforma apontam para uma desestruturação do mercado e compressão da renda do trabalhador. Eu prevejo uma concentração ainda maior da renda, com aumento da desigualdade e assim por diante.
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/01/1951942-precariado-tende-a-se-alastrar-no-brasil-como-nunca-antes-diz-sociologo.shtml
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