XICO SÁ – O personagem do Brasil Real da semana é Valdineide, que casou com Deoclides, no lixão vizinho ao Palácio do Planalto.
O amor é lindo, mas no lixo, contra todas as adversidades sociais, fica mais bonito ainda. Nosso personagem da semana, tio Nelson, não poderia ser outro: Valdineide Ferreira, 62 anos, conhecida como Baiana ou Baiana Joelma, por lembrar a cantora paraense. Ela se casou na quinta-feira, no trabalho, o Lixão da cidade Estrutural, em Brasília, a maior montanha de dejetos da América Latina, cerca de 40 milhões de toneladas.
A cerimônia, com o luxo da cara e o romantismo da coragem, aconteceu quinta-feira, a dois dias da data do fechamento da área do lixão, previsto para este sábado, 20 de janeiro. Valdineide não arredava o pé de casar no cenário onde ganhou o sustento nos últimos 40 anos. O noivo, Deoclides Nascimento, 38 anos, brasiliense, dez anos no mesmo ramo da amada, se orgulha de ter sido cantado pela mulher. Há pouco mais de um ano, Baiana se engraçou do rapaz, perguntou se era solteiro e, diante da afirmativa, pediu em namoro. O amor é lindo, com uma iniciativa feminina ou feminista, mais bonito ainda.
Com um tapete vermelho sobre o os dejetos, iniciativa de amigos, Valdineide e Deoclides firmaram o pacto amoroso. Com o fim das atividades no lixão irregular, o destino do casal é um galpão de reciclagem montado pelo governo do DF. Baiana espera que dê certo, apesar da desconfiança de boa parte dos 1.500 catadores da Estrutural.
Se o Brasil do momento é a pátria das incertezas, o país de Valdineide, a 18 km do Palácio do Planalto, é mais inseguro ainda. É necessário e exigência de lei substituir os depósitos clandestinos por aterros sanitários. O que costuma ocorrer, nesses casos, é o esquecimento dos trabalhadores dos lixões, depois de uma ajuda de emergência. Aí mora a desconfiança da Baiana e dos seus colegas.
Deoclides e Valdineide se casam em tenta improvisada no Lixão da Estrutural nesta quinta-feira
Mesmo encorajada pelo amor correspondido — antes havia sido abandonada quase no altar em uma promessa de casamento —, Valdineide tem milhões de toneladas de motivos para desconfiar de governo, qualquer governo. O amor é lindo, mas sem o sustento que vinha do lixo, só nos resta acreditar em uma transição honesta para os catadores do DF.
Existe o amor que fica e existe o amor que recicla, Valdineide. Disso você sabe muito mais que as pessoas dedicadas aos trabalhos tidos e havidos como limpinhos. Que o teu amor, danada, varra os lixões de todos os gabinetes de Brasília. O amor tudo pode. Varre, varre, varre, Valdineide; cata, cata, cata, honestíssimos catadores, cata todos os detritos federais, para lembrar aqui a velha banda de punk-rock planaltina dos anos 1980.
“Amor e lixo”, eis aqui o seu cronista mais citador do Oeste, a lembrar do livro homônimo do escritor Ivan Klíma, sobrevivente dos campos de concentração nazista e alvo de repressão e censura comunista na sua Tchecoslováquia de nascença. Depois de ter um livro rejeitado por todas as editoras do país, Ivan — ou seu alterego — se emprega como gari e conta as histórias dos lixões da existência.
Entre o amor que fica e o amor que recicla, Valdineide, que sejas feliz, muito feliz. Beijos do padrinho platônico.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/19/opinion/1516399665_810242.html?id_externo_rsoc=FB_CC
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