István Mészáros – No aniversário de István Mészáros, disponibilizamos o último artigo escrito por ele para a revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda.
O problema das determinações substantivas se refere a uma mudança fundamental de uma futura sociedade, que, para se tornar historicamente sustentável, precisa ter a igualdade substantiva como princípio norteador vital do seu metabolismo social. Da mesma forma, nem é preciso dizer que alguns outros conceitos reguladores (como o da democracia substantiva) não podem ser dissociados desse requisito, no sentido de que todos eles precisam ser concebidos e implementados no espírito da igualdade substantiva.
Para mim, é da maior importância política, tanto na teoria quanto na prática, contrastar nossa concepção do metabolismo social radicalmente diferente do futuro – sem o qual a humanidade não sobreviverá – com as formas existentes. É por isso que uso a expressão “substantivamente democrático” (e, é claro, “democracia substantiva”, cujas características definidoras fundamentais a tornam indissociável da “igualdade substantiva”) em contraste inclusive com a concepção de democracia, que já foi genuinamente liberal e que, sob nenhuma condição, poderia ser substantiva, mesmo que tenha conseguido ser mais ou menos substancial em um sentido político limitado. Nesse sentido limitado, a política pode ser mais ou menos “substancialmente democrática” sob um regime liberal, mas jamais poderá ser substantivamente democrática. No caso do contraste feito aqui por mim, não pode haver política “mais ou menos substantivamente democrática” ou “mais ou menos substantivamente igual”. Ou ela é substantivamente democrática e substantivamente igual ou não é. Em outras palavras, no último caso ela de modo algum é substantiva. Em contraposição, sob certas condições históricas é perfeitamente legítimo falar de relações políticas/sociais “mais ou menos substancialmente democráticas” ou “mais ou menos substancialmente iguais”.
É nesse sentido que usei a expressão “substantiva” em Para além do capital e que continuo a usá-la no livro que estou escrevendo sobre o Estado. De fato, já discuti esses problemas nos mesmos termos em meu livro sobre A teoria da alienação em Marx, que comecei a escrever no ano de 1959 em Londres. Isso porque a profunda preocupação que tenho com a substância crucial desse assunto na verdade remonta bem explicitamente ao outono de 1951, a uma conversa que tive com Lukács, na época em que o governo húngaro aumentou o preço dos itens vitais alimentação e vestuário em 300% e os salários em somente 18 a 21%.
Na ocasião discutimos essa medida na Associação Húngara de Escritores com Márton Horváth (que atacou Lukács com veemência no “debate Lukács” dos anos 1949-1951), membro do Politburo do Partido responsável pelos assuntos culturais/ideológicos. Alguns dos meus amigos escritores e colegas recitaram a resposta que Horváth queria ouvir, dizendo que o povo aprovou entusiasticamente a referida mudança. Eu me mantive em silêncio total, mas ele se voltou para mim e perguntou: “E você, camarada Mészáros, o que você ouviu?” Minha resposta foi esta: “Eu não sei que parte do país meus amigos visitaram, mas onde eu vivo, que é um distrito da classe trabalhadora, as pessoas estão praguejando e maldizendo o Partido e o governo”.
Como lhe era típico, ele respondeu: “Camarada Mészáros, espera-se que você os lidere, não que siga atrás deles!” Isso mostrou que ele sabia muito bem o que o povo em geral estava pensando; o que ele queria saber era como os escritores propagandeariam a decisão do Partido. Dada a grande diferença entre a receita dos trabalhadores e a dos principais escritores, os aumentos de preço dos alimentos e do vestuário não afetaram significativamente os escritores, mas atingiram duramente os trabalhadores. O aumento de 18 a 21% no salário dos escritores proporcionou-lhes uma compensação razoável, ao passo que os trabalhadores sofreram uma redução importante em sua necessidade principalmente de suprimentos essenciais de alimentação e vestuário como resultado de seus salários inadequados.
No dia seguinte, contei a Lukács essa experiência desconcertante na Associação de Escritores e ele riu comigo em um tom irônico e até sarcástico, sinalizando que desaprovava o comportamento de Horváth. E então ele explicou para mim que uma solução mais equitativa seria impossível, pois requereria somas elevadas com que a economia não conseguiria arcar. Na ocasião, a única coisa que consegui dizer foi: “Eu entendo, mas deve haver outra maneira”. Naquela altura da vida, eu não fazia a menor ideia do que poderia e deveria ser essa “outra maneira” e de como se poderia colocar em prática uma alternativa real às enormes desigualdades existentes. Eu só sabia que “deve haver outra maneira”. Naturalmente eu também sabia que as massas do povo estavam praguejando e maldizendo e que delas faziam parte meus camaradas de classe e companheiros de infância.
Precisei de algumas décadas de trabalho duro, em um período de fortes agitações e reviravoltas históricas, para entender as complexas ramificações históricas e sociais da diferença vital entre o que é chamado de “mais igualdade” (que significa nenhuma igualdade real) e o requisito historicamente irreprimível de igualdade substantiva.
As sociedades democráticas liberais frequentemente afirmam sua pretensão de legitimidade política insuperável proclamando sua intenção de instituir reformas políticas que promovam a “democracia representativa” e “mais igualdade” (junto com “taxação progressiva” etc.) e prometendo proteger a sociedade da “interferência excessiva do Estado”. Na realidade, poucas dessas pretensões e intenções resistem a um exame sério. Mas as sociedades do tipo soviéticas pós-revolucionárias tampouco lograram viver à altura dos princípios que haviam proclamado e acabaram retrocedendo ao mais desigual dos moldes capitalistas (ver Gorbachev etc.). Ao derrubar temporariamente o Estado capitalista, elas foram capazes de introduzir por certo tempo algumas reformas sociais limitadas, mas não a mudança estrutural necessária que surgiu no horizonte histórico na forma do desafio objetivo para a realização da igualdade substantiva.
Na verdade, a questão da igualdade substantiva está ligada a um certo número de assuntos vitais, que posso apenas mencionar sumariamente aqui. Ela diz respeito ao capital como tal (isto é, ao sistema do capital em sua totalidade) e não apenas ao capitalismo.
Igualmente, ela diz respeito ao Estado do sistema do capital como tal (isto é, ao Estado do capital em toda a sua variedade conhecida e factível), e não apenas ao Estado capitalista. Em outras palavras, trata-se da redefinição e reprodução permanente e historicamente viável do metabolismo social em sua totalidade, e não apenas da derrubada do domínio político estabelecido.
As ilusões associadas à noção de “democracia direta” etc. precisam ser avaliadas nessa linha, dentro do quadro de referência do modo radicalmente redefinido de reprodução societária. A razão disso é que as projeções irrealizáveis da “democracia direta” permanecem irrealizáveis precisamente por estarem presas na armadilha das limitações estruturais do domínio político vigente, enquanto o desafio histórico inevitável é a transformação radical de todos os níveis do metabolismo social de uma maneira não hierárquica. A política pode iniciar mudanças sociometabólicas importantes e de fato fundamentais, mas não pode constituir uma mudança por si só. Ela pode afetar de maneira significativa as condições da reprodução material, mas ela própria é dependente – inclusive quanto ao modo de articular suas demandas por uma mudança importante – da natureza de dado ou visado quadro de referência reprodutivo de ordem material (bem como, é claro, do seu correspondente cultural e ideológico).
Mudanças políticas estratégicas são sempre formuladas nos termos de tal quadro estrutural de ordem material – não importando que ele não esteja explicitado ou até tenha sido cinicamente camuflado –, o que ocorreu sob as condições da história passada, marcada pelos dados objetivos da determinação e da espoliação classistas. E quando se visa, em nosso tempo, a uma tomada de decisão globalmente política de cunho socialista para o futuro, esta precisa deixar claro seus próprios termos práticos de referência em conformidade com o quadro de referência reprodutivo de ordem material visado para a nova sociedade. O “diretamente político” significa muito pouco nesse tocante, se é que significa algo, ao passo que o materialmente substantivo faz toda a diferença (“sob o teto de nossas casas”, como já dizia Babeuf).
Em função de sua viabilidade histórica, esse tipo de redefinição de política e sociedade requer que o capital seja erradicado totalmente do metabolismo social. Sem isso não pode haver igualdade substantiva (ou democracia substantiva). Naturalmente esse requisito acarreta também a erradicação total (ou o “fenecimento”) do Estado como o conhecemos. O metabolismo reprodutivo do capital não pode ser erradicado sem isso, pois, em seu âmago, o Estado é necessariamente hierárquico. Ele foi historicamente constituído como o expropriador e usurpador da tomada de decisão global do processo de reprodução societária. Além disso, o quadro de referência reprodutivo de cunho material da ordem metabólica social do capital não teria nem condições de funcionar sem os processos de tomada de decisão hierárquica estruturalmente arraigados do Estado do capital correspondente.
Uma consideração adicional precisa igualmente receber a devida ênfase nesse ponto: a capacidade de restauração do capital. Pois, por sua natureza, o capital só pode ser inexoravelmente onipotente, já que não é capaz de reconhecer qualquer limite. Daí o absurdo completo da fantasia de Gorbachev (e de qualquer outra similar), postulando uma “sociedade de mercado controlada”. (Como bem sabemos, essa fantasia pode ter muitas variedades ilusórias, especialmente em condições de severas crises econômicas.)
Tendo em vista todas essas considerações, a única solução historicamente sustentável para o futuro é a reconstituição radical do metabolismo social no espírito do princípio orientador da igualdade substantiva. Isso só poderá ser visualizado bem além da irrealizável terra do nunca e do lugar nenhum “substancialmente mais equitativo” da esperança piedosa. De modo algum causa surpresa que, no curso do desenvolvimento histórico conhecido, apregoado nos termos dos postulados ilusórios da concepção democrático-liberal da “redistribuição mais equitativa da riqueza” (em nome do “Estado de bem-estar” ou do que quer que seja), as promessas feitas não deram em absolutamente nada. As relações sociais resultantes não só não são “substancialmente mais equitativas”, como não são nem sequer um pouquinho mais equitativas. Pelo contrário, temos testemunhado a obscena concentração cada vez maior da riqueza. Tanto que até mesmo alguns economistas políticos neoclássicos decentes, como Thomas Piketty, expuseram-na em seus escritos, mesmo que não tenham apresentado qualquer solução.
Reorganizar a sociedade, transferindo o poder da tomada de decisão aos produtores livremente associados, é o único modo factível de introduzir o planejamento significativo. Isso é condição absoluta, totalmente incompatível com a natureza inerente do capital, devido à sua centrifugalidade estruturalmente insuperável. Essa dimensão do metabolismo social fundamental de nossa ordem estabelecida – isto é, sua incompatibilidade com o planejamento global, mas não com o “planejamento” parcial/gerador de antagonismos das grandes corporações – é agravada pelo requisito sistêmico do metabolismo reprodutivo de ordem material do capital, que tende inexoravelmente para a globalização materialmente invasiva, sem que haja qualquer processo correspondente e factível de tomada de decisão global no plano político legitimador do Estado. Pois seria nada menos que um absurdo completo se (ou quando) os apologistas da ordem metabólica social estabelecida do capital visarem a um sistema global do seu gosto sem um processo de planejamento globalmente viável e historicamente sustentável.
É claro que um processo de planejamento racional não antagônico em um plano global e amplo é inconcebível sem a correspondente modalidade apropriada de intercâmbio entre as células constitutivas – que podem ser chamadas de “microcosmos” – da abrangente ordem social. Nesse sentido, o planejamento globalmente viável só é factível sobre a base de um processo de reprodução societário horizontalmente coordenado (isto é, verdadeiramente não hierárquico). Essa é uma questão paradigmática de reciprocidade social, no centro da qual encontramos o requisito histórico da igualdade substantiva. Sem planejamento, o inevitável intercâmbio global em nossa reprodução societária presente e futura não pode ser considerado historicamente sustentável. Ao mesmo tempo, o planejamento em escala global é inconcebível sem a remoção das desigualdades hierárquico-estruturais tão evidentes no mundo atual.
Quanto a esse aspecto, uma vez mais, defender o “substancial” (em termos de alguma mudança postulada, mas irrealizável) não significa absolutamente nada, porque seu quadro de referência orientador e a correspondente medida que delimita os melhoramentos dos seus projetos permanecem a ordem hierárquica existente, estruturalmente arraigada. O assim chamado “mais equitativo” pode até ser, em um sentido parcial, “relativamente mais substancial” do que sua variedade anterior, mas ele inevitavelmente falha – como fica amplamente comprovado no desenvolvimento histórico real – no sentido vital de que não representa nenhum desafio real à ordem social existente no que se refere a seus parâmetros estruturais autossustentáveis e autojustificadores, muito bem ilustrados pela apregoada pretensão liberal do “mais equitativo”. (Ver as projeções originais – feitas por liberais como lorde Beveridge e outros – a respeito do “Estado de bem-estar” e sua realização histórica patética e liquidação definitiva até mesmo nos poucos países capitalistas privilegiados.) Para sair dessa ordem social estruturalmente desigual necessitamos de uma igualdade substantiva qualitativamente diferente como princípio orientador e também da medida apropriada de sua realização.
Esse também é o único modo pelo qual a questão da transição para uma transformação socialista da ordem metabólica social pode adquirir um significado apropriado: provendo os critérios e a medida pelos quais poderão ser confirmadas as realizações particulares rumo a uma sociedade substantivamente equitativa em sua totalidade.
Por razões historicamente compreensíveis, os movimentos políticos particulares que tentam afirmar suas políticas certamente têm de prometer resultados tangíveis aos seus potenciais seguidores. Esse é um problema muito difícil porque se tende a impor as demandas colocadas pelas expectativas de curto prazo dos movimentos políticos, em vez de se operar com a perspectiva historicamente sustentável de longo prazo. Na verdade, porém, a transformação estrategicamente viável não é factível sem a plena observância dos requisitos objetivos e subjetivos de longo prazo. Infelizmente, contudo, a distinção entre “estratégia e tática” frequentemente é usada para justificar a negligência em relação ao longo prazo, quando se diz que “isso e aquilo” foram pensados “apenas taticamente”, embora se encontrassem em contradição direta ao longo prazo estrategicamente viável.
O fato é que a adoção de tais táticas pode provocar um descarrilamento sério da necessária estratégia de longo prazo. Além disso, não haverá estratégia viável sem um quadro de referência orientador apropriado às determinações globais das tendências e potencialidades de longo prazo historicamente determináveis. É por isso que nossa preocupação com o contraste entre substantivo e substancial é de importância vital. Quando se visualiza uma transformação socialista historicamente sustentável não se pode abandonar o princípio orientador radical e a medida da igualdade substantiva, os quais podem permitir a constante avaliação do período de transição para uma ordem metabólica social fundamentalmente diferente.
Tudo isso é perfeitamente compatível com as opiniões de Marx. Porém, em nosso período histórico, o quadro de referência conceitual deve ser articulado no sentido anteriormente exposto, refletindo as condições agravadas e cada vez piores da irreversível fase descendente de desenvolvimento do capital, com sua tendência para a destruição global da humanidade, que só poderá ser evitada através da constituição de uma ordem sociometabólica substantivamente equitativa. Nossa crítica ao Estado deve ser concebida a partir dessa perspectiva.
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