GABRIEL BRITO – O governo em exercício de Michel Temer ainda tenta explicar seus planos para combater a recessão econômica e, em menos de um mês, parece com pouco fôlego pra levar adiante o pacote anunciado no momento de euforia. De toda forma, continuamos a testemunhar argumentações a respeito da inviabilidade das políticas sociais e seu financiamento público. Foi sobre esse “dilema” que conversamos com Ligia Bahia, médica e professora da UFRJ.
“A orientação está clara: é a de restrição, de racionamento de políticas sociais. Mas parece que os efeitos dos cortes não foram combinados com a base política do governo interino. Nesse ano de eleições, ficará difícil convencer candidatos a prefeituras e câmaras de que não vai ter recurso para a saúde, educação, segurança etc. Essa tensão já se explicitou”, observou.
Na conversa, Ligia, especialista de longa data em debates de políticas sociais, lamenta a timidez dos avanços na área da saúde nos governos petistas e alguns ilusionismos criados pelo marketing político. “Na realidade, os governos do PT não priorizaram a saúde. Houve, é claro, avanços em relação à expansão do acesso com o Farmácia Popular, Mais Médicos e outras iniciativas. No entanto, o SUS foi subfinanciado e os estímulos à privatização herdados dos governos anteriores se diversificaram e ampliaram”.
Ligia conclama um debate realista, que em sua visão significaria trazer à tona o subfinanciamento das áreas sociais. “O debate sobre o pagamento e o uso dos impostos é central, no Brasil o pagamento dos juros da dívida consome recursos que deveriam ser utilizados para saúde, educação, transporte, moradia”, afirmou.
A entrevista completa com Ligia Bahia pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: O governo interino de Temer acaba de anunciar uma série de medidas na área econômica, com forte impacto social. Qual a sua avaliação da orientação econômica que já está clara, no que se refere aos seus impactos no financiamento e operação de áreas sociais em geral?
Lígia Bahia: A orientação está clara: é a de restrição, de racionamento de políticas sociais, um racionamento tão absurdo que atingiria conteúdos das atividades de saúde, didáticas etc. Mas parece que os efeitos dos cortes não foram combinados previamente com a base política do governo interino. Nesse ano de eleições municipais, ficará difícil convencer candidatos a prefeituras e câmaras municipais de que não vai ter recurso para a saúde, educação, segurança etc.
Essa tensão já se explicitou. Centrais sindicais que apoiaram o impeachment estão contra a reforma da previdência e as “bancadas” da saúde e educação contra os cortes orçamentários setoriais. Apesar disso, o programa expresso nos documentos Ponte para o Futuro e Travessia Social são muito enfáticos na defesa da submissão total da política social à racionalidade do ajuste fiscal.
Correio da Cidadania: Nesse contexto, o que deve acontecer mais especificamente com duas áreas tão essenciais como saúde e educação?
Lígia Bahia: Já estão sendo muito prejudicadas. Na saúde, ocorre um desmonte de programas considerados exemplares, como de vacinação, prevenção à Aids, saúde mental, que não apenas ficam restritos pelo corte de verbas como também encolhem em função das concepções errôneas, religiosas e preconceituosas sobre riscos, doenças e tratamentos eficazes. Trazer para dentro do governo que deveria ser democrático, republicano, laico, a “cura gay” e o preconceito contra o aborto, por exemplo, são retrocessos que causaram mortes, que poderiam ser evitadas.
Na educação, conteúdos curriculares essenciais para a formação da cidadania e da reflexão crítica são afetados, como se escolas e universidades fossem seitas, partidos políticos, e não espaços de desenvolvimento da pluralidade e da produção de novos conhecimentos.
Correio da Cidadania: Considerando que as expectativas com relação a esse governo interino não eram nada favoráveis, vamos retomar os governos Lula e Dilma. Que avaliação você faz desses dois governos com relação ao seu desempenho em áreas sociais, especialmente no que diz respeito à polêmica em torno do assistencialismo versus universalização de políticas sociais?
Lígia Bahia: Na saúde, o desempenho foi decepcionante. Na realidade, os governos do PT não priorizaram a saúde. O único momento em que a saúde adquiriu protagonismo foi quando a CPMF foi votada e derrotada. Houve, é claro, avanços em relação à expansão do acesso com o Farmácia Popular, Mais Médicos e outras iniciativas.
No entanto, o SUS foi subfinanciado e os estímulos à privatização herdados dos governos anteriores se diversificaram e ampliaram. A ideia de um SUS apenas para pobres e não a do SUS universal terminou por se tornar hegemônica, não somente porque a mídia divulga eventos negativos, pois existe um substrato real. É visível a degradação de unidades públicas, sujas, mal equipadas.
Correio da Cidadania: Qual a avaliação que você faria no que tange ao Bolsa Família nesses governos, considerando os rumos que tomou esse programa?
Lígia Bahia: O Bolsa Família é um programa exemplar, bem sucedido não apenas em seu objetivo principal, mas também por seus com reflexos em outras áreas. Pesquisas na saúde demonstraram que o Bolsa Família se correlaciona positivamente com a redução da mortalidade infantil, ou seja, que a melhoria na renda impactou a possibilidade de recém-nascidos crescerem.
Correio da Cidadania: E o que falaria da área da educação sob os governos petistas? Era possível ter avançado mais?
Lígia Bahia: Essa é uma pergunta difícil. Mas parece ser uma interrogação que não se deveria evitar. Sim, poderia ter se avançado mais, sem um marketing incorreto e mediante políticas sistêmicas. Nem todos os problemas estariam resolvidos, mas poderiam ter sido endereçados, redirecionados.
A ilusão de ter uma bala de prata de priorizar uma ou outra atividade propícia ao marketing, a “marcas de governo”, impediu a concentração de esforços na transformação das políticas sociais em políticas de Estado.
Correio da Cidadania: O financiamento de políticas sociais tem sido um calcanhar de Aquiles dos diferentes governos, sejam mais ou menos progressistas, a partir do apontamento de restrições monetárias e fiscais para o financiamento de serviços públicos universais previstos na Constituição. O que seriam alternativas realistas para o financiamento de políticas sociais no Brasil e em que medida os governos Lula e Dilma falharam nesse quesito?
Lígia Bahia: Os gastos sociais no Brasil ainda são acanhados. Mas é como se estivéssemos jogando dinheiro pelo ralo. O debate sobre o pagamento e o uso dos impostos é central, no Brasil o pagamento dos juros da dívida consome recursos que deveriam ser utilizados para saúde, educação, transporte, moradia.
Essa discussão é realista, versa sobre o pacto social que foi realizado na Constituição de 1988. Portanto, a alternativa é cumprir a Constituição. Infelizmente, porém, os governos, inclusive Lula e Dilma, não foram “realistas”. Optaram pelo monetarismo e não por políticas redistributivas.
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