PATRÍCIA CAMPOS MELLO – Nunca na história moderna tantos muros foram construídos nas fronteiras, afirma Élisabeth Vallet, autora de livro referência sobre o assunto. Segundo seus estudos, o bloqueio entre países decorre de uma insegurança social gerada pela globalização e visa a conter imigrantes, terroristas e contrabandistas, nessa ordem.
Com o fim da Guerra Fria, cientistas políticos embarcaram na ilusão de que os muros que separavam países iriam cair um a um; Berlim era só o começo. A globalização, no entanto, teve o efeito oposto.
Nunca na história moderna tantos muros foram construídos nas fronteiras, segundo estudos de Élisabeth Vallet, professora do departamento de geografia da Universidade de Québec em Montréal, no Canadá, onde também é diretora do centro de estudos sobre geopolítica. Eram 15 em 1991, são 70 agora.
Vallet vem estudando muros e cercas do mundo há 15 anos e é organizadora do livro referência sobre o assunto, “Borders, Fences and Walls – State of Insecurity?” (fronteiras, cercas e muros: estado de insegurança?, Ashgate), publicado em 2014. Para ela, a multiplicação desses paredões é parte de uma resposta antiglobalização que se exacerbou nos últimos anos.
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Folha – Por que existe essa multiplicação de muros e cercas em diversas fronteiras entre países?
Vallet – Comecei a estudar os muros e cercas do mundo dois anos depois do 11 de Setembro de 2001. Na época, eu e minha equipe de pesquisadores partimos do pressuposto de que os ataques haviam desencadeado o aumento no número de muros. Depois que coletamos e analisamos os dados, porém, chegamos à conclusão de que essa tendência tinha se acelerado alguns anos antes e que, na realidade, a diminuição na quantidade de muros e cercas após a queda do Muro de Berlim não tinha sido tão grande quanto se esperava.
Concluímos que os atentados de 2001, da mesma maneira que a Primavera Árabe [iniciada em 2010], tinham sido um acelerador para a multiplicação de muros, mas não um desencadeador. O fator real foi a globalização, a maneira como ela mudou as estruturas econômicas nos países e como muitas pessoas sentem que não têm o menor controle sobre suas próprias vidas.
O fator desencadeador, o gatilho para a multiplicação de muros foi essa reação contra a globalização e a crise de identidade ligada a isso.
Há uma crise econômica, com aumento da desigualdade de renda e uma sensação de impotência das pessoas. É menos uma questão de insegurança no sentido militar e mais uma insegurança social. Trata-se de uma percepção de que a cooperação internacional que se expandiu nos anos 1990 não é a maneira ideal para navegar as relações internacionais.
A ascensão da extrema direita e de políticos populistas como Donald Trump, nos EUA, e Viktor Orbán, na Hungria, faz parte desse contexto?
Sim. É difícil comparar períodos históricos, mas vejo muita semelhança da época atual com o entreguerras. Tínhamos o mesmo tipo de sociedade pós-crise tentando entender o sistema econômico e achar uma maneira de se adequar.
As pessoas têm a sensação de que é fácil fortificar suas fronteiras e que isso vai protegê-las das ameaças e riscos globais. Políticos se apoiam nessa sensação de impotência das pessoas e na tendência de acusar o outro, seja ele um governo central distante das necessidades da população, seja um estrangeiro entrando no país para “roubar” empregos. Os muros e as cercas nas fronteiras são uma resposta visível e fácil para essas inseguranças da população.
Os partidos populistas estão recorrendo a essas respostas populistas, e isso ocorre embora nós saibamos que os muros não funcionam, que as pessoas vão passar por baixo ou por cima deles, ou simplesmente apelar para a corrupção. Propina é a maneira mais fácil de atravessar um muro na fronteira, e há propina em qualquer lugar.
Os políticos usam os muros e a ameaça às fronteiras para fins eleitorais, e os partidos mais ortodoxos aderiram a esse discurso. Estão brincando com fogo, pois normalizam o discurso da extrema direita.
Em seus estudos, a sra. aborda o impacto econômico dos muros.
Os muros são um fardo para as finanças públicas e para as economias fronteiriças. Construir e manter um quilômetro de muro custa o mesmo que construir e manter um quilômetro de uma rodovia de quatro faixas em cada direção.
Alguns trechos do muro entre o México e os EUA vão custar até US$ 21 milhões [cerca de R$ 65 milhões] por quilômetro, porque será preciso desapropriar terras, aterrar e, depois, instalar câmeras, sensores, drones, contratar pessoas para a patrulha, sem falar na manutenção.
Isso sem levar em conta a disrupção nas cidades que vivem do comércio fronteiriço. Com a construção de um muro ou cerca, as economias passam a depender do complexo de segurança e do contrabando. Se o custo econômico da construção é alto, o custo causado pela disrupção é maior.
A sra. diria que se trata de um fenômeno novo, que nunca tivemos uma multiplicação tão rápida no número de muros?
Havia a Grande Muralha da China, as muralhas do Império Romano, mas a estrutura dos Estados era diferente, as relações internacionais eram diferentes [antes da Paz de Vestfália, de 1648, que consolidou o conceito de Estado soberano].
Considerando a era pós-vestfaliana, nunca houve uma aceleração [no número de muros] tão grande, de acordo com nossos estudos. Houve um pequeno aumento após a Segunda Guerra [1939-1945] e na descolonização. Com o fim da Guerra Fria [1945-1991], esperávamos uma grande diminuição no número de muros, mas isso não ocorreu. Desde então, a tendência é de alta, com uma aceleração acentuada após a Primavera Árabe.
Podemos dizer que é uma nova tendência, um novo normal nas relações internacionais. É importante destacar que cercas e muros e política migratória andam juntos.
Essa tendência vai se manter?
Nos anos 1990, tínhamos uma perspectiva de um mundo sem fronteiras, algo que nos anos 1980 era inimaginável. É impossível prever, todo o paradigma das relações internacionais pode mudar de novo.
Normalmente, cercas e muros de fronteira caem, o Muro de Berlim foi um deles. Mas há algo novo em nossa era: migrações em massa e mudanças climáticas. Essas duas questões precisam ser abordadas em nível mundial, por meio da ONU. Se não resolvermos as inseguranças que desencadeiam migrações em massa, não solucionaremos o problema. No curto prazo, mais muros serão construídos, porque se trata de uma resposta fácil.
Havia a percepção de que, após a Guerra Fria, haveria uma redução drástica no número de muros?
Sim. Cientistas políticos falavam em fim do Estado-nação, fim da soberania, e todos nós falávamos em um mundo sem fronteiras. Naquela época havia, de fato, um mundo sem fronteiras, mas apenas dentro de duas áreas no mundo, União Europeia e Nafta [bloco formado por EUA, México e Canadá].
Fora dessas áreas, as fronteiras continuavam muito importantes. E, para quem estava de fora delas, era difícil entrar. Portanto, do ponto de vista ocidental, o mundo deixava de ter fronteiras, mas o restante não tinha tanta certeza disso.
Havia a percepção de que a democracia, o fim das fronteiras, a liberdade de movimentos e trocas, tudo isso iria prevalecer, veríamos os benefícios disso para todos no mundo. Não foi o caso.
Na maioria dos casos, qual é o objetivo dos muros?
Os mais antigos eram construídos com a perspectiva de manutenção da paz, para conter conflitos ou reforçar as fronteiras. É o caso do muro que separa o Chipre, o muro entre as duas Coreias, o muro entre Índia e Paquistão. Há poucos muros e cercas desse tipo hoje. Atualmente, a justificativa mais frequente para os muros é a imigração, a segunda é o terrorismo e a terceira é o contrabando.
Normalmente, falamos sobre muros que separam países ricos de países pobres, ou que são construídos para evitar a entrada de imigrantes. Mas há dinâmicas diferentes: por exemplo, o muro construído entre o Quênia e a Somália, que faz parte da nossa série sobre muros…
Estudos apontam que a diferença de PIB per capita entre dois países pode ser uma maneira de calcular a probabilidade de que se construa um muro na fronteira. Portanto, pode ser um muro entre dois países pobres: a renda per capita no Quênia é de US$ 1.350, dez vezes mais do que a da Somália.
No Brasil, não temos barreiras para impedir a entrada de refugiados ou imigrantes, mas temos muros separando áreas ricas de áreas pobres. Qual é a relação entre esses dois tipos de construção?
Certamente há um paralelo entre esses dois conceitos, mas não nos aprofundamos nisso. Mas tenho certeza de que a análise de diferença de PIB per capita também se aplica a esses muros urbanos.
Como podemos resolver o problema da multiplicação de muros?
A chave é cooperação internacional. Houve um fracasso do mundo sem fronteiras dos anos 1990 e do sistema das Nações Unidas ao lidar com insegurança alimentar, conflitos e manutenção da paz em locais como a Síria, por exemplo. Antes da Primavera Árabe, o foco das discussões era insegurança alimentar na África. Hoje, há ainda mais fome na região. Nós não estamos lidando com isso, e o resultado será mais migração e mais muros.
É preciso algum choque para desencadear uma mudança de paradigma, algo que fará as pessoas se darem conta de que não podem lidar com esses problemas individualmente. Não sei o que irá desencadear a mudança, mas sei que é preciso ter cooperação internacional.
Milhares de pessoas não poderão mais viver em partes da Índia por causa da mudança climática. Todas essas pessoas vão migrar. É uma emergência, precisamos fazer alguma coisa o quanto antes.
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Muros fronteiriços construídos entre 1870 e 2017
Um muro que separa os EUA do México começou a ser construído em 1990. Em 2012, o México construiu um muro na fronteira com a Guatemala
Exceto pelos muros que a Espanha ergueu na fronteira com o Marrocos em 1993 e 1996, todos os demais da Europa foram construídos após 2012, na maior parte, para conter fluxos migratórios
O Kuait ergueu o primeiro muro fronteiriço do Oriente Médio em 1991, após ser invadido pelo governo iraquiano de Saddam Hussein. Dois anos depois, Israel também separou Gaza com muros. A partir dos anos 2000, conflitos constantes fizeram outros muros serem construídos entre os países da região
A China murou a fronteira com Macau em 1870, a com Hong Kong em 1960 e a com a Coreia do Norte em 2006. Esse último país já havia murado sua fronteira com a Coreia do Sul em 1977. Outros países da Ásia, como o Nepal e a Índia, possuem muros em todas as suas fronteiras
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