Thais Matos – Em entrevista, a historiadora da FGV analisa qual a real possibilidade de haver uma nova intervenção militar no País.
“É necessário notar que os militares possuem uma série de privilégios em relação a outras categorias no Brasil”, ressalta a historiadora.
Na última sexta (15), um general do exército reacendeu no País um debate antigo. Em um evento maçônico, o general Mourão sugeriu que pudesse haver uma imposição militar para conter a crise política:
“É óbvio que, quando nós olhamos com temor e com tristeza os fatos que estão nos cercando, a gente diz: ‘pô, por que não vamos derrubar esse troço todo?’ […] Nós estamos numa situação daquilo que poderíamos lembrar lá da tábua de logaritmo, de aproximações sucessivas, até chegar um momento em que ou as instituições solucionam o problema político pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos que impor isso.”
Diante a fala, o comandante do Exército, general Villas Bôas, minimizou: “Essa questão está resolvida internamente. […] Ele inicia dizendo que segue as diretrizes do comandante. E o comando segue as diretrizes de promover a estabilidade, baseada na legalidade e preservar a legitimidade das instituições”, disse em entrevista a Pedro Bial, na quarta-feira (20).
Na quinta-feira (21), o ministro de Defesa, Raul Jungmann, e o comandante do Exército decidiram não punir formalmente o general Mourão.
A afirmação gerou uma acalorada reação, tanto de partidários de uma nova intervenção, quanto de pessoas que rechaçam completamente a mera hipótese, evocando os crimes praticados pelo regime, de 1964 a 1985.
Ainda assim, ficou o questionamento: qual a real possibilidade de haver uma nova intervenção militar no País? Em entrevista ao HuffPost Brasil, Dulce Pandolfi, historiadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), minimiza as possibilidades de vermos um novo regime militar em 2017, mas alerta para a baixa reação da sociedade a esta possibilidade.
Leia a entrevista.
HuffPost Brasil: O que diferencia e o que aproxima o cenário pré-golpe de 1964 e o Brasil de agora?
Dulce Pandolfi: São contextos completamente diferentes. Nos anos 1960, havia o contexto da Guerra Fria, do comunismo de dois mundos muito distintos. Esse era um dos principais argumentos para a intervenção. O Brasil representava uma forte ameaça aos Estados Unidos por seu tamanho e importância na América do Sul, um País central para a expansão americana. Naquela época, a questão da corrupção também foi acionada para legitimar o golpe, mas foi muito mais uma coadjuvante.
A semelhança existe em três contextos. Temos um ponto em comum entre 1954, no fim da Era Vargas; em 1964, com Jango; e em 2014, com o governo Dilma: projetos de um país mais inclusivo, de nacional desenvolvimentismo.
O Brasil era menos independente do que é hoje. Naquela época, era mais facil temer os Estados Unidos. Hoje, estamos mais consolidados enquanto nação.
As Forças Armadas têm condições hoje de realizar um intervenção tal qual a de 1964?
Essa opção deve ser completamente descartada. Tem que ter uma rebeldia na sociedade como resposta a qualquer tentativa nesse sentido. O papel das Forças Armadas é outro, estabelecido pela Constituição.
Por menor peso que tenha o general Mourão, ele expressa o pensamento de uma corporação. Acho lamentável que o Exército tenha admitido uma falha dessas. O próprio presidente da República não poderia admitir uma fala desse tipo.
Uma intervenção encontraria apoio da sociedade?
A sociedade brasileira está muito polarizada, é até complexo conseguir inferir. Bolsonaro e Mourão representam esse segmento mais radical. Mas, ao mesmo tempo, todas as pesquisas mostram um crescimento de Lula para as eleições. Este é um retrato desse momento da sociedade brasileira. Apesar da expressão de Bolsonaro nas pesquisas, o pensamento de direita proto-fascista tem um teto e não vai crescer mais do que isso. Esse setor não tem uma hegemonia na sociedade, é um segmento minoritário.
O corte de orçamento das Forças Armadas anunciado pelo governo e o impasse sobre novas regras de aposentadoria militar impulsionam ou enfraquecem o discurso de intervenção?
As Forças Armadas são muito corporativas. As análises erraram em 64 porque esqueceram de ver a força a corporação.
É claro que tem uma reação forte a qualquer corte. Mas é necessário notar que os militares possuem uma série de privilégios em relação a outras categorias no Brasil, como a pensão e aposentadoria. Então essa perda de privilégios e benefícios gera descontentamento e eles podem querer se levantar para barrar isto.
A corrupção em vários âmbitos e a investigação do presidente da República validam, de alguma forma, uma intervenção?
Nada justifica. A democracia se aperfeiçoa com mais democracia. A corrupção é endêmica no Brasil. É uma ilusão pensar em um governo militar como forma de combate à corrupção, por mais caótica que esteja a sociedade brasileira, justamente porque o regime militar também foi corrupto.
Vemos a deterioração da nossa presidência na ausência de um pronunciamento de Temer quanto a isso. Ele não se pronunciou porque não tem moral nem condições, está acuado e deslegitimado, não quer comprar briga com mais um setor neste de momento em que amarga a pior rejeição de seu governo.
Temos hoje um presidente totalmente ilegítimo, mas a saída dessa crise está apenas em um processo eleitoral.
Há no Artigo 142 da Constituição alguma brecha que possa gerar interpretações neste sentido?
De maneira alguma. Esta é uma interpretação muito radical, uma leitura equivocada e tendenciosa.
As pesquisas mostram que as Forças Armadas são a instituição de maior confiança entre os brasileiros. O que pode explicar este fenômeno?
A sociedade brasileira tem uma disputa por projetos de memória. É difícil combater um projeto que foi muito veiculado e abrandado naquele período. Vivemos como se os militares não tivessem sido ditatoriais. E esse discurso tem uma forte penetração forte na sociedade. E o lado que combateu a ditadura não conseguiu esclarecer para a população quão maléfico foi aquele período, mesmo com as descobertas da Comissão Nacional da Verdade.
Somos um país que padece de cidadania. Esse setor conseguiu implantar a sua versão e esse caos que o Brasil tá vivendo hoje reforça essa versão.
A polarização e a precariedade acabam contribuindo para uma visão distorcida da realidade. Cabe à mídia e aos setores organizados reverterem esse discurso.
http://www.huffpostbrasil.com/2017/09/24/e-ilusao-pensar-em-governo-militar-como-forma-de-combate-a-corrupcao-diz-dulce-pandolfi_a_23218296/
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