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A atual política de drogas no Brasil: um copo cheio de prisão

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Marcelo da Silveira Campos – Entre 2005 e 2013, a população carcerária dos delitos relacionados às drogas aumentou 345%, saltando de 32.880 para 146.276. O que provocou esse encarceramento e como ele afeta especialmente os pobres é o tema do terceiro artigo da série especial

Nos anos 1990, era comum que a (in)distinção entre o traficante e o usuário estivesse baseada nos artigos da antiga Lei de Drogas (Lei n. 6.368, de 1976). Era possível criminalizar alguém por drogas por meio dos artigos 16 ou 12. Na vigência dessa lei, eram os próprios números dos artigos que representavam socialmente e distinguiam um usuário (16) de um traficante (12) de drogas. E, claro, o modo como a polícia poderia ou não incriminar alguém dentro do sistema de justiça criminal no Brasil por uma infração relacionada ao comércio ou uso de substâncias consideradas ilícitas.

Em 2006, após um longo debate no Congresso Nacional, o Estado brasileiro aprovou a chamada nova Lei de Drogas (Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas). Na época, o objetivo “oficial” da nova política era deslocar o usuário de drogas para o sistema de saúde, ao mesmo tempo que aumentava a punição para os traficantes, diante do que os parlamentares denominaram a “expansão de grupos criminosos”, sobretudo no contexto daquilo que a grande mídia, senadores e deputados nomearam como “onda de sequestros”1 em São Paulo. Uma abordagem “menos punitiva” e mais “preventiva”, focada agora na “saúde” do usuário de drogas, foi um dos objetivos centrais para a emergência de uma nova lei de drogas oriunda da CPI do Narcotráfico no início dos anos 2000.

Esse novo dispositivo legal, que denominei dispositivo médico-criminal,2 foi fruto de um longo processo legislativo iniciado em 2002 para introduzir no Brasil, afinal, uma nova política de drogas. Esta agora seria mais centrada na prevenção, atenção e reinserção social dos usuários de substâncias consideradas ilícitas e teria como objetivo “oficial” deslocá-los do sistema de justiça criminal para o sistema de saúde. Foi essa mistura entre o saber médico e o saber jurídico que deu o tom dos discursos dos deputados e senadores na tramitação no Congresso Nacional: “Parabéns ao Brasil, que terá uma lei que vai tratar diferentemente pessoas que são diferentes”, declarou na época o ex-deputado Cabo Júlio (PSC-MG), ressaltando o apoio da bancada evangélica ao projeto que culminou na lei aprovada.

Uma lei, portanto, que deveria estar em acordo com a “média de conhecimento da Casa”, conforme disse outro deputado na formulação da lei. E essa média aritmética de que “pra descer tem que subir” apropriou-se do paradigma da redução de danos para, num mesmo movimento político, aumentar a pena para o tráfico de drogas, mantendo, ainda, a criminalização do porte para uso de drogas (capítulo III da Lei n. 11.343. de 2006). Nesse sentido, os avanços pretendidos com a entrada de um referencial médico na lei foram somente discursivos. A inovação foi meramente ocasional e acidental na velha lógica da política criminal brasileira de coexistência entre pouca moderação e muita severidade do poder de punir. Foi o que permitiu coadaptar o saber médico junto com o saber jurídico-criminal, de modo que, para diminuir um pouco a punição para o usuário de drogas, aceitou-se aumentar o tempo do sofrimento3 por meio da centralidade da pena aflitiva de prisão para o comerciante. Definiu-se o todo (as inúmeras questões sociais, culturais e políticas que envolvem o uso e o comércio de substâncias consideradas ilícitas) pela parte de sempre, a pena de prisão. O nó já havia sido dado.

A metade cheia

A primeira metade – a metade criminal – emergiu fruto de um contexto político que reafirmava o plano repressivo e proibicionista em relação às políticas de drogas (o aumento da pena de prisão em relação ao tipo penal do tráfico de drogas). A Convenção Única sobre Entorpecentes (1961), o Convênio sobre Substâncias Psicotrópicas (1971) e a Convenção de Viena (1988) formam a tríade de convenções entabuladas na ONU que sedimentam o paradigma proibicionista, repressivo e de intolerância à produção, ao comércio e ao consumo de entorpecentes.

O Brasil não passaria incólume por esse processo: sob a égide dos Estados Unidos e da política de “guerra às drogas”, declarada por Richard Nixon em 1971, foi editada a Lei n. 5.726, de 1971, que alinha o sistema repressivo brasileiro às orientações internacionais. Cinco anos depois, sobreveio a Lei n. 6.368/1976, cujas disposições consolidaram o modelo político-criminal proibicionista de combate às drogas estabelecido nos tratados e convenções internacionais.

Tal recrudescimento penal, portanto, foi diretamente influenciado pelo contexto de formulação de políticas repressivas de “combate às drogas”: convenções da ONU, guerra às drogas e guerra ao terror. Foi a volta da concepção do comerciante de drogas e do criminoso como um “inimigo social” que faz ser possível o aumento da pena para os traficantes coexistir com a outra metade (“guardiã da saúde pública”), retomando, em ambos os casos, a categoria “drogado” como acusação moral e política.

A metade vazia

A segunda metade – médica – está relacionada ao consumo e ao consumidor de drogas. O fim da pena de prisão (despenalização) do usuário no Brasil foi aprovado em meio ao contexto de expansão das chamadas “políticas de redução de danos” (harm reduction),4 após uma ampliação e intensificação como modelo em muitos países do Norte nos anos 1980 e 1990 (Canadá, por exemplo), que objetivavam, em suma, uma abordagem do usuário de drogas com foco na prevenção, “autonomia individual” e redução aos danos do consumo de drogas ilícitas. Um rápido exemplo comparativo pode ser ilustrativo dessa segunda face: uma contagem de palavras na atual Lei de Drogas mostra que a expressão “redução de danos e riscos” aparece quatro vezes, e o termo “prevenção” pode ser observado 24 vezes.

Entretanto, se contrastarmos a definição de redução de danos clássica na literatura especializada5 como política de saúde que se propõe a reduzir os prejuízos de natureza biológica, social e econômica do uso de drogas, pautada no respeito ao indivíduo e em seu direito de consumir drogas com a declaração do ex-deputado federal Cabo Júlio em meio à votação, saudação e apoio ao projeto que culminou da atual Lei de Drogas em 2004, veremos que houve apenas uma incorporação muito lateral dessas ideias, visto que a palavra “prevenção” emerge muito mais no sentido da teoria da dissuasão (impedir um comportamento) do que no sentido médico de agir para evitar um comportamento que poderá ou não ser de risco, mas que se refere ao direito individual do uso de substâncias consideradas ilícitas.

As duas metades

Logo, é justamente na combinação dessa metade esvaziada de saber e práticas de redução de danos, mas cheia do paradigma proibicionista, que se formou uma política de drogas “à brasileira”, na qual duas metades, uma vazia de saber médico e outra cheia de saber jurídico-criminal, deram ao Congresso Nacional a aceitabilidade de um dispositivo definido pela “média de conhecimento da Casa”. O resultado prático dessa combinação é um dispositivo que teve como principal mecanismo de agenciamento a prisão pelo encarceramento da pobreza de jovens de até 25 anos, que estudaram até o ensino fundamental e trabalham no mercado informal (setor de comércio e serviços) ou estavam desempregados quando incriminados. Assim, nossa população carcerária dos delitos relacionados às drogas saltou de 32.880 no ano de 2005 para 146.276 presos no final de 2013.6

Um copo cheio de prisão

Por fim, e não menos importante, a explosão do encarceramento por drogas e o dispositivo foram ativados pela discricionariedade policial. Soma-se a isso a falta de critérios objetivos e de uma quantidade que permita o consumo de todas as drogas. Estenderam assim a dinâmica complexa do comércio e uso de drogas nas ruas para o fluxo das prisões. No caso a seguir, a pessoa incriminada pelos policiais e condenada pelo juiz na cidade de São Paulo em 2008, na região central, não tinha antecedentes criminais e portava no interior de sua boca dezessete pedras de crack (exatamente 4,25 gramas). O juiz atribuiu a pena de três anos e quatro meses de prisão porque, segundo ele, o “indivíduo”, que alegava ser “camelô”, não poderia provar a posse de R$ 73 encontrados com os policiais, conforme a ocorrência registrada abaixo.

“Comparecem nesta distrital os policiais militares informando que estavam efetuando patrulhamento de rotina pela região dos fatos quando avistaram o indiciado, sendo que este levantou suspeitas. Quando se aproximaram para efetuar abordagem este se evadiu, sendo detido nas proximidades da praça, porém, este não falava direito. Verificaram que havia algo em sua boca, encontrando um saquinho plástico onde estavam 17 (dezessete) pedras de CRACK, bem como localizaram com ele a quantia de R$ 73,00 (setenta e três) reais e um telefone celular. Ao ser inquirido sobre a droga, afirmou que a vendia. Face os fatos foi dada voz de prisão ao mesmo e conduzido a este plantão policial, onde esta Autoridade Policial cientificada dos fatos ratificou a voz de prisão e determinou a elaboração do auto de prisão em flagrante. Nada mais.”

O caso é revelador dos significados de um fenômeno aqui brevemente descrito. Revela que o hiperencarceramento da pobreza nos remete ao papel protagonista que, sobretudo, a polícia tem no Brasil devido à sua tradição inquisitorial, mas também, e não menos importante, pelo fato de que boa parte dos operadores do sistema de justiça criminal e parlamentares reafirma a centralidade da prisão nas interações com usuários e pequenos comerciantes de drogas. Reativam o dispositivo ao operacionalizar uma espécie de disjunção entre o lugar e o não lugar dos usuários-pequenos comerciantes de drogas nas cidades, fazendo-os transitar entre as ruas e as prisões, e superlotando os Centros de Detenção Provisória da capital paulista.

Assim, após a nova Lei de Drogas, a criminalização por tráfico e uso de drogas repõe a seletividade do desemprego, do subemprego e da abordagem policial, já que as chances de emprego e de alternativas formais à comercialização e ao uso de drogas estão desigualmente distribuídas entre os diferentes grupos sociais no Brasil contemporâneo, sob a lógica de tratar desigualmente os desiguais.7 Aqueles sujeitos invisibilizados, tomados por sentimentos morais de injustiça e inseridos nas descontinuidades entre o mercado informal e o formal de trabalho, encontram os acusadores que, em contato com eles, agenciam o dispositivo em sua dupla face (vazia de médico e cheia de prisão), num personagem urbano descontínuo nas dobras entre formal-informal, legal-ilegal, lícito-ilícito,8 prevenção-repressão.

Tal personagem, quando encontra a discricionariedade policial aliada a nenhum critério objetivo que defina se a quantidade de drogas em posse era para uso ou comércio de drogas, faz que a atual política de drogas brasileira possa ser representada pela metade cheia do copo. Vidas desperdiçadas em algumas linhas em registros policiais, mas que gritam por sua existência em nossas cidades. Vidas desperdiçadas nas condenações que decretam as mortes simbólicas e a estigmatização social dos indivíduos. Vidas que clamam pelo direito privado do consumo de drogas. Já passou da hora de esvaziarmos esse copo.

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1 Há um resumo interessante sobre o aumento da cobertura midiática do período no site do Observatório de Segurança Pública (OSP/Unesp).

2 M. S. Campos, Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2015. Tese de doutorado.

3 A. P. Pires e M. Garcia, Les relations entre les systèmes d’idées: droits de la personne et théories de la peine face à la peine de mort [As relações entre os sistemas de ideias: direitos humanos e teorias penais diante da pena de morte]. In: Y. Cartuyvels et al. (dir.), Les droits de l’homme, bouclier ou épée du droit pénal? [Os direitos humanos, escudo ou espada do direito penal?], Facultés universitaires de Saint-Louis, Bruxelas, 2007, p.291-336.

4 A primeira menção à redução de danos registrada foi o Relatório Rolleston, em 1926. O documento, assinado por vários médicos ingleses, defendia que a administração da droga e o monitoramento de seu uso feito pelo médico – à época em teste na Europa – eram a melhor maneira de tratar dependentes de morfina ou heroína. No contexto de uma abordagem de saúde pública, as estratégias de redução de danos foram institucionalizadas no final dos anos 1980 em diversas partes do mundo, com foco nos programas de troca de seringas sob a forte ideia de que o compartilhamento destas era o grande responsável pela propagação do HIV. Além disso, concentrou-se em programas de substituição de drogas (methadone maintenance therapy, no Canadá), de injeção de drogas que substituam a heroína. Ver especialmente L. Beauchesne, Les drogues: légalisation et promotion de la santé [As drogas: legalização e promoção da saúde], Bayard Canada, Montreal, 2006.

5 D. Xavier da Silveira, “Redução de danos do uso indevido de drogas no contexto da escola promotora de saúde”, Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.11, n.3, p.807-816, jul./set. 2006.

6 Depen/Ministério da Justiça, 2014.

7 Marcos César Alvarez, “A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais”, Dados, Rio de Janeiro, 2002, v.45, n.4, p.677-704.

8 Muitas dessas questões estão sendo colocadas em uma perspectiva transversal no Projeto Temático Fapesp “A gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência paulista”, coordenado pela professora doutora Vera da Silva Telles. Ver, por exemplo, V. da S. Telles, “Ilegalismos urbanos e a cidade”, Novos Estudos, Cebrap, São Paulo, n.84, p.153-173, 2009.

http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=2026

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