LUÍS COSTA – Nick Nesbitt afirma que nem a esquerda nem os neoliberais têm explicação adequada para a atual transformação do capitalismo, com a automatização da produção e a substituição quase completa da mão de obra humana. Para ele, é urgente voltar a “O Capital”, de Marx, cujo primeiro volume completa 150 anos.
Um século e meio depois de Karl Marx lançar o primeiro volume de “O Capital”, a sua análise da economia capitalista ainda hoje é a ferramenta teórica mais importante para compreender o mundo do trabalho, avalia F. Nick Nesbitt, 52, professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos.
Nesbitt organizou “The Concept in Crisis: Reading Capital Today” [Duke University Press, 328 págs., R$ 405,94, R$ 84,60 em e-book] (o conceito em crise: ler “O Capital” hoje), livro que acaba de ser lançado nos EUA e rediscute o clássico “Ler o Capital” (1965), escrito pelo marxista francês Louis Althusser (1918-90).
Em entrevista à Folha por e-mail, Nesbitt, que leciona no departamento de literatura comparada, afirma que Marx antecipou o que ele chama de “capitalismo pós-humano”, isto é, uma dupla tendência à eliminação gradual do trabalho humano das cadeias produtivas e à precarização da força de trabalho.
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Folha – A economia global não é mais industrial como aquela de que Marx falava. Por que retornar a “O Capital” hoje?
Nick Nesbitt – Alguns leitores de Marx gostariam de fazer crer que seus vastos escritos são pouco mais que uma descrição das condições de exploração da classe trabalhadora no século 19. Eu, ao contrário, penso que o Marx genial e duradouro deve ser encontrado, mais que em seus prodigiosos textos políticos, na obra-prima sem paralelos que é “O Capital”.
Marx gastou toda a energia intelectual das últimas três décadas de vida para descrever não só as condições da classe trabalhadora no século 19. “O Capital” transcende a especificidade histórica de seu lugar e momento de escrita. Como o subtítulo diz, é uma crítica sistemática da economia política do capitalismo, com a proeza e a influência da ordem de “Princípios da Filosofia do Direito”, de Hegel [livro publicado em 1820], ou mesmo de “A República”, de Platão [datada do século 4º a.C.].
Marx trabalhou para desenvolver uma compreensão conceitual da natureza, da forma e das estruturas do sistema capitalista.
Ao contrário das incontáveis descrições superficiais do capitalismo –preços e lucros, as perdas e os luxos dos capitalistas e das nações, as condições dos trabalhadores, a política de produção, distribuição, consumo e redistribuição da riqueza– que agraciam os anais do liberalismo e da esquerda tradicional, “O Capital” é, sobretudo, um trabalho de filosofia conceitual e crítica.
Diante das enormes transformações potencialmente catastróficas do capitalismo hoje –transformações que apenas se aceleraram neste século–, se quisermos compreender as forças que atualmente conduzem a globalização, não aprenderemos nada olhando para as estatísticas e as análises neoliberais sobre PIB, emprego, lucro, crescimento e outras categorias do cálculo econômico, que são apenas descritivas. Em vez disso, devemos voltar à análise conceitual de Marx.
Que debates o sr. procura criar ou revisitar no livro?
Como organizador, acima de tudo, pretendi ultrapassar a estúpida, superficial e moralista interdição de um dos grandes pensadores do século passado, feita em razão das tragédias de sua biografia. Althusser passou a maior parte de sua vida frequentando clínicas psiquiátricas, para culminar em um ataque de insanidade que custou a vida de sua mulher e sua própria existência pública.
Em segundo lugar, quis chamar a atenção para a leitura filosófica e conceitual iniciada por Althusser e seus alunos [o livro de Nesbitt tem capítulos escritos por frequentadores dos seminários que deram origem a “Ler o Capital”, como o filósofo Étienne Balibar].
Trato “Ler o Capital” como a maior realização filosófica de Althusser para entender as crises, transformações e potencialidades do capitalismo tardio. O livro argumenta que Marx construiu em “O Capital” uma filosofia da forma-valor que é surpreendentemente pressagiadora em nos ajudar a entender o capitalismo contemporâneo.
Na contramão do revisionismo e das rupturas pós-marxistas dos anos 1960, Althusser se manteve fiel a uma leitura marxista-leninista tradicional. Essa ainda é uma perspectiva teórica e política viável?
Penso que não. A virtude contemporânea de “Ler o Capital” é ter deixado de lado as inclinações políticas datadas de Althusser, concentrando-se unicamente na crítica teórica do capitalismo.
Althusser afirmava que “O Capital” era mais bem compreendido entre operários do que entre intelectuais, porque estes não experimentavam a exploração de que fala o livro. O sr. concorda com essa afirmação?
Acho que essas afirmações de Althusser não são mais do que atormentada má-fé de um brilhante pensador iconoclasta em sua recusa a deixar o Partido Comunista francês, tentando encaixar-se em seu próprio círculo existencial.
Embora qualquer um possa potencialmente compreender “O Capital”, esse trabalho filosófico-crítico é de ordem de complexidade totalmente diferente de algo como o “Manifesto Comunista”. Com um livro tão complexo e exigente, qualquer um que fizer o esforço de entender seus volumes interpretará seus argumentos de acordo com posições subjetivas.
Ao mesmo tempo, podemos alcançar uma compreensão mais aguda da lógica objetiva do texto, como ocorreu, acredito, nas últimas décadas de pesquisa.
O que havia no século 19 e ainda há de equivocado sobre a visão econômica de Marx entre estudiosos?
A economia dominante continua ignorando o poder de muitos dos conceitos-chave de Marx: força de trabalho, valor excedente absoluto e relativo, tempo de trabalho socialmente necessário, tendência à queda da taxa de lucro. No entanto, o conceito fundamental para a crítica de Marx é sua teoria do valor-trabalho [relação entre o valor da mercadoria e o tempo dedicado à sua produção].
Ao abandonar qualquer forma da teoria do valor-trabalho, de [Adam] Smith a Marx, a economia neoliberal ganhou na habilidade de quantificar e analisar lucros e os vários movimentos internos ao capitalismo, mas perdeu a capacidade de entendê-lo como uma prática social, para não falar dos meios para construir qualquer crítica viável a suas crises, danos e limites.
É possível verificar empiricamente a ideia de que o desenvolvimento do capitalismo resultaria em maior prejuízo para os trabalhadores?
A leitura atenta de “O Capital” aponta para uma grande transformação na estrutura e na operação do capitalismo na atual conjuntura histórica. É um desenvolvimento que eu chamaria de capitalismo pós-humano, tendência recém-dominante no capitalismo do século 21 para a força de trabalho humana tornar-se o que Marx chamou de “infinitesimal e em extinção”.
Essa tendência não é contrariada pelo fato de que, desde a década de 1980, sempre mais pessoas no mundo “trabalham” (em condições sempre mais precarizadas).
Pelo contrário, são duas consequências da mesma tendência.
Esse aumento numérico é a forma visível da tendência de que a humanidade continua a depender do trabalho assalariado para a sobrevivência. A desvalorização da força de trabalho é, por outro lado, a forma conceitual da tendência, em que a automação reduz constantemente o valor da força de trabalho aos níveis “infinitesimais”.
Até a década de 1940, todo o algodão era colhido à mão. Hoje, em um mercado global, um colhedor de algodão na Índia, que ainda trabalha com as mãos, compete com colheitadeiras automáticas no Texas, que colhem, com um único motorista, 300 vezes mais por dia.
No passado, novas commodities e novos setores de serviços reempregavam força de trabalho dispensada devido à automatização de outros segmentos. Hoje, as novas áreas e processos criados já são automatizados.
Pode-se argumentar que o capitalismo entrou nessa nova fase nos últimos dez ou 20 anos. Sua característica é a automatização generalizada dos processos produtivos, com a tendência de eliminação de postos de trabalho não só no Norte mas também no Sul, de forma ainda mais devastadora.
Os sinais dessa transformação estão em toda parte, mas sua natureza e as forças que a dirigem mal foram compreendidas, a meu ver, tanto pela esquerda quanto pelos economistas neoliberais.
Por volta do ano 2000, estudiosos da tecnologia diziam que seria impossível fabricar um carro de forma totalmente automatizada; hoje não só vemos tais carros nas estradas como temos previsões de que 85% de toda a produção global possa estar automatizada dentro de uns 20 anos.
No entanto, esse processo ainda não foi devidamente compreendido como um momento no desenvolvimento histórico e estrutural do capitalismo. Nos artigos sobre o assunto, encontramos meras descrições desses novos processos de automatização e seus efeitos sobre PIB, trabalhadores, salários e empregos, mas nunca uma explicação que vá além de referências vagas e superficiais a “competição” global e “forças do mercado”.
É por isso que a análise de Marx sobre a estrutura do capitalismo é mais urgente do que nunca.
Embora as transformações que têm ocorrido desde o ano 2000 não pudessem ser fenomenologicamente percebidas por Althusser em 1965, elas eram bem compreendidas por Marx, que claramente delineou a lógica estrutural desse processo em “Fragmento sobre as Máquinas”, texto de 1858.
Para formular o que pode ser uma política pós-capitalista, acredito que seja necessário atingir uma compreensão clara e adequada sobre a natureza e os limites dessa nova forma do capitalismo. O lugar para começar e desenvolver esse entendimento contemporâneo, com toda complexidade e rigor, tenho certeza de que continua sendo a obra-prima de Marx.
O que é ser marxista hoje?
Há mais de 150 anos, os escritos políticos e filosóficos de Marx são a referência mais penetrante para a crítica sistemática do capitalismo e a luta militante para derrubar seu reinado de iniquidade sobre uma parcela cada vez maior da humanidade. Ao mesmo tempo, ao longo do século passado, “marxismo” e “marxista” designaram uma sistemática incompreensão e simplificação de sua teoria.
Não me consideraria um “marxista”. Sou um estudioso da monumental crítica conceitual de Marx ao capitalismo, tentando compreendê-la para desenvolver o mais rigorosamente possível sua implicação para o capitalismo contemporâneo e o imperialismo tardio.
Talvez, então, ser marxista hoje significaria, no mínimo, a recusa firme em abandonar o pensamento de Marx e orientar a própria crítica e ação na luz que ele lança sobre os obscuros desastres da era atual do capitalismo pós-humano.
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/09/1918777-nos-150-anos-do-capital-professor-defende-que-voltar-a-marx-e-essencial.shtml
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