Sociedade

Narcisa Amália: a poeta, jornalista e abolicionista que você não conhece

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Juliana Domingos de Lima – Estar “à frente de seu tempo” é um clichê frequentemente aplicado a artistas. Ele é ainda mais frequente para descrever artistas mulheres que atuaram antes ou no início do século 20.

Isso porque, como escreveu a historiadora da arte Linda Nochlin em 1971, no clássico ensaio “Por que não houve grandes mulheres artistas?”, as condições do meio artístico foram, ao longo da história,  “entediantes, opressivas e desestimulantes para todos aqueles que, como as mulheres, não tiveram a sorte de nascer brancos, preferencialmente da classe média e acima de tudo homens”. As mulheres artistas do passado estavam necessariamente desafiando o status quo, pelo simples fato de se proporem a criar.

Mas para além de ser mulher criando no século 19, a ideia da artista de vanguarda também no aspecto político e dos costumes certamente se aplica à brasileira Narcisa Amália.

Ela nasceu em 1852, no município fluminense de São João da Barra. Foi jornalista profissional e professora, publicou uma antologia de 44 poemas aos 20 anos, se casou duas vezes e, nas duas, rompeu o matrimônio. No século 19, quando o estigma social enfrentado por uma mulher desquitada era enorme.

As nebulosas de Narcisa

“Nebulosas” é o primeiro e único livro de Amália, publicado em 1872, e ganhou uma nova edição em 2017 pela editora Gadiva e a Fundação Biblioteca Nacional. Originalmente, foi publicado pela prestigiada editora Garnier, sem que a escritora tivesse que custear sua publicação, o que era raro para uma mulher à época. Foi muito bem recebido, comentado inclusive por Machado de Assis e Dom Pedro 2°.

Apesar disso, o livro não é abordado em sala de aula, não faz parte da lista dos vestibulares, e não aparece na maioria dos compêndios de história da literatura brasileira. Segundo a apresentação da nova edição da obra, escrita pela pesquisadora Anna Faedrich, o nome de Narcisa Amália seria mencionado por um teórico apenas em 1965, no livro “Poesia Romântica”, de Péricles Eugênio da Silva Ramos, quase 100 anos após a publicação de “Nebulosas”.

“Se analisarmos o volume e o teor da produção de escritoras na passagem do século (19 para 20) pela história literária atual, não é exagero afirmar que nenhuma mulher aparece. Se aparece, não há análise literária sobre sua obra. É como se a autoria feminina – relevante – não tivesse existido antes de Rachel de Queiroz [autora do romance “O Quinze”, de 1930]”, escreve Faedrich na apresentação. Segundo a pesquisadora, a produção cultural feminina do período foi expressiva, embora ignorada pelo cânone.

A obra poética de Amália dialoga com a dos grandes nomes da poesia romântica brasileira, como Castro Alves, Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu, todos regularmente citados na história literária.

Na temática, os poemas de “Nebulosas” cobrem todas as gerações do Romantismo: há os que são nacionalistas, os que tratam do sofrimento do amor romântico e os que são engajados na crítica às injustiças da sociedade monarquista e escravocrata do século 19 no Brasil.

Os poemas políticos de Amália, como “O africano e o poeta” e “Perfil de escrava”, são os que, segundo a pesquisadora e professora da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) Anna Faedrich, mais desafiam as concepções da crítica desencorajadora feita por homens letrados à produção feminina na época. Das mulheres, era esperado somente falar de amor e do espaço doméstico.

“No canto tristonhoDo pobre cativoQue elevo furtivo,Da lua ao clarão;Na lágrima ardenteQue escalda-me o rosto, De imenso desgosto

Silente expressão”

“O africano e o poeta”

Poema de Narcisa Amália do livro “Nebulosas”

Por que não ouvimos falar da poeta

Para além da obra poética, Amália ocupou lugar de destaque nos periódicos do Rio de Janeiro, nos quais publicava assiduamente. Ainda assim, não é conhecida do público brasileiro. Em alguns desses textos publicados na imprensa, fica claro que seu pensamento é, além de republicano, feminista: ela se preocupa com a emancipação e a condição das mulheres de seu século.

O trabalho de pesquisa de Faedrich investiga por que, apesar da recepção elogiosa, os trabalhos das mais de 150 – segundo documenta a antologia de três volumes da pesquisadora Zahide Lupinacci Muzart  – escritoras brasileiras em atividade no século 19 não permaneceram nos registros.

Em entrevista ao Nexo, a pesquisadora sugeriu algumas hipóteses sobre o apagamento dessas autoras. A primeira é a exclusão, baseada no gênero, da existência das mulheres da história literária oficial. “Elas não tinham entrada nos registros que perpetuam o que é o cânone na literatura”, disse.

Faedrich também descreve um certo descaso com a obra dessas mulheres após a morte. Muitas vezes, cabe à família preservar a obra, e a pesquisadora percebe que no caso das autoras, muitas vezes as famílias não tiveram interesse em cuidar do espólio, o que facilitou sua supressão dos registros e a ausência das reedições.

Ela chama atenção, além disso, para o fato de que, muitas vezes, nem uma recepção positiva favorecia as autoras. O aval masculino, dado por meio da crítica praticada em jornais e periódicos ou em prefácios à obra, era necessário para legitimar a produção escrita dessas mulheres. Mas, muitas vezes, nas entrelinhas do elogio, o autor estava subliminarmente diminuindo e desencorajando-as a escrever, diz Faedrich. Muitas, de fato, não publicavam mais após a estreia.

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