Sociedade

A gramática neoliberal, o bandido bom e o bandido morto

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PAULO MOTORYN – Não é exagerado afirmar que a expressão carrega certos marcadores sociais, e por trás dela se escondem dois problemas estruturais do Brasil: a desigualdade e o racismo

No início de 2017, o País assistiu à explosão de uma vultuosa crise carcerária. Não faltaram cenas dantescas de violência e barbárie, de crueldade e terror, promovidas tanto pelo Estado quanto pelas facções criminosas dentro dos presídios. Nesse cenário, uma vez mais veio à tona uma velha frase que dá o que pensar.

A expressão “bandido bom é bandido morto” tornou-se uma espécie de síntese do pensamento autoritário brasileiro, criando no imaginário social algo como uma demarcação política entre aqueles que a enunciam e por isso se opõem aos direitos de cidadania e aqueles que a rechaçam e, portanto, se credenciam como defensores dos direitos humanos.

Para além dos meios militantes e acadêmicos, entretanto, convém observar com mais cuidado tal dicotomia, pois nem sempre aquilo que se fala é o que se quer dizer. Por trás da suposta cisão entre o conservadorismo dos que apoiam a frase e do progressismo dos que a recusam, há uma série de matizes que precisam ser tratados com mais atenção. Afinal, é nas dicotomias e simplificações que se escondem as maiores armadilhas.

Quando se trata de observar a cultura política brasileira, uma certa concepção genérica insinua que a maioria da população do País sofre de uma espécie de conservadorismo atávico e permanente. Disso se deduz automaticamente que somos um povo que adere majoritariamente ao justiçamento, ao encarceramento em massa, à pena de morte e a toda sorte de arbítrios.

Se, por um lado, é inegável que a violência é parte constitutiva da nossa sociabilidade, por vezes assumindo a forma de sadismo, de cinismo e de naturalização da tortura e da intolerância, por outro lado, essa mesma violência é observada com ressalvas quando perpetrada pelo Estado, sobretudo entre os grupos mais pobres e as camadas mais vulneráveis das grandes cidades.

Caminhando na contramão daquele senso comum previamente estabelecido, algumas pesquisas mais recentes sobre cultura política têm demonstrado como, principalmente, nas periferias não há uma maioria nem tampouco uma adesão inconteste a tal ideia de que “bandido bom é bandido morto”.

Aliás, o que ocorre é exatamente o contrário. Afrontada pela violência institucional sistemática, pela política de segurança ostensiva e pela polícia militarizada repressiva, essa parcela da população sabe que, via de regra, quando o Estado brasileiro diz “bandido” ele endereça sua ação, principalmente, contra jovens, pobres e negros das periferias, daí a ampla recusa contra a velha expressão autoritária aqui em tela.

Portanto, a negação da expressão se dá menos pela adesão abstrata a valores progressistas e mais pela necessidade concreta de autopreservação da própria vida. Em suma, a ideia de que “bandido bom é bandido morto” não é um bom termômetro nem para medir o conservadorismo nem para mensurar o progressismo da população. O que se passa por trás dela, entretanto, pode ser algo ainda mais interessante e revelador.

Para parte dos moradores da periferia, ao contrário das interpretações tradicionais, negar que “bandido bom é bandido morto” não é um sinal de progressismo, pois, se o bandido é “bom” ele não morre, ele se safa das perseguições do Estado para continuar em plena atividade, ainda que ela seja ilícita.

De forma análoga, afirmar que “bandido bom é bandido morto” não pode ser tratado imediatamente como um indício de conservadorismo, pois, dessa vez, se o bandido é muito “bondoso” ele deve morrer, mas não por exercer uma atividade ilícita e sim por não dominar as “expertises” da sua função, dentre elas a dureza, a maldade e a capacidade de fuga.

O equívoco das análises convencionais está em pressupor que todos compartilham de um mesmo esquema valorativo em que a ideia de bandido sempre estará associada àquilo que é mau ou ruim. Ora, tal ideia é muito mais um fruto da escala valorativa das classes médias tradicionais e das elites do que propriamente uma ideia universal assimilada pelas classes populares.

Para recorrer a um exemplo próximo, muito se ouviu recentemente a palavra de ordem “Cunha na cadeia”, mas soaria estranho se o mote fosse “Cunha morto”.

Afinal, aqueles a quem o Estado tem tratado sistematicamente, e indevidamente, como bandidos sabem por sua própria experiência que o nome, bandido, nem sempre pode ser associado à coisa, um crime ou um ilícito.

Não é exagerado afirmar que a expressão carrega consigo certos marcadores sociais, e por trás dela se escondem dois problemas estruturais do Brasil: a desigualdade e o racismo. Por definição, bandido é aquele que age fora da lei. Entretanto, quando políticos e empresários cometem crimes, como os de corrupção, o habitual é que se demande a prisão e não a morte.

Para recorrer a um exemplo próximo, muito se ouviu recentemente a palavra de ordem “Cunha na cadeia”, mas soaria estranho se o mote fosse “Cunha morto”. Mesmo se tratando de um notório corrupto, a frase soa agressiva. Essa estranheza e essa agressividade decorrem do fato de que a frase “bandido bom é bandido morto” não traduz uma vontade de justiça, mas sim um desejo de segregação e extermínio que se direciona a certo grupo social de bandidos: aquele composto por pobres, negros e negras.

Enquanto os teóricos atentam para o sujeito da frase, as pessoas comuns observam os adjetivos a ele atribuído: bom e morto. Mais ainda, ao observarem atentamente tais qualificações – de bondade e mortandade –, o que se explicita é uma escala de valores marcada não pelas noções políticas de conservadorismo e de progressismo, mas sim pelas noções econômicas de mérito e eficiência.

O bandido bom é aquele que sobrevive porque, em certa medida, foi capaz de vencer uma competição e teve sucesso em sua atuação; o bandido mau é aquele que sucumbe porque, de certo modo, foi derrotado pela concorrência e não foi capaz de lograr êxito em sua função.

Estamos, portanto, diante de outra gramática social, em que o “ser bom” não é compreendido como princípio ético-moral, mas sim como princípio econômico-mercantil; aqui, o bom não é sinônimo de um ser bondoso, afável e cortês, mas sim de eficiência, eficácia e efetividade.

Uma sociedade que, nos últimos anos, ampliou os mercados de trabalho e consumo sem disputar os sentidos e significados da inclusão e da ascensão social acabou produzindo como efeito colateral um léxico em que a própria palavra valor tem perdido seu efeito civilizatório de valor moral para se reduzir à concepção bárbara de valor mercantil.

Sendo assim, no momento em que essa sociedade experimenta o encolhimento do mercado por conta da crise econômica, é entendível, ainda que não seja aceitável, que ela desnude também todo seu ímpeto de utilitarismo e de darwinismo social.

Pela lógica estritamente liberal, a propósito, a ilegalidade do bandido pouco importa. Afinal, nessa perspectiva, o que é o mercado senão o reino da autorregulação, da mão invisível, da ausência da lei? O dramático, entretanto, é perceber como a conversão da ideologia de mercado em gramática de socialização pode criar uma sociedade perversa, onde, por exemplo, o encarceramento em massa é tratado como problema individual e o assassinato de presos é visto como seleção natural.

É fundamental que se compreenda essa nova gramática social, pois, escondida por trás das tensões entre conservadorismo e progressismo, a lógica da sociabilidade neoliberal avança e se enraíza de forma cada vez mais assustadora, fazendo com que nos pareçamos menos com uma sociedade civil e mais com a barbárie do estado de natureza hobessiano onde o homem é o lobo do homem.

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