IHU – Uma renda básica universal “é uma das propostas mais interessantes que poderiam reconfigurar a discussão sobre direitos e garantias” no Brasil. A avaliação é da professora Tatiana Roque, que dá aula na pós-graduação de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com pesquisas em história da ciência e filosofia francesa contemporânea, ela acredita que a esquerda precisa integrar ainda mais no debate as pautas dos movimentos minoritários (ou identitários), os quais para ela “ganharam novo impulso a partir de junho de 2013”. Não apenas por uma questão de representatividade, mas também porque podem ajudar a elaborar uma nova agenda política e econômica, segundo argumenta. Em tempos de reforma da Previdência e trabalhista Roque diz que a esquerda não tem, e deveria ter, “um projeto próprio de reformas” a ser apresentado para a sociedade.
Presidenta do sindicato dos docentes da UFRJ e bastante atuante no debate sobre o feminismo dentro do mundo acadêmico, a especialista conversa com o El País, 08-08-2017, sobre quais devem ser as novas formas de se fazer política no campo no qual milita.
Eis a entrevista.
Fala-se muito sobre o futuro da esquerda, mas o debate parece estar sendo monopolizado por atores antigos. Por exemplo, Dilma Rousseff dará aula em curso sobre a esquerda no século XXI, o intelectual marxista Ruy Faustoescreveu um livro sobre os caminhos da esquerda e uma coletânea de textos sobre o lulismo também está prestes a sair. O que isso significa para o debate?
Significa que o debate sobre a crise da esquerda está reproduzindo os mesmos problemas que levaram à crise da esquerda.
Quais problemas?
A dificuldade de enxergar que é fundamental uma renovação. Foi um problema que se colocou de forma muito explícita em junho de 2013. Novos atores estavam se apresentando ali na cena política e foram rechaçados pela esquerda, que não conseguiu até hoje dar um sentido para junho de 2013 e entender as pautas, as formas de organização, a estética… Não conseguiu entender o movimento.
Mas junho de 2013 era um caldeirão. De lá também saíram os grupos pró-impeachment…
Discordo dessa visão. Em 2013 os grupos pró-impeachment, como grupos organizados, não estavam ali. Eles surgiram depois. Pode até ser que pessoas que foram nas manifestações de junho tenham ido a outras depois, mas não temos como saber exatamente. Junho de 2013 foi muito mais jovem do que as manifestações pelo impeachment, por exemplo, como mostraram algumas pesquisas. A esquerda precisa trazer essas pessoas. Não adianta fazer livros [como os citados acima] sobre a crise da esquerda com os atores que estavam no poder ou que estão disputando pela via do poder. Porque é justamente isso que foi colocado em xeque em junho de 2013. Havia uma demanda pela renovação do sistema político, tanto é que aqueles que conseguiram se organizar e fazer algo que desse uma continuidade a junho de 2013 foram movimentos autônomos e movimentos de mulheres ou negros… Os grupos identitários são fundamentais para esse debate. Não é só uma questão de representação, mas esses grupos podem ajudar a pensar os desafios que a esquerda enfrenta nesse momento para se renovar. Eles ficaram de fora e, ao contrário, foram massacrados pelos últimos governos, como é o caso dos movimentos indígenas. Não foram ouvidos ao apontarem as falhas do modelo de desenvolvimento que levou a Belo Monte.
A esquerda possui hoje uma agenda econômica?
Este é o segundo problema. E grave. O debate econômico fica muito polarizado entre o neoliberalismo e uma mistura de desenvolvimentismo e nacionalismo. A esquerda transita entre esses últimos projetos, que não são lá muito novos e que mostraram ter deficiências. É muito fácil dizer que falharam porque não foi bem feito. Até que ponto falhou porque não foi bem feito ou falhou porque esse tipo de projeto não se adequa mais à sociedade contemporânea? Esse debate não está sendo feito.
Há uma reforma da previdência tramitando, uma reforma trabalhista que acaba de ser aprovada… Alguns partidos vêm negando a necessidade dessas reformas e se ausentaram da mesa de negociação. Elas acabaram sendo tocadas pelo PMDB, PSDB e os partidos da base.
As reformas que estão hoje na mesa estão sendo propostas por um governo ilegítimo. O que é uma pena é que a esquerda não tenha, ela mesma, um projeto de reformas que consiga resolver alguns impasses relativos aos gastos públicos, que existem, ao mesmo tempo em que mantenha um caráter de justiça social, de garantia cidadã, de garantia aos trabalhadores, de garantia à aposentadoria. É preciso pensar isso: como distribuir melhor essa conta. Mas de modo a não afetar os pobres, que já são muito sacrificados.
No passado a esquerda se apropriou de ideias que nasceram no campo liberal. O maior exemplo é o Bolsa Família, que hoje é quase uma unanimidade no campo da esquerda. Por exemplo, em questões como a reforma da Previdência, onde existe não só um problema fiscal mas também de privilégios, acha que a esquerda deve puxar esse debate para si?
O Bolsa Família foi muito criticado por uma esquerda que só acredita em políticas universais e que não reparou que essa política poderia mudar a configuração de poder na sociedade ao empoderar grupos menos favorecidos, como aconteceu de fato. Em muitos lugares isso, inclusive, estimula o desenvolvimento. Uma proposta que serve para recolocar o debate em relação a isso é a da renda universal. É uma das propostas mais interessantes capazes de reconfigurar essa discussão sobre direitos e garantias.
Muita gente na esquerda diz que essa renda não seria desejável porque seria uma forma de diminuir as garantias constitucionais, os direitos da Previdência etc. Mas acho que é o contrário. É uma maneira de recolocar o debate a partir de outro patamar. Mas a esquerda tem certo problema de abraçar essa proposta porque permanece esse fetiche de que os direitos têm que estar associados ao emprego. Há uma insistência nesses projetos, inclusive na política econômica, que visam chegar ao pleno emprego…
Mas fica cada vez mais claro que é impossível de se chegar a esse patamar na atualidade, em uma sociedade cada vez mais automatizada e baseada em serviços. Por isso é importante deslocar essa discussão para a renda, não insistir tanto sobre o emprego. Ou seja, pensar que as garantias sociais não necessariamente precisam estar associadas ao emprego formal, em um país onde a maioria dos trabalhos é informal.
A reforma trabalhista aprovada é vista como uma catástrofe, mas existe um grau de informalidade grande, como você disse. Qual alternativa a essa reforma?
Acho que regulamentar melhor a flexibilidade do trabalho que existe hoje é desejável. O problema é como isso foi feito. A gente está vendo o modelo de uberização, e vamos fazer o quê? Pedir o fim do Uber e do trabalho como motorista do Uber? Claro que não. Precisamos regulamentar isso e pensar direitos adequados para esse tipo de trabalho. Claro que isso precisa de uma reforma trabalhista, mas não essa que está aí. Mais uma vez esse é o problema: quando a gente se recusa a discutir, a direita vai lá e faz. Não tem negociação possível com esse governo, mas num projeto de esquerda para um possível futuro governo seria fundamental ter uma proposta de reforma trabalhista e da Previdência, tentar colocar esse debate na sociedade e ganhar apoio. E aí negociar com o Congresso.
A informalidade e as novas formas de trabalho estão principalmente na periferia. Ao não reconhecê-las, acha que a esquerda perdeu o contato com a periferia e com realidade dos que moram e trabalham lá?
Essas pessoas querem mais autonomia, como todo mundo. Elas precisam de um patamar para escolher se elas querem um trabalho ruim ou não. Por isso discutir a renda universal é importante. Isso permite que uma pessoa recuse formas de trabalho, ofertas de emprego que sejam de exploração extrema, precárias demais. É preciso mudar esse patamar. Quando as pessoas dizem que elas sonham em ter o próprio negócio, por exemplo, eu entendo que elas querem inventar sua forma de trabalhar e de viver. Elas não querem ser exploradas por alguém. Agora, é claro que elas também querem as garantias e direitos que hoje estão associados ao mundo do trabalho: férias, décimo terceiro, aposentadoria…
A grande questão é: como trazer e manter essas garantias para a população mais pobre sem necessariamente associar isso ao emprego? Porque o emprego não vai existir para todo mundo. E mesmo que tenha para uma parcela da população, vai ser muito difícil nas atuais circunstâncias, no mundo em que a gente vive, que esse emprego não seja precário. O horizonte do pleno emprego que a esquerda defende não existe. Há uma diminuição do mercado de trabalho formal, do assalariamento. Isso ainda está em debate. Uns acham que não, mas outros dizem que a tecnologia já está substituindo grande parte do trabalho e que isso resulta na precarização do mundo do trabalho e na diminuição do emprego assalariado. Em minha opinião essa tendência é irreversível e temos que sair do paradigma do emprego. Por isso os direitos precisam ser desvinculados do emprego. Ao invés do país ter que crescer primeiro para dar emprego para todo mundo e, a partir de então, as pessoas terem renda… Melhor dar direto a renda. Deveria haver um mínimo a que todos têm direito.
Acredita que a esquerda utiliza alguns atalhos para vender soluções fáceis?
Um bom exemplo é a auditoria da dívida. Isso virou uma panaceia na esquerda. Quando se fala na resolução do problema do orçamento, grande parte da esquerda, principalmente o PSOL, acena com essa solução. Mas há economistas de esquerda, inclusive do PSOL, que mostram que isso é uma coisa sem sentido. Agora, mudar o nosso sistema tributário, fazendo com que se torne menos regressivo e mais progressivo, é um caminho excelente e necessário. Parte do campo liberal inclusive concorda com isso. É algo factível, possível de pactuar. Mas quais são as forças que vão hoje chegar a acordos com esses diferentes campos, que estão totalmente polarizados, para nos tirar do buraco? Esse é o nosso impasse. Primeiro temos que arrumar a casa, fazer esses acertos com que todos concordam, para depois ver o que é preciso fazer para ir além. E aí sim fazer uma disputa mais acirrada de projeto.
Há pouca diversidade entre os principais quadros e referências da esquerda. A maioria são homens mais velhos, brancos e que hoje formam parte de uma classe média ou elite. Como saber se estão defendendo o interesse público e não interesses classistas ou corporativistas?
Tem um problema de fundo: o fato de que a esquerda, muitas vezes, fala em nome de alguém: em nome dos pobres, em nome das classes populares, em nome da classe trabalhadora. E acho que está aí o problema. Essas pessoas têm que falar por si. Mas para que elas falem por si, é preciso que elas tenham o mínimo de possibilidades. Que foi o que começou a acontecer, por exemplo, com a expansão e democratização da universidade nos últimos tempos e também com o Bolsa Família. Não são medidas apenas de justiça social, mas também trazem novos atores para a cena. Mas isso não foi suficientemente utilizado. Os governos do PT tiveram uma política transformadora de expansão e democratização das universidades. Mas depois não usaram a força que estava sendo gestada ali para ajudar a conceber as políticas e pensar o Brasil. Ao contrário.
Acredita em uma renovação do PT? Ou que PSOL e REDE sejam alternativas?
Não acredito que haja renovação no PT. Isso pra mim é uma história muito antiga. Era para ter havido uma renovação em 2005 ou 2006. Se não teve antes, não é agora que vai ter. E o PSOL ainda é dominado, na sua imagem pública, por propostas completamente irrealistas. Tem uma imagem para a população de ser um partido extremamente sectário, radical, que tem propostas irreais e que não podem ser implementadas facilmente com a atual configuração de forças no Brasil. Marcelo Freixo [deputado estadual fluminense] teve uma boa votação [para a Prefeitura do Rio] apesar do PSOL, porque ele consegue ir além. O partido é muito limitado e vai continuar sendo um partido de parlamentares. Vai dialogar com a periferia com um discurso socialista? Você acha que a periferia carioca vai aderir a um programa socialista a essas alturas do campeonato? Jamais. É completamente irreal.
A gente precisa urgente de um partido de esquerda que se proponha a fazer esse diálogo com a sociedade e que seja realista. No início achei que a Rede fosse exercer esse papel, mas depois fiquei muito decepcionada com relatos das pessoas que saíram da Rede, que dizem que a discussão política é muito difícil porque é o partido é muito marcado por grupos de influência. Não é uma discussão aberta, franca e democrática. Mas parlamentares como Alessandro Molon [deputado federal] e Randolfe Rodrigues[senador] são excelentes e podem ser referências nesse debate nacional.
Além deles, o que acha do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad e Freixo, duas figuras em ascensão?
Acho o Haddad um nome importante, fez coisas boas e outras criticáveis. Mas tem um ponto muito expressivo sobre o que se tornou a esquerda e sobre os impasses que a esquerda vive hoje que é junho de 2013. A leitura dele sobre o período é lamentável. Ele seria importantíssimo numa frente para avançar um projeto progressista, num novo pacto e que inclusive traga setores mais liberais que possam ajudar a arrumar a casa antes da gente entrar numa disputa de projetos acirrada. Ele é um bom nome, mas precisa fazer um ajuste de contas com 2013. O Freixo também é um nome importante, uma figura aberta e muito digna. A imagem dele é um capital. Mas ele tem que se descolar do PSOL.
“A luta na universidade não passa necessariamente pela greve”
Tatiana Roque é presidenta do sindicato dos docentes da UFRJ, mas tem uma visão pouco ortodoxa sobre a forma com que os professores devem levar a cabo suas lutas dentro da universidade, muito centradas nas greves. “Há uma repetição desgastante desse instrumento, o que acabou desmoralizando e banalizando o próprio instrumento. Ele precisa ser pensado para esse tipo de trabalho. Porque parar de trabalhar numa fábrica é uma coisa, você afeta diretamente o lucro do patrão. Mas dar aula na graduação é o trabalho mais socialmente reconhecido que a gente faz. E fazer greve significa muitas vezes continuar nosso trabalho de produção intelectual, mas parar de dar aula na graduação”, argumenta. Ela também diz ser “totalmente contra” o imposto sindical e favor da pluralidade sindical. “É importante que tenhamos uma sindicalização que seja facultativa e que, com vários sindicatos, as pessoas possam se identificar mais ou menos com um ou outro, e escolher a qual querem se filiar. Isso faria com as pessoas se sentissem mais identificadas com o sindicato”
Em tempos de crise e fechamento da UFRJ, o financiamento da universidade pública está em xeque. Há inclusive vozes que pedem pelo início da cobrança de mensalidades, mas Roque se diz contrária a essa iniciativa. “Com a distribuição de renda que nós temos hoje na universidade, a cobrança de mensalidade, sendo feita em cima só de quem pode pagar, seria inócua. Estaríamos colocando em xeque algo que é visto como direito de todos, um direito universal, em troca de quase nada”, argumenta ela. “E tem outra questão: em qualquer lugar do mundo uma instituição que faz pesquisa é financiada com dinheiro público. É impossível escapar dessa necessidade, que deve ser vista como estratégica para o país”, diz. Mas pondera: “Acho que a universidade precisa aprender a gerir melhor os recursos. Há um problema de gestão e de prestação de contas para a sociedade e tem que haver mais transparência”.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/570453-a-esquerda-deve-ter-um-projeto-proprio-de-reformas-trabalhista-e-da-previdencia
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