Wladimir Pomar – Este comentário surgiu da constatação de que existem pessoas sinceras que ainda acreditam na queda do Muro de Berlim e no desmonte da União Soviética como fatores que atingiram todas as esquerdas e fizeram com que seus pensamentos passassem a girar como um pião e a reproduzir variantes de interpretação marxista. O que teria impedido o aprofundamento de questões transversais e levado alguns, como os socialistas e trabalhistas da Europa, a apoiar o sistema financeiro, naquilo que ele mais precisava, isto é, na implementação de ações neoliberais.
Tais pessoas acreditam que há setores esquerdistas que teriam mergulhado na globalização com base na suposição de que, segundo Proudhon, “pereça a Pátria e salve-se a humanidade”. Com isso teriam relegado a questão da soberania nacional para satisfazer aos interesses do setor financeiro global, já que este não mais admite ser regulado em nível nacional. Tal nível seria incapaz de prevenir as ameaças de riscos e de experiências econômicas traumáticas, que levariam à perda do controle político e provocariam mudanças nas condições de vida e nas relações de poder do mundo globalizado.
Aqueles setores esquerdistas, portanto, teriam capitulado ao poder do mercado financeiro e à mobilidade das empresas e bancos internacionais, que crescem mais através de fusões e participações do que através de novos investimentos reais, transformando de modo crescente a forma e os resultados da divisão do trabalho em nível internacional. A competição internacional ocorreria somente entre poucos monopólios, fazendo com que as pequenas e médias empresas se tornassem, cada vez mais, quando ainda sobrevivem, dependentes das gigantes. Os monopólios internacionais teriam conquistado uma posição dominante nas negociações com os governos, conformando e consolidando uma ditadura em meio a uma aparente democracia.
Isso tornaria necessária uma formulação de resistência que não se deixasse enganar por apelos ecológicos (os verdes de todo o mundo estariam apoiando a globalização), por deturpações em questões de gênero e do isolamento social, por muitas outras armadilhas que o quase-monopólio midiático propagandeia, e por supor a existência de um proletariado internacional, que nunca teria existido. A demonstração mais cabal de tal inexistência seriam os salários desiguais, entre 15 mil e 23 mil dólares americanos, nos países capitalistas desenvolvidos, e entre 1,6 mil e 6,5 mil dólares americanos nos países pobres, conforme dados da ONU.
Não há dúvidas de que, bem antes da queda do Muro de Berlim e do fim da União Soviética, os pensamentos de vários setores da esquerda haviam passado a girar como piões, embora os marxistas tenham contraditado os socialistas europeus e Proudhon justamente por tais pensamentos. Mesmo porque, a rigor, ao invés de reproduzir variantes das interpretações marxistas, tais setores reproduziam variantes de interpretações antimarxistas.
Do ponto de vista marxista, não é surpresa o atual poder do sistema financeiro capitalista, nem a mobilidade das empresas e dos bancos internacionais capitalistas, que crescem não só através de fusões e participações, mas também através das crises e dos investimentos em países agrários e agrário-industriais, tornando o mundo, cada vez mais, ocupado pelo modo capitalista de produção. Portanto, não é surpresa que o sistema capitalista tenha atingido o atual nível de globalização e a competição internacional ocorra, em grande medida, não só entre poucos monopólios, mas também entre estes e empresas estatais e privadas das nações emergentes.
Karl Marx, no tomo 3 de O Capital, na segunda metade do século 19, com base no estudo das leis de desenvolvimento das contradições do modo de produção ou da formação social capitalista, já havia intuído alguns desses fenômenos, assim como as condições para sua implementação, contra os pensamentos de Proudhon e de outros socialistas de então. No início do século 20, com base no estudo do desenvolvimento histórico desigual do capitalismo no mundo, Vladimir Lênin e alguns outros marxistas demonstraram que aquelas previsões já começavam a materializar-se, com a formação dos trustes e cartéis e com o domínio imperial capitalista sobre as nações atrasadas, colocando o mundo sob a ameaça de guerras imperialistas destruidoras.
A história do século 20 demonstrou que as análises de Marx, Lenin e outros marxistas estavam condizentes com a realidade. As crises globais, assim como as destruições causadas pelas duas guerras mundiais, confirmaram, por um lado, que o capitalismo se desenvolve através de destruições cíclicas das antigas forças produtivas (aqui incluindo a destruição de grandes contingentes de força de trabalho), seguidas de revoluções técnicas capazes de elevar a produtividade e a produção de mais-valia, a base do lucro capitalista.
Marx apenas se enganou, em parte, ao considerar que revoluções socialistas só ocorreriam em países desenvolvidos do ponto de vista capitalista, o que foi desmentido pela revolução russa de 1917 e por uma série de outras revoluções que se estenderam até anos 1970, em virtude da transferência do epicentro da luta de classes dos países capitalistas avançados para os países atrasados.
Dos anos 1970 em diante, o mundo passou a ser marcado por uma profunda reestruturação do capitalismo nos países em que era mais desenvolvido (em especial os Estados Unidos) e pela extensão do modo de produção capitalista pela maior parte do globo.
Em virtude da elevação da produtividade do trabalho (fruto das novas revoluções tecnológicas), da tendência da queda da taxa média de lucro, da brutal concentração do capital num número cada vez menor de corporações empresariais, tendo o sistema financeiro como organizador do processo produtivo e de circulação de mercadorias, os países capitalistas desenvolvidos realizaram uma mudança radical em seu processo de exportação de capitais. Passaram a combinar a exportação de capitais na forma financeira com a exportação de plantas industriais segmentadas e/ou completas para países onde a força de trabalho era mais barata. Os dados da ONU sobre os níveis salariais nos países avançados e nos países atrasados são eloquentes.
Em outras palavras, ao mesmo tempo em que se desindustralizaram, e em que aniquilaram os parques industriais de países que aceitaram a exportação de capitais predominantemente na forma financeira (caso do Brasil), as potências capitalistas espalharam suas indústrias pelos países que não aceitaram a forma financeira, in totum ou em parte, contribuindo para seu desenvolvimento industrial e tecnológico (casos da China, Vietnã, Índia etc.), e para uma reconfiguração mundial em que a unipolaridade norte-americana vem sendo crescentemente substituída pela multipolaridade e a atual crise global do capitalismo, com todos os perigos de conflito bélico mundial que engendra, tende a acentuar tal reconfiguração.
É nesse quadro que o marxismo se torna cada vez mais necessário como instrumento de análise. Não só para entender o processo descrito acima, mas também para confirmar que, embora não exista um proletariado internacional no sentido de uma classe social unificada internacionalmente, a atual soma dos diversos proletariados nacionais é muito superior à soma presente no período anterior às duas guerras mundiais do século 20.
Embora essa classe sofra um profundo descarte causado pelo desemprego estrutural e pela crise global nos Estados Unidos, no Japão e em vários países da Europa e de outras regiões e países assolados pelo neoliberalismo, ela continua se expandindo naqueles países em que o desenvolvimento industrial e o crescimento econômico se mantêm. O que exige, das esquerdas, políticas adequadas de luta anticapitalista (sem esquecer que a fração financeira é hegemônica, mas não é a única fração do capital) para cada situação concreta, tendo por base seu proletariado, o grau de desenvolvimento do capitalismo nacional, as demais classes existentes (no caso do Brasil, os excluídos), e questões transversais importantes, como a melhoria do meio ambiente, a diversidade de gênero etc. etc.
Em tais condições, é bom colocar de lado os preconceitos e levar em conta que o marxismo pode ser um instrumento mais do que valioso.
http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12762-sobre-o-marxismo-e-questoes-transversais
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