Sociedade

Fotografias sem Retoques do Trabalho Global

Tempo de leitura: 15 min

Ricardo Antunes – Nas úl­timas dé­cadas do sé­culo pas­sado flo­res­ceram muitos mitos acerca do tra­balho. Com o avanço das tec­no­lo­gias de in­for­mação e co­mu­ni­cação não foram poucos os que pas­saram a acre­ditar que uma nova era de fe­li­ci­dade se ini­ciava: tra­balho on­line, di­gital, era in­for­ma­ci­onal, enfim, aden­trá­vamos fi­nal­mente o reino da fe­li­ci­dade. O ca­pital global só pre­ci­sava de um novo ma­qui­nário, agora des­co­berto.

O mundo do labor fi­nal­mente su­pe­rava sua di­mensão de so­fri­mento. A so­ci­e­dade di­gi­ta­li­zada e tec­no­lo­gi­zada nos le­varia ao pa­raíso. Sem tri­pa­lium e quiçá até mesmo sem tra­balho. O mito eu­ro­cên­trico, que aqui foi re­pe­tido sem me­di­ação e com pouca re­flexão, pa­recia fi­nal­mente flo­rescer.

Mas sa­bemos que o mundo real é muito di­verso do seu de­senho ideal. E a Mostra Con­tem­po­rânea In­ter­na­ci­onal da Eco­fa­lante não po­deria ter sido mais feliz em sua es­colha. Pri­meiro por des­tacar um tema cru­cial para toda a hu­ma­ni­dade hoje: o tra­balho. Se­gundo, por ofe­recer ao pú­blico uma série em­ble­má­tica de filmes e do­cu­men­tá­rios que além de con­tra­ditar e fazer des­mo­ronar os mitos, ofe­rece um mo­saico do mundo do tra­balho real que hoje se ex­pande em es­cala pla­ne­tária.

A re­a­li­dade é um mas­sacre

Se o uni­verso do tra­balho on­line e di­gital não para de se ex­pandir em todos os cantos do mundo, é vital re­cordar que o pri­meiro passo para se chegar ao iPhone, iPad ou as­se­me­lhados, co­meça com a ex­tração de mi­nério, sem o qual o dito cujo – o ce­lular – não pode ser pro­du­zido. E as minas de carvão mi­neral da China e em tantos ou­tros países mos­tram que o ponto de par­tida do tra­balho di­gital se en­contra no brutal tra­balho re­a­li­zado pelos mi­neiros. Da ex­tração até sua ebu­lição, assim ca­minha o tra­balho no in­ferno mi­neral.

E é jus­ta­mente esse o tema de Gi­gante, um filme de­vas­tador. Do for­mi­gueiro for­mado pelos ca­mi­nhões à en­trada das minas, até o tra­balho sob tem­pe­ra­tura mais que de­ser­ti­fi­cada, Gi­gante mostra como as minas são uma ver­da­deira su­cursal do in­ferno. Aci­dentes, con­ta­mi­nação, de­vas­tação do corpo pro­du­tivo, mortes – tudo isso ocorre na so­ci­e­dade dos que ima­gi­naram que as tec­no­lo­gias de in­for­mação eli­mi­na­riam o tra­balho de mu­ti­lação.

A me­tá­fora do di­retor Zhao Liang mostra que a China das grandes e glo­bais cor­po­ra­ções não existe sem o tra­balho brutal e ma­nual em seus rin­cões e gro­tões. Ainda que tenha ci­dades fan­tasmas…

Con­su­mido, de Ri­chard Sey­mour, segue o mesmo per­curso. Co­meça com o tra­balho nas minas, passa pelo setor têxtil, avança para o es­paço da pro­dução di­gital, não sem mos­trar o vi­li­pêndio do tra­balho imi­grante, este ex­po­nen­cial seg­mento do pro­le­ta­riado global que é, si­mul­tânea e con­tra­di­to­ri­a­mente, tão im­pres­cin­dível quanto su­pér­fluo, para o sis­tema do ca­pital.

Mas se o mundo do tra­balho di­gital co­meça no uni­verso mi­neral, também na planta pro­du­tiva au­to­ma­ti­zada dos ce­lu­lares e mi­cro­e­le­trô­nicos vi­ceja a ex­plo­ração in­ten­si­fi­cada do labor.

Não é por acaso que o pri­meiro mi­nistro da Índia propôs, pouco tempo atrás, aquele que deve ser o slogan do se­gundo país gi­gante do Ori­ente: assim como a China se ce­le­brizou pelo Made in China, a Índia deve ce­le­brizar-se pelo Make in India, uma vez que a ex­plo­ração do tra­balho do ope­ra­riado chinês é café pe­queno frente ao vi­li­pêndio da su­pe­rex­plo­ração no país das classes e das castas, dos bi­li­o­ná­rios e dos mais que mi­se­rá­veis.

Es­cra­vismo mo­derno

E é esse o mote do ex­plo­sivo Má­quinas, que nos ofe­rece uma fo­to­grafia di­reta do mundo também in­fernal do tra­balho nas in­dús­trias de tin­gi­mento de te­cidos, onde ho­mens, mu­lheres, cri­anças, todos e todas, la­boram diu­tur­na­mente para dar con­cre­tude ao Make in India. Jor­nadas de 12 horas ou mais, turnos in­fin­dá­veis, lo­cais de tra­ba­lhos in­des­cri­tí­veis e dis­tân­cias imensas a serem per­cor­ridas entre casa e tra­balho: esse é o co­ti­diano vi­ven­ciado pelo povo in­diano que con­segue tra­balho.

Na outra ponta, um pa­tro­nato in­vi­sível que sabe co­mandar com con­trole bem vi­sível, através de pa­nóp­ticos te­le­vi­sivos. Tudo isso e muito mais apa­rece na peça pri­mo­rosa do di­retor Rahul Jain.

Cena de Má­quinas

O ope­rário que car­rega ga­lões de 220 kg e diz que seu tra­balho é também um “exer­cício in­te­lec­tual, ce­re­bral”, os ba­nhos para se limpar da su­jeira diária das tintas; as mãos de­vas­tadas pelo calor das cal­deiras; os corpos que são tra­gados pelas má­quinas; as múl­ti­plas formas de re­sis­tência e re­beldia do tra­balho até a re­pressão do em­pre­sa­riado sel­vagem (que sempre quer saber “quem é o líder?”), Má­quinas nos mostra um pouco (ou muito) de tudo.

E já que es­tamos fa­lando do mundo asiá­tico, Com­plexo Fa­bril, da Co­reia do Sul, é também um primor. O mundo do tra­balho fe­mi­nino nos é apre­sen­tado em seu modo afe­tivo, de­li­cado, qua­li­fi­cado, ex­plo­sivo, forte, in­dig­nado. As opres­sões vão, uma a uma, sendo en­fi­lei­radas: de­mis­sões, hu­mi­lha­ções, con­di­ções sub-hu­manas, re­sis­tên­cias, tanto as in­di­vi­duais como as co­le­tivas.

O mito do tra­balho na Sam­sung, agu­da­mente de­nun­ciado, com seus ado­e­ci­mentos e con­ta­mi­na­ções: com os as­sé­dios, baixos sa­lá­rios, su­pe­rex­plo­ração e sempre forte re­pressão. As di­fi­cul­dades para or­ga­nizar sin­di­catos, o acon­te­ci­mento das lutas das mu­lheres ter­cei­ri­zadas, suas greves, seus con­frontos, como o May Day, dia de luta das tra­ba­lha­doras para de­nun­ciar suas con­di­ções ne­fastas de tra­balho, a vi­ru­lência po­li­cial, os as­sé­dios, os vi­li­pên­dios. Mas também as flores na vi­tória!

As trans­ver­sa­li­dades entre classe, gê­nero, etnia, ge­ração, tudo apa­rece nas fá­bricas com­plexas. Nos call cen­ters, na in­dús­tria de ali­mentos (corte de aves), na in­dús­tria têxtil, nos hi­per­mer­cados. As tantas cenas pre­sentes no uni­verso fe­mi­nino fazem des­mo­ronar os mitos dos tra­ba­lhos brandos, tec­no­lo­gi­zados, as­sép­ticos.

A tra­gédia também é oci­dental

Mas que não se pense que essa seja uma re­a­li­dade só do Ori­ente, do mundo asiá­tico. Nada disso. Em­bora na (nova?) di­visão in­ter­na­ci­onal do tra­balho a in­dús­tria con­si­de­rada “limpa” es­teja pre­fe­ren­ci­al­mente no Norte do mundo e a in­dús­tria “suja”, po­lui­dora e ainda mais des­tru­tiva se en­contre cen­tral­mente no Sul, a glo­ba­li­zação nos leva a cons­tatar que, assim como o Norte se es­par­rama pelo Sul, este também in­vade o centro do ca­pi­ta­lismo tido como de­sen­vol­vido.

E Algo de Gran­dioso é exemplo exa­ta­mente disto, ao apre­sentar a re­a­li­dade do tra­balho na in­dús­tria da cons­trução civil na França. A partir de cenas e de­poi­mentos, a sen­si­bi­li­dade do tra­balho vai trans­bor­dando. Tra­gé­dias, es­pe­ranças, ex­pec­ta­tivas, so­li­da­ri­e­dade, ami­zade – tudo isso apa­rece no mundo do tra­balho duro, vi­o­lento, pe­ri­goso da cons­trução civil.

Chuva, tem­pes­tade, con­cre­tagem, aci­dentes, as cenas se se­quen­ciam, mos­trando como esse ramo com­bina o re­cei­tuário tay­lo­rista do tra­balho pres­crito com a prag­má­tica do en­vol­vi­mento e ma­ni­pu­lação que her­damos do toyo­tismo. Do pri­meiro, o tay­lo­rismo, vemos a pre­ser­vação do des­po­tismo e do se­gundo, o toyo­tismo, o exer­cício de fazer um pouco de tudo no tra­balho, o que, além de au­mentar a ex­plo­ração, am­plia os riscos de aci­dentes, em um setor onde ele já é de alta in­ten­si­dade.

Bru­mário en­feixa o ciclo com um pa­ra­le­lismo também em­ble­má­tico: re­cons­titui a his­tória do tra­balho em uma der­ra­deira mina de carvão na França, que teve suas ati­vi­dades en­cer­radas. E apre­senta também a his­tória de uma jovem tra­ba­lha­dora, filha de um ope­rário da mi­ne­ração, que tra­balha no setor de ser­viços, em uma em­presa de lim­peza.

A perda da so­ci­a­bi­li­dade de classe

A dupla face do tra­balho é ex­posta, com suas di­fe­renças tão mar­cantes, que con­fi­guram as tantas he­te­ro­ge­nei­dades e frag­men­ta­ções que po­voam a classe-que-vive-do-tra­balho em sua nova mor­fo­logia atual. A dos mi­neiros, quase todos ho­mens, com suas his­tó­rias, com­bates, so­li­da­ri­e­dades, medos, riscos, ado­e­ci­mentos.

E a de uma jovem tra­ba­lha­dora que vi­vencia o tra­balho frag­men­tado, se­pa­rado, in­di­vi­du­a­li­zado, sem pas­sado, sem pro­jeto para o fu­turo, ofe­re­cendo uma bela pin­tura do pas­sado eu­ropeu e sua nos­talgia e do fu­turo nu­blado desse novo pro­le­ta­riado.

A vida na mina é uma vi­vência em uma ci­dade sub­mersa. A es­cu­ridão, o risco do des­mo­ro­na­mento, o ba­rulho re­pe­ti­tivo do sub­solo mi­neiro que não tem luas, só luzes ar­ti­fi­ciais (um pa­rên­tese: uma única vez eu en­trei, como so­ció­logo do tra­balho, em uma mina de carvão na ci­dade de Cri­ciúma, em Santa Ca­ta­rina. Lá em baixo, não via a hora de voltar para o mundo vi­sível e plano).

A con­dição de mi­neiro, re­lata um dos de­po­entes, marca in­de­le­vel­mente todas as suas ou­tras di­men­sões da vida: a so­cial, a fa­mília, a cul­tura, a po­lí­tica. A trans­missão do sa­voir faire (saber fazer), de uma ge­ração a outra, a so­lidão com o fim da mina e seu fe­cha­mento, as lutas e con­quistas ob­tidas: e, pos­te­ri­or­mente, com a apo­sen­ta­doria ou fe­cha­mento da mina, vem a nos­talgia, o de­sen­canto.

A glo­ba­li­zação levou in­de­le­vel­mente ao fe­cha­mento da úl­tima mina de carvão na França, diz o de­poi­mento do ope­rário da mi­ne­ração. Na nova di­visão in­ter­na­ci­onal do tra­balho, isso passou a ser feito só no Sul do mundo. Na Colômbia, Chile, Ve­ne­zuela, China, Congo etc.

Outro de­poi­mento ope­rário é cáus­tico: nestes países eles tra­ba­lham muito mais e ga­nham pouco. Se um dia a mina voltar para a França, acres­centa, será sob o con­trole da China…

A nos­talgia em re­lação ao pas­sado e o de­sen­canto frente ao pre­sente se en­con­tram. No outro polo do mundo do tra­balho, a jovem tra­ba­lha­dora, filha de um mi­neiro, re­corda do pas­sado de lutas do pai e de seu pre­sente de iso­la­mento. Seu tra­balho in­di­vi­du­a­li­zado, des­so­ci­a­bi­li­zado, sem a con­vi­vência com ou­tros tra­ba­lha­dores. Esse novo pro­le­ta­riado de ser­viços apa­rece neste per­so­nagem como des­crente em re­lação ao fu­turo, re­sig­nado e des­con­tente em re­lação ao pre­sente.

Minas e es­cri­tó­rios, tra­balho “sujo” e tra­balho “limpo”, tra­balho co­le­tivo e labor in­vi­si­bi­li­zado, ontem e hoje, estes dois mundos do tra­balho pa­recem des­co­nec­tados. A jovem se re­corda do pai e de suas lutas e não as vê no seu pre­sente. Em seu tempo livre, cuida da casa. É uma jovem pro­le­tária sem a pos­si­bi­li­dade de cons­ti­tuir uma prole, pois sua in­se­gu­rança no tra­balho não in­cen­tiva sua vida re­pro­du­tiva.

Esta é a utopia ne­o­li­beral

Veja-se a ex­pe­ri­ência bri­tâ­nica do zero hour con­tract, este o novo sonho do em­pre­sa­riado do tra­balho in­ter­mi­tente. É uma es­pécie de tra­balho sem con­trato, onde não há horas a cum­prir e nem di­reitos a se­guir. Quando há tra­balho, basta uma cha­mada e o tra­ba­lhador(a) deve estar on­line para atender o tra­balho in­ter­mi­tente. E as cor­po­ra­ções glo­bais se apro­veitam: ex­pande-se a “ube­ri­zação”, am­plia-se a “pe­jo­ti­zação”, flo­res­cendo uma nova mo­da­li­dade de tra­balho: o es­cravo di­gital. Tudo isso para dis­farçar o as­sa­la­ri­a­mento do tra­balho.

Apesar de de­fen­derem a “res­pon­sa­bi­li­dade so­cial e am­bi­ental”, in­con­tá­veis cor­po­ra­ções pra­ticam mesmo a in­for­ma­li­dade am­pliada, a fle­xi­bi­li­dade des­me­dida e a pre­ca­ri­zação acen­tuada. A ex­ceção vai se tor­nando regra geral. Aqui e alhures.

Ficam muitas in­da­ga­ções: que es­tranho mito foi esse do fim do tra­balho? Terá sido um sonho eu­ro­cên­trico? Por que o labor hu­mano tem sido, pre­do­mi­nan­te­mente, es­paço de su­jeição, so­fri­mento, de­su­ma­ni­zação e pre­ca­ri­zação, numa era em que muitos ima­gi­navam uma pro­xi­mi­dade ce­les­tial? E ainda mais: por que, apesar de tudo isso, o tra­balho car­rega con­sigo coá­gulos de so­ci­a­bi­li­dade?

Estas e ou­tras tantas in­da­ga­ções a 6ª Mostra Eco­fa­lante de Ci­nema Am­bi­ental, nesta fo­to­grafia sem re­to­ques do tra­balho global, nos ajuda a re­fletir.

http://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12565-fotografias-sem-retoques-do-trabalho-global

Deixe uma resposta