Fernando Taquari – As contribuições de Paulo Sérgio Pinheiro na área de direitos humanos não se resumem apenas ao exterior. No Brasil, onde divide parte de seu tempo, criou na década de 1980 o Núcleo de Estudos da Violência (NEV), vinculado à Universidade de São Paulo (USP). Desde então acompanha com preocupação as violações no país, sobretudo as recentes execuções policiais em grandes centros, como São Paulo e Rio, e os ataques contra produtores rurais e comunidades indígenas em cidades do Pará e Maranhão, respectivamente.
Crítico do impeachment, o diplomata diz que o governo Michel Temer, com uma agenda de austeridade regressiva, reacionária e anti-povo, consolida a destruição de políticas sociais conquistados ao longo de três décadas. Suas posições políticas o colocam em rota de confronto com o PSDB, depois de contribuir com administrações tucanas no passado, quando foi assessor especial do ex-governador Franco Montoro entre 1983 e 1987, e ministro da Secretaria de Direitos Humanos entre 2001 e 2002, no governo Fernando Henrique Cardoso.
Valor: Como o senhor enxerga a situação dos direitos humanos no Brasil?
Paulo Sérgio Pinheiro: O quadro é grave. Em 2015, houve 58 mil mortes violentas, uma a cada nove minutos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Temos 221 mil presos sem sentença e a terceira maior população carcerária do mundo, 700 mil. Mais de 61% são negros (pretos e pardos). Nas mortes da polícia é o mesmo recorte racial. Aliás, a violência policial ganhou nova legitimidade.
Valor: Como assim?
Pinheiro: As execuções policiais estão consolidadas como política de governo tanto no Rio quanto em São Paulo, que concentraram em 2015, 1.493 mortes ou 45% do total no país neste período. O que havia de controle da letalidade foi por água abaixo. Já o número de policiais mortos é de 393 em 2015, sendo 290 fora de serviço. Não há nenhuma ditadura ou democracia no mundo em que a polícia execute tantas pessoas, ou que tantos policiais morram.
Valor: De que modo podemos perceber essa legitimidade à violência policial?
Pinheiro: Em maio, houve o massacre de 10 trabalhadores rurais, em Pau D’Arco, no Pará, por 13 policiais militares, que já foram até libertados. Não vai dar em nada. No mesmo mês, 10 indígenas foram atacados a machadadas por fazendeiros no Maranhão. O governo federal tem guardado um obsequioso silêncio em relação a esses crimes, assim como as mortes pelas polícias militares.
Valor: O senhor concorda com a ocupação do Rio pelas tropas do Exército?
Pinheiro: A ocupação não tem nenhuma eficiência e o primeiro saldo da intervenção em seis comunidades é ridículo. Os arsenais de armas e as redes de tráfico continuarão intocados. Enquanto isso, o governo federal consolida a destruição de tudo que construímos com muito custo desde a redemocratização em termos de proteção de direitos humanos com uma agenda de austeridade regressiva, reacionária e anti-povo.
Valor: Mas os índices de violência e as execuções policiais também eram altos nos governos anteriores.
Pinheiro: Sim, não quero passar a ideia de que tudo havia sido resolvido. A diferença é que antes o governo federal cobrava os Estados em relação às execuções policiais. Isso não existe mais. É um governo que se gaba de sua impopularidade e se lixa para a política de estado de direitos humanos vigente anteriormente.
Valor: Como?
Pinheiro: Congelando as despesas sociais por 20 anos. Só Cingapura e Geórgia fizeram algo assim. Essa PEC, limitando o teto das despesas de saúde, educação e seguridade social, colocou em risco toda uma geração. A recém-aprovada reforma trabalhista é um retorno ao século XIX, com jornada de trabalho de até 12 horas. Um deputado até tentou, sem sucesso, reinstalar o trabalho rural sem salário, quer dizer restaurar a escravidão. Em outra frente, vemos o enfraquecimento da repressão ao trabalho escravo. A CPI sobre as comunidades indígenas pediu processos contra antropólogos, lideranças indígenas e religiosas.
“Acho que vai ser inexorável que os movimentos de esquerdas se conjuguem com forças progressistas do centro”
Valor: O que o senhor achou da decisão da Câmara de rejeitar a denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Temer?
Pinheiro: Aquele discurso de que votavam pela estabilidade é algo grotesco. Esse Congresso é um dos piores da história brasileira. Bate até os mais conservadores e regressistas da monarquia. Basta ver que dos 513 deputados, 299 têm ocorrências judiciais.
Valor: Acontece que a vitória do governo já era esperada.
Pinheiro: O voto para salvar Temer consolida o quadro da ruptura legal criada pelo impeachment. As classes conservadoras que foram derrotadas nas últimas eleições viram na deposição de Dilma a oportunidade de barrar o intolerável avanço de políticas sociais. Somos o 10º país entre os mais desiguais. Mais um ano de Temer, talvez, nos custem uma década inteira ou mais para retomar o ponto em que estávamos antes.
Valor: Por que as ruas estão quietas, a despeito da baixa popularidade de Temer?
Pinheiro: As pessoas estão frustradas e exaustas. Agora, o que move as pessoas a irem às ruas é um processo complexo. As manifestações de 2013, que pareciam maio de 1968 tardio, vieram alimentar a campanha pelo impeachment. Isso ficou claro pelo financiamento espúrio de vários movimentos. Nada foi espontâneo. O que me anima é que a política é o domínio do inesperado. Nada garante que esse torpor que o Brasil parece estar mergulhado será para sempre.
Valor: Até que ponto a sombra do ex-presidente Lula atrapalha o surgimento de um novo nome na esquerda?
Pinheiro: Não existe um canteiro de líderes alternativos nem aqui nem em qualquer lugar. Você conta nos dedos de uma mão. São poucos e vão ser poucos, ainda que venha a aparecer muitos candidatos. O Brasil se ressente dos 21 anos de ditadura. As lideranças ligadas às classes populares ou foram mortas ou colocadas à margem. E nem todos os que sobreviveram tiveram sucesso. Evidente que lideranças podem surgir, mas não gosto de trabalhar com plano B.
Valor: O senhor, então, entende que o candidato da esquerda deve ser o Lula?
Pinheiro: A liderança que hoje reflete essa tendência, pelo menos nas pesquisas, é Lula. Acho que vai ser inexorável que os movimentos de esquerda se conjuguem com forças progressistas do centro. É impossível a esquerda vencer só.
Valor: O senhor foi um dos coordenadores da Comissão Nacional da Verdade que investigou violações aos direitos humanos na ditadura. Preocupa o desempenho nas pesquisas do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que costuma exaltar o militarismo em seus discursos?
Pinheiro: Bolsonaro não faz parte da mesma estirpe dos líderes de extrema direita da França e seus similares na Áustria, Itália e Polônia. Ele é um ensaio de cacareco. Com maior exposição vai cometer tantos desatinos que vai murchar. No plebiscito de 1993, que possibilitava aos brasileiros escolher o sistema e a forma de governo, 13% votaram pela monarquia. Se 13%, naquela época, apoiaram isso, não vejo razão para ficar atemorizado por Bolsonaro ter um percentual similar. Isso não é o que mais me preocupa no Brasil.
Valor: O que lhe preocupa mais?
Pinheiro: O que mais preocupa me no Brasil é a elite ter rompido com as iniciativas do Estado que visam reduzir a pobreza. A classe A se descolou das políticas de Estado que mal ou bem Sarney e Itamar [Franco] começaram e Fernando Henrique, Lula e Dilma prorrogaram. Não é à toa que continuamos a ser um país racista, haja visto a votação da denúncia contra Temer. Os afrodescendentes no Congresso são pouquíssimos.
Valor: O senhor tem um histórico ao lado de figuras do PSDB. Como vê a divisão no partido?
Pinheiro: Não me sinto à vontade para falar do PSDB. Registro como positivo a última manifestação de Fernando Henrique em que ele pede a saída de Temer. Também vejo como saudável essa revolta de parte do partido pelo desembarque. O partido da social democracia não pode apoiar um governo regressista. São dois fatos que podem representar um sinal de vitalidade, com outros desdobramentos para o PSDB.
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