Internacional

Portugal, a nova vitrine do socialismo europeu

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Luiz Eça – Por­tugal en­trou em 2011 numa si­tu­ação pré-fa­li­mentar. Os efeitos da grande crise econô­mica de 2008-2009, so­mados aos gastos ex­ces­sivos de go­vernos so­ci­a­listas, tor­naram a dí­vida pú­blica gi­gan­tesca.

Ficou cada vez mais di­fícil para o go­verno José Só­crates fi­nan­ciar suas des­pesas, pois os juros cres­ciam de forma in­sus­ten­tável. Che­garam a quase 17%, em 2011 (TVI24– 3/2/2015), re­flexo da perda de con­fi­ança da banca in­ter­na­ci­onal.

Para evitar a ban­car­rota, o go­verno pediu so­corro ao FMI e à União Eu­ro­peia. Re­cebeu então um em­prés­timo de 78 bi­lhões de euros, con­di­ci­o­nado à im­plan­tação de um du­rís­simo pro­grama de aus­te­ri­dade, que ra­pi­da­mente gerou grave re­cessão.

An­te­ce­dentes

Eleita em junho de 2011, a co­li­gação PSD-CDS, de centro-di­reita, teve de en­frentar con­di­ções de­vas­ta­doras du­rante seu man­dato de quatro anos: al­tís­simos ín­dices de de­sem­prego, fe­cha­mento de muitas em­presas (no pico, foram 52 fa­lên­cias por dia) e re­dução drás­tica dos ren­di­mentos da po­pu­lação.

Se­gundo o Ins­ti­tuto Na­ci­onal de Es­ta­tís­tica, chegou a haver 19 mi­lhões de pes­soas em risco de po­breza. E dois mi­lhões re­ce­biam apenas 60% da renda média do país.

No pe­ríodo do pri­meiro-mi­nistro Passos Co­elho foram con­se­guidos re­sul­tados im­por­tantes.

Ex­plica a pro­fes­sora de eco­nomia Au­rora Tei­xeira, da Uni­ver­si­dade do Porto, que o go­verno centro-di­rei­tista equi­li­brou o or­ça­mento do país, res­ga­tando a con­fi­ança in­ter­na­ci­onal, o que causou a queda dos juros da dí­vida pú­blica para pouco mais de 2%.

Mas, isso só foi con­se­guido através de pe­sados cortes nos sa­lá­rios e apo­sen­ta­do­rias, do au­mento das horas de tra­balho se­ma­nais e de fortes re­du­ções nas des­pesas pú­blicas.

Com isso, no fim do go­verno, em 2015, o de­sem­prego ainda es­tava alto (12%, se­gundo o go­verno, 25%, se­gundo os sin­di­catos) e os ren­di­mentos de dois mi­lhões de pes­soas eram in­fe­ri­ores a 60% da média na­ci­onal; 10,5% da po­pu­lação vivia em risco de po­breza – o quinto pior ín­dice entre todos os países da Eu­ropa.

Nas elei­ções de junho, sob o es­tí­mulo da re­cu­pe­ração gra­dual da eco­nomia e de pe­quenos au­mentos dos sa­lá­rios, parte do elei­to­rado apoiou a co­li­gação go­ver­na­mental, dando-lhe a maior vo­tação: 38,3%.

Os so­ci­a­listas, ainda so­frendo o des­gaste da ad­mi­nis­tração in­com­pe­tente de José Só­crates, ul­timo pre­mier do par­tido, fi­caram atrás, com 33,4% dos votos.

Como o nú­mero de par­la­men­tares da co­li­gação de centro-di­reita não al­can­çava a mai­oria, a chance de formar o novo go­verno passou para o par­tido vo­tado em se­gundo lugar, o Par­tido So­ci­a­lista.

Foi então que acon­teceu algo iné­dito na po­lí­tica por­tu­guesa: formou-se um go­verno de união de ad­ver­sá­rios, os so­ci­a­listas e a es­querda ra­dical, re­pre­sen­tada pelo Par­tido Co­mu­nista e o Bloco de Es­querda, cujos votos so­mados per­fa­ziam a mai­oria exi­gida.

A uni­dade

Para evitar a con­ti­nui­dade do re­gime centro-di­rei­tista, os par­tidos de es­querda ra­dical acei­taram apoiar um go­verno so­ci­a­lista, sem re­ce­berem um único mi­nis­tério, re­nun­ci­ando ainda a me­didas con­tro­ver­tidas como a saída de Por­tugal da OTAN, a re­es­tru­tu­ração dos dé­bitos pú­blicos e a dis­cussão do Tra­tado de Lisboa (site da London School of Eco­no­mics and Po­li­tical Sci­ences).

A grande pro­messa do novo go­verno li­de­rado por An­tónio Costa era re­cu­perar o dé­ficit so­cial por­tu­guês e ace­lerar o cres­ci­mento, sem com­pro­meter o equi­lí­brio econô­mico-fi­nan­ceiro.

A es­tra­tégia ado­tada foi can­celar al­gumas das me­didas de aus­te­ri­dade do go­verno an­te­rior, ado­tando po­lí­ticas re­dis­tri­bu­tivas para for­ta­lecer o cha­mado Es­tado de Bem Estar So­cial (o cha­mado Wel­fare State) e au­mentar os ren­di­mentos da po­pu­lação (es­pe­ci­al­mente dos se­tores mais po­bres).

Apesar das dú­vidas se essas ideias se­riam acei­tá­veis pelos cre­dores, a co­li­gação de centro-es­querda vem con­se­guindo re­a­lizá-las com apro­vação da co­missão de su­per­visão da Eu­ropa. Seu chefe, Pi­erre Mos­co­vici, diz que fora o “mo­mento de de­cisão” (tur­ning point). “Ela (a apro­vação) ex­pressa a ava­li­ação de que o ex­ces­sivo dé­ficit or­ça­men­tário de Por­tugal es­tava sendo cor­ri­gido de uma ma­neira sus­ten­tável e du­ra­doura”.

É ainda mais sig­ni­fi­ca­tivo o texto pu­bli­cado na res­pei­tável re­vista The Eco­no­mist, em 2 de abril de 2017: “Em 2026, de acordo com as es­ta­tís­ticas de 24 de março de 2017, li­be­radas nesta data, em 2016, o go­verno (An­tónio Costa) cortou o dé­ficit do or­ça­mento em mais da me­tade para menos de 2,1% do PIB, o menor desde a tran­sição de Por­tugal para a de­mo­cracia, em 1974. Sua ad­mi­nis­tração res­taurou as pen­sões, os sa­lá­rios e as horas de tra­balho (para 35 horas se­ma­nais) do pe­ríodo an­te­rior ao so­corro e também trouxe o dé­ficit bem abaixo da meta im­posta pela União Eu­ro­peia. É a pri­meira vez que Por­tugal ade­quou-se às re­gras fis­cais da zona do euro”.

Che­gando ao pre­sente

Al­guns fatos ilus­tram o su­cesso do pri­meiro ano de go­verno da co­li­gação so­ci­a­lista-es­querda ra­dical. Em 2016, o sa­lário mí­nimo foi au­men­tado de 505 euros (em 2015), para 530, de­vendo se­guir su­bindo até 600 euros, em 2019, no fim do man­dato so­ci­a­lista.

Pro­moveu-se também a ex­pansão dos be­ne­fí­cios a cri­anças e de­sem­pre­gados; a de­fesa da saúde pú­blica, com a con­tra­tação de mais 1.100 mé­dicos, 170 téc­nicos de la­bo­ra­tório e 1.900 en­fer­meiros; o cres­ci­mento de 6,9%, nos gastos na Edu­cação, com o acrés­cimo de mais de 3.000 pro­fes­sores à rede de es­colas pú­blicas; a re­dução do de­sem­prego para 9% contra 12,7% em 2015 e o au­mento do PIB per ca­pita para 30.192 euros anuais, contra 19.759 euros em 2016, en­quanto que o cres­ci­mento do PIB está pro­je­tado para 2% neste ano, acima da mai­oria dos 28 países eu­ro­peus.

Esses bons re­sul­tados mos­tram que o re­gime de centro-es­querda está se saindo bem. E o povo con­corda. Em pes­quisa pu­bli­cada pelo Cor­reio da Manhã, em 14 de fe­ve­reiro de 2017, 66% da po­pu­lação apro­vavam o go­verno.

Tudo in­dica que, pela pri­meira vez, uma po­lí­tica de cres­ci­mento e com­bate a de­si­gual­dades, afi­nada com as re­gras econô­micas da União Eu­ro­peia, po­derá dar certo. É também um sopro de alento para o so­ci­a­lismo eu­ropeu.

Nos úl­timos anos, ele vem co­le­ci­o­nando fra­cassos de­vido à sua in­ca­pa­ci­dade de se ade­quar às mo­dernas exi­gên­cias dos povos. Quando es­quecem suas ideias para buscar vencer a todo custo, fas­ci­nados pelas re­a­li­dades fake do mar­ke­ting, acabam se des­ca­rac­te­ri­zando e se iden­ti­fi­cando com par­tidos con­ser­va­dores e suas po­si­ções ne­o­li­be­rais.

Como, aliás, acon­teceu com o Par­tido Tra­ba­lhista in­glês de Tony Blair, até seus mem­bros abrirem os olhos para tra­ba­lhismo au­tên­tico de Je­remy Corbyn. Mesmo des­pre­zado pelos po­lí­ticos e im­prensa, o par­tido sob a li­de­rança de Corbyn re­cu­perou-se, a ponto de pes­quisas de opi­nião in­di­carem que já passou os con­ser­va­dores por boa margem (you gov: 45% pró tra­ba­lhistas, 39%, pró-con­ser­va­dores).

Ou como o Par­tido So­ci­a­lista Ita­liano que, junto com a de­mo­cracia cristã, criou um novo par­tido, cada vez mais des­lo­cado para a centro-di­reita, na ilusão de assim atrair votos. Os quais, na pró­xima eleição, tendem a con­sa­grar o po­pu­lismo da­quele par­tido fun­dado por um ator cô­mico.

Sem es­quecer o exemplo mais de­sas­troso: o go­verno so­ci­a­lista francês, de Fran­çois Hol­lande, que se perdeu em suas in­de­fi­ni­ções e con­duziu o par­tido a uma es­tron­dosa der­rota nas úl­timas elei­ções.

Ape­gando-se ao pas­sado ou se apro­xi­mando dos con­ser­va­dores, os so­ci­a­listas acu­mulam der­rotas elei­to­rais su­ces­sivas na Eu­ropa, go­vernam mal e perdem pres­tígio com os tra­ba­lha­dores e as classes mé­dias, fun­dindo-se na ge­leia in­sossa dos par­tidos tra­di­ci­o­nais.

As poucas ten­ta­tivas de se en­con­trar um novo ca­minho fra­cas­saram. Na Es­panha, o Po­demos, mo­vi­mento com viés so­ci­al­de­mo­crata, exigiu que o Par­tido So­ci­a­lista de­fen­desse a in­de­pen­dência da Ca­ta­lunha, para aceitar co­ligar-se com ele. A óbvia re­cusa im­pediu a for­mação de um go­verno de es­querda.

Na Grécia, o Sy­riza as­sumiu o poder com o com­pro­misso de re­jeitar as me­didas de aus­te­ri­dade im­postas pela Eu­ropa. Até que tentou, mas, sem força para en­frentar os lí­deres do Velho Con­ti­nente, foi obri­gado a en­tregar os pontos.

Nesse pa­no­rama, a po­lí­tica do go­verno por­tu­guês de centro-es­querda é um exemplo a ser se­guido pelos de­mais par­tidos so­ci­a­listas da Eu­ropa e uma prova de que o so­ci­a­lismo pode se re­criar para não perder o bonde da His­tória.

Mas ainda é só o co­meço

Claro, é pre­ciso que, nos pró­ximos três anos de go­verno que lhe resta o so­ci­a­lismo por­tu­guês con­siga vencer os obs­tá­culos que ainda per­sistem. O jogo mal co­meçou e eles ainda têm sé­rios pro­blemas por re­solver.

A dí­vida de 130 % do PIB, a ter­ceira maior de­pois da Grécia e da Itália, é pe­ri­go­sa­mente ex­ces­siva. Deixa o país vul­ne­rável a qual­quer crise ex­terna.

O sa­lário-mí­nimo, mesmo o de 600 euros pre­visto para 2019, é in­su­fi­ci­ente se­gundo o es­tudo “Ren­di­mento Ade­quado em Por­tugal”, de José Pe­rei­rinha, pro­fessor do Ins­ti­tuto Su­pe­rior de Eco­nomia e Gestão. Pre­ci­saria chegar a 783 euros, o que seria “ne­ces­sário para uma pessoa viver com dig­ni­dade”.

Sem um in­cre­mento subs­tan­cial na eco­nomia, Por­tugal con­ti­nuará o primo pobre da fa­mília eu­ro­peia. E, em 2016, no pri­meiro ano da gestão so­ci­a­lista, o in­ves­ti­mento pú­blico foi muito in­fe­rior ao ne­ces­sário, equi­va­lendo a 1,8% do PIB, a mais baixa pro­porção desde 1960.

Entre ou­tros se­tores, a in­dús­tria da cons­trução civil, es­sen­cial para a re­cu­pe­ração do pleno em­prego, foi se­ri­a­mente pre­ju­di­cada. Se­gundo o pre­si­dente da as­so­ci­ação da ca­te­goria: “através de cortes drás­ticos nos in­ves­ti­mentos pú­blicos para re­duzir o dé­ficit, o go­verno con­tri­buiu de­ci­si­va­mente para a de­gra­dação da ati­vi­dade de cons­trução e evitou a re­cu­pe­ração do setor”.

Es­pera-se que o poder pú­blico atue. O pri­meiro-mi­nistro An­tónio Costa com­pro­meteu-se em au­mentar em 20% as des­pesas com in­ves­ti­mentos pú­blicos em 2017.

Apesar dos obs­tá­culos que ainda pre­ci­sarão ser ven­cidos, a nova po­lí­tica dos so­ci­a­listas é mais do que uma es­pe­rança.

Afinal, Por­tugal está con­se­guindo o que pa­recia im­pos­sível: sair da crise ele­vando as con­di­ções de vida do seu povo.

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