Lira Neto – Muita gente fez cara de nojo. Como as autoridades permitiriam tamanho disparate? De quem teria partido a ideia de profanar o palco do Theatro Municipal de São Paulo –templo sagrado da cultura erudita, símbolo dos anseios cosmopolitas da mais alta sociedade paulistana–, permitindo a apresentação de um reles sambista, animador de gafieiras e cabarés do Rio de Janeiro?
Choveram protestos contra a presumida infâmia. José Barbosa da Silva, o Sinhô, coroado Rei do Samba pela imprensa carioca, iria protagonizar, de violão em punho, noitada musical em uma das principais casas de espetáculos do país, construção luxuosíssima, inspirada na Ópera de Paris e erigida com recursos provenientes das algibeiras dos barões do café.
Era maio de 1929. Enquanto a aristocracia e setores da intelectualidade conservadora esbravejavam, o escritor modernista Mário de Andrade, na coluna “Táxi”, no “Diário Nacional”, sentenciava, com a autoridade de agudo estudioso dos saberes populares: “Sinhô é poeta e músico”.
Para o autor de “Pauliceia Desvairada”, Sinhô detinha “aquele riso de experiência divertida, aquela leveza de borboleta, ingenuidade originalíssima, esperteza defensiva que só mesmo os índios, as crianças e os cariocas possuem”.
Para os que julgavam o samba e a arte de Sinhô elementos de um vulgarismo e banalidade sem par, Mário contrapunha: “Vulgaridades e banalidades apenas para os indivíduos que não sabem reaprender, todos os dias, certos fenômenos, certas reações essenciais diante do amor, da pândega e da sociedade”. E arrematava: “Mas nisso quem tem culpa não é Sinhô, não é o índio, não é a criança, não é o carioca. É o que se supõe culto”.
Impossível não lembrar de Mário quando se lê a entrevista concedida, há poucos dias, por Charles Cosac a esta Folha. Empossado como novo diretor da maior biblioteca pública de São Paulo –batizada justamente com o nome do autor de “Macunaíma”–, Cosac anunciou que irá extinguir o projeto Samba na Varanda, cuja programação ocorria no terraço da Biblioteca Mário de Andrade, sempre com rodas temáticas: samba e religiosidades da diáspora africana, samba e consciência negra, samba e resistência simbólica. “Cortei”, afirmou o diretor. “Já basta o samba do boteco ao lado.”
Para o homem que está no comando da biblioteca fundada em 1925 e que desde 1960 passou a se chamar Mário de Andrade, lugar de samba –e de sambista– é no boteco.
Jamais no recinto de uma instituição cultural. “Não aguento duas rodas de samba”, explica-se Cosac. A justificativa denota não apenas um elitismo que recende ao bolor beletrista anterior à Semana de Arte Moderna de 1922 mas também o desconhecimento do que seja a função de um gestor público na área da cultura. O samba nos botecos do centro de São Paulo, espaço de sociabilidade que já faz parte indissolúvel do cotidiano dos paulistanos, não “compete” com o trabalho pedagógico e reflexivo que vinha sendo desenvolvido pela biblioteca com base nas sonoridades das culturas populares.
O que mais espanta é tais declarações terem partido de um ex-editor que, à frente da Cosac Naify, publicava extraordinária série de livros de antropologia que desafiavam o etnocentrismo da razão ocidental. Nela, figuravam autores como Lévi-Strauss, Eduardo Viveiros de Castro, Pierre Clastres, Marcel Mauss e Roy Wagner, entre outros. “É claro que tenho minhas preferências musicais, mas elas não estão sendo impostas”, emenda Cosac, piorando o soneto. “Senão eu não botava chorinho, eu odeio chorinho.”
Quem também parece detestar chorinho é André Sturm, secretário municipal de Cultura. Ele acaba de despejar o Clube do Choro de sua sede, o teatro Arthur de Azevedo, na Mooca. O secretário, em entrevista ao “Estado de S. Paulo”, afirmou que “chorinho não é meta” e o Clube do Choro “não tem história”.
Talvez não saiba que os chorões paulistas, reunidos em torno da associação que agora foi parar no olho da rua, faziam precioso trabalho de formação de plateia e de descoberta de jovens talentos musicais da periferia, dando prosseguimento a uma dinastia de grandes virtuoses que remontam ao pioneirismo dos geniais Aimoré, Armandinho, Canhoto e Garoto.
Resta-nos, quando menos, evocar Mário de Andrade e o versos de “Paisagem Nº 1”, um dos poemas de “Pauliceia Desvairada”: “Meu coração sente-se muito triste/ Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas/ Dialoga um lamento com o vento”.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/lira-neto/2017/04/1879742-a-segunda-morte-de-mario-de-andrade.shtml
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