Política

Os 77 + 50 delatores e a objeção de consciência

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Chico Whitaker – O 15 de maio pró­ximo será o Dia do Ob­jetor de Cons­ci­ência, criado pela ONU. Re­cusar-se a fazer ou a par­ti­cipar de algo com que, por uma questão de cons­ci­ência, não se con­corda, co­meçou a criar um novo di­reito na ne­gação às guerras.

Na pri­meira Grande Guerra, jo­vens norte-ame­ri­canos pa­ci­fistas se re­cu­savam ao alis­ta­mento, apesar das pu­ni­ções de­cor­rentes. Um filme re­cente contou a his­tória do pri­meiro ob­jetor de cons­ci­ência do exér­cito norte-ame­ri­cano na se­gunda Grande Guerra, que se re­cusou a em­pu­nhar armas por mo­ti­vação re­li­giosa.

A ob­jeção de cons­ci­ência se tornou mais co­nhe­cida por oca­sião da Guerra do Vi­etnã: os “ob­je­tores” fu­giam para o Ca­nadá, que os pro­tegia, para não serem presos por não acei­tarem sua in­te­gração às tropas norte-ame­ri­canas; e seu pro­testo con­tri­buiu para o fim dessa ação mi­litar. Du­rante a guerra da Ar­gélia, na França já foi pos­sível não se alistar e optar por um ser­viço civil para o Es­tado, com o es­ta­tuto legal de “ob­jetor de cons­ci­ência”.

O di­reito à ob­jeção de cons­ci­ência foi assim, pouco a pouco, se afir­mando e se es­ten­dendo, in­clu­sive no Brasil, a ou­tras áreas da ati­vi­dade hu­mana, como na Me­di­cina e no Di­reito. Mas nem aqui nem no resto do mundo se co­gita a ob­jeção de cons­ci­ência contra a cor­rupção.

Ao par­ti­cipar, como ve­re­ador, de Co­mis­sões Par­la­men­tares de Inqué­rito sobre a cor­rupção na Câ­mara Mu­ni­cipal de São Paulo, cons­tatei como muitos fun­ci­o­ná­rios pú­blicos não sa­biam senão dar se­gui­mento, com suas as­si­na­turas, a pro­cessos com fraudes que eram de seu co­nhe­ci­mento.

Re­cen­te­mente na França, se des­co­briu o sig­ni­fi­cado de dois pe­quenos traços nas capas de um certo nú­mero de pro­cessos re­la­tivos a re­a­tores nu­cle­ares: um fun­ci­o­nário atento as­si­na­lava com esses traços aqueles em que os cer­ti­fi­cados de con­for­mi­dade de de­ter­mi­nadas peças po­de­riam ter sido fal­si­fi­cados. O país se es­can­da­lizou e 18 dos seus 58 re­a­tores foram ime­di­a­ta­mente pa­rados para uma ve­ri­fi­cação mi­nu­ciosa.

Mas tais me­didas foram to­madas frente aos enormes riscos de­cor­rentes dessas fal­si­fi­ca­ções, dei­xando em se­gundo plano os ne­gó­cios es­cusos que te­riam le­vado à fraude.

No Brasil, hoje mer­gu­lhado na des­co­berta de um nú­mero cada vez maior e mais va­riado desses “es­quemas”, como se diz, na ver­dade nem se ima­ginou que a re­sis­tência ci­dadã a prá­ticas sa­bi­da­mente con­de­ná­veis po­deria ser de­ci­siva, se re­ce­besse uma co­ber­tura legal, no com­bate à cor­rupção.

Pre­feriu-se, para iden­ti­ficar cor­ruptos, usar o sis­tema das de­la­ções. Estas são mal vistas até nos có­digos da máfia, que pune du­ra­mente o des­res­peito à lei do si­lêncio. Aqui elas se tor­naram moeda de troca pela di­mi­nuição das penas pelos crimes de­nun­ci­ados, com os de­la­tores po­dendo chegar até ao luxo de se di­zerem ar­re­pen­didos…

Pro­teger a ob­jeção de cons­ci­ência po­deria ter sido uma forma mais cons­tru­tiva do que as de­la­ções para en­frentar a fraude. Não teria sido muito me­lhor para os pró­prios de­la­tores e mais ainda para o país, agora e no fu­turo, se esses per­so­na­gens hoje po­bre­mente fa­mosos ti­vessem se re­cu­sado, por ob­jeção de cons­ci­ência, a re­a­lizar de­ter­mi­nadas ta­refas que sa­biam que eram imo­rais e ile­gais, no ema­ra­nhado dos in­te­resses que a Lava Jato está es­can­ca­rando?

Em vez do triste es­pe­tá­culo de de­la­ções para ne­go­ciar pu­ni­ções, não seria me­lhor, para a for­mação das cons­ci­ên­cias na ju­ven­tude de nosso país, que os tra­ba­lha­dores do setor pú­blico e do setor pri­vado pu­dessem le­gal­mente se re­cusar a ser cúm­plices dos crimes de cor­rupção que se tor­naram usuais, na po­lí­tica e nos ne­gó­cios?

Ob­vi­a­mente é um sonho que pa­rece ir­re­a­li­zável, pelo menos en­quanto es­ti­vermos to­tal­mente imersos, como es­tamos – no Brasil e em todo o mundo – no que po­deria ser cha­mado de “cul­tura do di­nheiro”: um con­junto de crenças, normas e prá­ticas in­di­vi­duais e co­le­tivas que tem como eixo cen­tral o “vil metal” e reduz a vida a uma luta per­ma­nente pela sua ob­tenção.

Com o mundo gi­rando em torno desse eixo ma­te­rial car­re­gado de ilu­sões, ele atrai para seu brilho desde os que dele ne­ces­sitam es­tri­ta­mente para so­bre­viver até os que o acu­mulam sem li­mites para aceder a tudo que de­sejam e au­mentar cada vez mais seu poder.

Na “cul­tura do di­nheiro” não se pro­move o que une as pes­soas, mas o que as se­para: a com­pe­tição em vez da co­o­pe­ração, o con­su­mismo e a sede in­sa­ciável de pos­suir em vez de com­par­ti­lhar, a os­ten­tação em vez do res­peito aos ou­tros, o egoísmo em vez do al­truísmo, a ga­nância em vez da so­bri­e­dade, a vai­dade em vez da mo­déstia, a busca do lucro má­ximo como único ob­je­tivo da ati­vi­dade pro­du­tiva em vez da sa­tis­fação das ne­ces­si­dades dos seres hu­manos, a pre­dação da na­tu­reza em vez de sua pro­teção, a de­si­gual­dade em vez da equi­dade, o en­fren­ta­mento em vez do diá­logo e do en­ten­di­mento, a efi­ci­ência fria de ges­tores-tec­no­cratas au­to­ri­tá­rios em vez da com­paixão e da par­ti­ci­pação dos ci­da­dãos nas de­ci­sões po­lí­ticas que afetem suas vidas, o cres­ci­mento econô­mico em vez do de­sen­vol­vi­mento hu­mano de todos e de cada um, o exer­cício do poder-do­mi­nação em vez do exer­cício do poder-ser­viço. E junto com tudo isso, emer­gindo disso tudo, a cor­rupção cumpre a função de “azeitar” o acesso ao di­nheiro.

Cons­truída dentro da ló­gica do ca­pi­ta­lismo e ali­men­tada por ele, que dela tira todo o pro­veito pos­sível, a “cul­tura do di­nheiro” foi capaz de des­truir por dentro as ten­ta­tivas de su­pe­ração dessa ló­gica no sé­culo pas­sado e mo­dela hoje em dia o mundo cha­mado ci­vi­li­zado. Trans­for­mando todas as ati­vi­dades em sim­ples meio de obter di­nheiro e sub­me­tendo até os Es­tados aos in­te­resses das fi­nanças, ela torna os seres hu­manos e as na­ções ini­migos quase ir­re­con­ci­liá­veis uns dos ou­tros.

A al­ter­na­tiva que nos é ofe­re­cida pelos que con­servam uma cons­ci­ência crí­tica é outra cul­tura, a da “so­li­da­ri­e­dade”, que busca ca­mi­nhos de su­pe­ração das ten­dên­cias per­versas que ame­açam os seres hu­manos e a cons­trução do “outro mundo pos­sível”. Mas com as cons­ci­ên­cias ma­ni­pu­ladas e ador­me­cidas com o per­ma­nente es­pe­tá­culo ofe­re­cido pelos meios de co­mu­ni­cação de massa e com a mag­ni­fi­cação do su­cesso das cha­madas “ce­le­bri­dades”, esta outra cul­tura con­segue pe­ne­trar muito va­ga­ro­sa­mente nas ca­beças e nos co­ra­ções.

E os di­ri­gentes po­lí­ticos pouco se sen­si­bi­lizam com as pre­o­cu­pa­ções das li­de­ranças es­pi­ri­tuais que pro­curam acordar a hu­ma­ni­dade para a ne­ces­si­dade de se opor, por exi­gência ética, aos an­ti­va­lores que ori­entam a vida co­le­tiva nos dias de hoje e que são ca­pazes de levar até à ex­tinção da es­pécie hu­mana. Que o diga o Papa Fran­cisco.

De­pois dos 77 de­la­tores agora mais ex­postos virão ainda muitos ou­tros – anun­ciam-se mais 50 só da OAS. E de­pois que passe toda a tem­pes­tade, nada ou pouco terá mu­dado. In­fe­liz­mente a es­per­teza – “é sempre pre­ciso tirar van­tagem” – prá­tica es­sen­cial na “cul­tura do di­nheiro”, é e con­ti­nuará sendo muito mais ad­mi­rada entre nós do que a co­ragem e a fir­meza exi­gidas pela ob­jeção de cons­ci­ência.

Nota:

Com o texto Os 77+50 de­la­tores e a ob­jeção de cons­ci­ência, pu­bli­cado no blog ob­je­ca­o­de­cons­ci­encia.​wor​dpre​ss.​com), pre­tendo dar uma pe­quena con­tri­buição à re­flexão a que es­tamos todos con­vi­dados, ao par­ti­ci­parmos da greve geral de 28 de abril de 2017. Toda greve é pro­testo e re­sis­tência a algo que nossa cons­ci­ência não per­mite que acei­temos. É um ato de ob­jeção de cons­ci­ência. Neste texto eu re­la­ciono a ob­jeção de cons­ci­ência es­pe­ci­fi­ca­mente com a luta contra a cor­rupção.

Mas é cer­ta­mente grande o nú­mero de ser­vi­dores pú­blicos do Exe­cu­tivo e do Le­gis­la­tivo que não con­cordam com as de­ci­sões que estão sendo to­madas pelo go­verno ile­gí­timo de Temer, por meio de um Con­gresso que não re­pre­senta o povo bra­si­leiro. Ca­beria pensar no seu di­reito de ob­jeção de cons­ci­ência, ne­gando-se a prestar seus ser­viços para sejam dis­cu­tidas e apro­vadas as an­tir­re­formas que des­troem di­reitos du­ra­mente con­quis­tados e dão ao ca­pital todo o poder po­lí­tico?

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