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O Irã que se cuide

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César Benjamin – Pela primeira vez desde que se tornaram hegemônicos os Estados Unidos mostram-se incapazes de liderar uma recuperação da economia mundial. O bastão passou para a China, que multiplica parcerias e já responde pela maior parte do crescimento global. Mesmo assim, está na berlinda, acusada  de  manter sua moeda artificialmente desvalorizada. Organismos multilaterais têm se pronunciado sobre isso, o governo americano já elevou tarifas de  importação produtos chineses e o Congresso discute a adoção de novas medidas, mais abrangentes, na mesma direção.

São crescentes as pressões para a valorização do yuan. A meu ver, isso não acontecerá: a China tem bons motivos para não mudar, e os EUA não têm fôlego para forçar a mudança.

Desde a década de 1970, quando romperam os Acordos de Bretton Woods, os EUA manejam livremente a moeda do mundo, que é a sua, como instrumento de hegemonia. Recentemente, a emissão de trilhões de dólares  para salvar instituições financeiras, combinada com taxas de juros em torno de zero, reforçou a tendência à desvalorização do dólar, que é funcional para a economia americana, entre outros motivos porque desvaloriza suas dívidas. Cria-se, ao mesmo tempo, uma superoferta de recursos que perambulam pelo mundo. Países que adotam uma posição passiva e concedem ampla liberdade à entrada e saída de capitais, como o Brasil, orgulham-se de recebê-los em abundância. São muito elogiados. Mas expandem seu passivo externo de  curto prazo (o que significa maior montante de remessas no momento seguinte) e valorizam suas moedas, penalizando os sistemas produtivos locais.

Para escapar das armadilhas inerentes a esse padrão monetário, a engenhosa solução chinesa foi atrelar o yuan ao dólar, de modo a neutralizar   as flutuações deste último. Não vejo por que os chineses abandonariam essa política, que tem contribuído para o seu excepcional desempenho.

A capacidade de retaliação americana tem limitações, até porque afrontaria interesses internos. Mais que do câmbio, a atual disparidade comercial entre os dois países decorre das políticas de investimento das grandes empresas dos EUA, que deslocaram em grande escala atividades manufatureiras para a China. Uma parte do déficit americano é lucro das suas multinacionais. (Nos setores em que a produção física permaneceu nos EUA, como agricultura e certos produtos de alta tecnologia, o país asiático segue sendo um grande comprador.)

Basta observar as agendas dos dois países para constatar que o tempo está a favor da China. Os EUA lidam, principalmente, com déficits e guerras: consomem demais, poupam de menos, sustentam um sistema financeiro agigantado e quebrado, aumentam a presença militar no mundo, mantêm exércitos em operação em outros continentes e gerenciam Estados falidos, como o México. A China, sem pirotecnias presidenciais, diminui substancialmente a pobreza, moderniza a infraestrutura, aumenta a base produtiva instalada em seu território, incrementa a capacitação científica, aprofunda relações com os pólos dinâmicos da Ásia e os países produtores de petróleo, investe pesadamente na exploração dos recursos naturais africanos, consolida os laços com a Rússia, grande potência energética, e se torna o principal parceiro comercial da América do Sul, desbancando inclusive o Brasil.

Não é o câmbio que explica isso. É um projeto nacional consistente. Para tentar contê-lo, talvez os EUA precisem gerar uma gigantesca instabilidade internacional. O Irã que se cuide.

Folha de S. Paulo, 20 de março de 2010

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