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Portugal: um ano depois, a “geringonça” e as suas contradições (2)

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Luis Leiria – Vendo-se afas­tada do poder, a di­reita en­trou em his­teria, acu­sando o novo go­verno de “ile­gi­ti­mi­dade”, porque fora “der­ro­tado” nas urnas. Mas esta tese era um total con­tras­senso, já que o go­verno for­mado pela di­reita fora re­jei­tado pelo Par­la­mento; e a di­reita não con­se­guiu der­rubar o go­verno de An­tónio Costa porque a moção de cen­sura que apre­sentou foi der­ro­tada, pro­vando que con­tava com uma mai­oria para go­vernar. Por outro lado, a única po­lí­tica que PSD e CDS ti­nham anun­ciado era a ma­nu­tenção da aus­te­ri­dade, apre­sen­tada como a única al­ter­na­tiva para o go­verno.

O go­verno da di­reita, der­ru­bado no Par­la­mento, mas que con­ti­nuou em fun­ções até a posse de An­tónio Costa, ainda teve o des­plante de aprovar a ma­nu­tenção dos cortes sa­la­riais dos fun­ci­o­ná­rios pú­blicos e da so­bre­taxa do im­posto de renda, e de aprovar leis como a que aca­bava com o re­gime es­pe­cial de apo­sen­ta­doria para os pa­ci­entes de do­enças crô­nicas e in­cu­rá­veis. Assim, di­ante de um novo go­verno que re­vertia as me­didas de aus­te­ri­dade, restou à di­reita torcer para que o Or­ça­mento de Es­tado de Por­tugal não re­ce­besse o aval da União Eu­ro­peia. Con­tavam com a pre­ciosa ajuda do mi­nistro das Fi­nanças alemão, Wolf­gang Schäuble. “Por­tugal es­tava a ser muito bem-su­ce­dido até en­trar um novo go­verno de­pois das elei­ções”, disse o nú­mero dois do go­verno de Berlim, logo que An­tónio Costa tomou posse. Em junho de 2016, Schäuble vol­taria à carga, afir­mando que Por­tugal es­tava a pro­curar obter um novo plano de res­gate, atri­buindo em se­guida a frase bom­bás­tica a um erro de tra­dução.

Apesar das chan­ta­gens, os or­ça­mentos aca­baram por ser apro­vados e uma ab­surda ameaça de san­ções de­vido ao fato de que o go­verno an­te­rior cum­priu as metas de dé­ficit (jus­ta­mente o go­verno apa­dri­nhado por Schäuble e que se­guira ser­vil­mente todas as im­po­si­ções da “troika”) acabou por ficar sem efeito. Em se­guida, ao ve­ri­ficar que a sim­ples tor­cida contra o go­verno por­tu­guês e a favor da Co­missão Eu­ro­peia não lhe gran­jeava qual­quer po­pu­la­ri­dade, a di­reita de­cidiu en­frentar o go­verno de­vido aos cortes que este fez ao fi­nan­ci­a­mento es­tatal às es­colas pri­vadas. Na ver­dade, apenas foi re­es­ta­be­le­cida a lei, que o go­verno an­te­rior des­cum­pria, ao en­tregar sem qual­quer cri­tério verba dos con­tri­buintes aos donos de es­colas pri­vadas (quase todos mem­bros do PSD).

A di­reita or­ga­nizou ma­ni­fes­ta­ções em de­fesa da “li­ber­dade de es­colha” entre es­colas pú­blicas e pri­vadas, mas não con­se­guiu ga­nhar a opi­nião pú­blica, que per­cebia que não era isso que es­tava em causa e, sim, que quem qui­sesse pôr os fi­lhos na es­cola pri­vada tinha toda a li­ber­dade de o fazer, mas devia pagar por isso. A ma­ni­fes­tação em de­fesa da Es­cola Pú­blica or­ga­ni­zada em res­posta às pres­sões da di­reita veio mos­trar que a ma­nobra não fun­ci­o­nara.

De­pois, mon­taram um enorme es­cân­dalo em torno do cha­mado im­posto “Mor­tágua” (porque foi a de­pu­tada do Bloco de Es­querda Ma­riana Mor­tágua a pri­meira a anunciá-lo), uma nova taxa sobre o im­posto imo­bi­liário de luxo des­ti­nada a fi­nan­ciar o au­mento das apo­sen­ta­do­rias mais baixas. “Estão a ex­pro­priar a classe média”, gri­tavam. Até que, feitas as contas, se de­mons­trou que o im­posto abrangia pouco menos de 44 mil pes­soas, o equi­va­lente a 1% dos pro­pri­e­tá­rios de imó­veis. Pior ainda, um vídeo veio com­provar que em 2014 o pró­prio Passos Co­elho de­fen­dera uma pro­posta se­me­lhante.

Re­es­tru­tu­ração da dí­vida

Ao fim de um ano da “ge­rin­gonça”, chegou a hora de um pri­meiro ba­lanço. “O acordo foi a con­ver­gência pos­sível, ne­ces­sária e ur­gente para afastar o go­verno da di­reita”, afirmou Ca­ta­rina Mar­tins, do Bloco de Es­querda, pon­de­rando, porém, que não bastam as me­didas para travar os cortes e o em­po­bre­ci­mento cau­sado pelo an­te­rior go­verno. “Temos de olhar para o fu­turo e con­cre­tizar o que falta”, de­fendeu, numa en­tre­vista à te­le­visão es­tatal, dando o exemplo do com­bate à pre­ca­ri­e­dade no tra­balho. Entre as me­didas do acordo que ainda não foram con­cre­ti­zadas, Ca­ta­rina Mar­tins des­tacou o des­con­ge­la­mento de car­reiras e sa­lá­rios na Função Pú­blica e a maior pro­gres­si­vi­dade das alí­quotas do im­posto de renda (para um ba­lanço de­ta­lhado da apli­cação do acordo, leia aqui).

Porém, o mais im­por­tante é o in­ves­ti­mento para que a eco­nomia possa crescer sus­ten­ta­da­mente, o que, para o Bloco, só pode ser feito através da re­ne­go­ci­ação da dí­vida pú­blica. “2017 terá de ser o ano de ter co­ragem de re­cu­perar in­ves­ti­mento pú­blico, mesmo que a União Eu­ro­peia não queira”, afirmou a co­or­de­na­dora do Bloco.

Para Ca­ta­rina Mar­tins, “se está pro­vado que re­cu­perar sa­lá­rios e pen­sões não é uma ca­tás­trofe econô­mica para o país, pelo con­trário, foi o que deu algum fô­lego à eco­nomia, te­remos agora de ter a co­ragem de dar o passo se­guinte e esse passo é ter o in­ves­ti­mento pu­blico nos ser­viços que contam para au­mentar a pro­du­ti­vi­dade do país, para fazer a nossa qua­li­dade de vida, a qua­li­dade da nossa de­mo­cracia e se­gu­ra­mente também o cres­ci­mento econô­mico e o em­prego de que pre­ci­samos”, des­tacou, en­fa­ti­zando que a re­es­tru­tu­ração da dí­vida de Por­tugal é a con­dição pri­meira.

Noutra en­tre­vista, Ca­ta­rina Mar­tins foi mais longe e de­fendeu a re­es­tru­tu­ração uni­la­teral da dí­vida pú­blica. Para ela, o pri­meiro ano da “ge­rin­gonça” der­rubou dois mitos: “Um é que a crise das dí­vidas pú­blicas era um pro­blema do dé­ficit; o outro é que o dé­ficit se con­tro­lava cor­tando nos sa­lá­rios e nas pen­sões (apo­sen­ta­do­rias)”.

A porta-voz do Bloco de Es­querda su­bli­nhou que ficou de­mons­trado ser pos­sível re­cu­perar ren­di­mentos e con­trolar o dé­ficit, já que foi isso o que se ob­teve no pri­meiro ano do go­verno An­tónio Costa. Mas, por outro lado, “também che­gamos à con­clusão de que con­trolar o dé­ficit não serve para con­trolar a dí­vida, porque a dí­vida pú­blica não é um pro­blema do nosso país e da nossa eco­nomia. Tem a ver com o de­senho do euro e com a res­posta à crise fi­nan­ceira in­ter­na­ci­onal de 2007/2008”.

Por­tanto, de­fendeu, a dí­vida pre­cisa ser re­es­tru­tu­rada. “Não há nada que pos­samos fazer, do ponto de vista das contas pú­blicas da nossa eco­nomia, que re­solva o pro­blema da dí­vida que não a re­es­tru­tu­ração”, afirmou, re­cor­dando o exemplo da Grécia: “o go­verno grego ca­pi­tulou em toda a linha com a pro­messa de que, de­pois, ia haver uma re­es­tru­tu­ração da dí­vida. E a sua ca­pi­tu­lação deu em nada, porque de­pois o go­verno alemão re­cusou-se a abrir o dossiê da re­es­tru­tu­ração.”

Con­tra­di­ções

Ao vi­a­bi­li­zarem o go­verno do PS, o PCP e o Bloco de Es­querda não fi­caram isentos de con­tra­di­ções. A “ge­rin­gonça” não é uma linha reta em di­reção ao pa­raíso nem um novo farol que mostra o ca­minho à Eu­ropa. O Bloco de Es­querda, por exemplo, está per­ma­nen­te­mente de­di­cado a avançar pro­postas que ace­lerem o fim da aus­te­ri­dade e a re­cu­pe­ração de sa­lá­rios e pen­sões, mas ao mesmo tempo in­siste que sem re­so­lução da questão da dí­vida não há so­lução de fundo. Ade­mais, uma re­es­tru­tu­ração uni­la­teral ine­vi­ta­vel­mente im­pli­caria a saída do Euro e o re­gresso à so­be­rania mo­ne­tária.

“Qual­quer país deve estar pre­pa­rado para sair do euro – ou para o fim do euro”, como disse Ca­ta­rina Mar­tins em outra en­tre­vista. Ora, o PS nem quer ouvir falar nisso. Daí res­salta outra con­tra­dição: o go­verno é co­nhe­cido po­pu­lar­mente como “o go­verno da es­querda”, mas na ver­dade é mais um go­verno de centro, um go­verno do PS, que em al­guns pontos re­cebe o apoio par­la­mentar da es­querda. Mas uma boa parte dos por­tu­gueses vê o Bloco e o PCP como se fi­zessem parte do go­verno, apesar de não fa­zerem. Mesmo quando estes par­tidos se opõem a me­didas como a que foi apli­cada ao banco Banif, im­posta pela União Eu­ro­peia, que forçou a en­trega deste ao es­pa­nhol San­tander.

Fi­nal­mente, e o pro­blema maior: a “ge­rin­gonça” re­sultou numa paz so­cial como há muito não havia. As pes­soas pa­raram um pouco para res­pirar, de­pois do su­foco du­rante o go­verno da di­reita. E têm ilu­sões de que gra­du­al­mente a “ge­rin­gonça” ponha tudo na ordem, sem ne­ces­si­dade de lu­tarem. É pro­vável que se trate apenas de um com­passo de es­pera, mas o Bloco tem cons­ci­ência de que mais tarde ou mais cedo ha­verá con­flitos sé­rios, quanto mais não seja com uma União Eu­ro­peia que pode en­trar em de­sa­gre­gação.

Para não se­guir a via da Grécia, a da ca­pi­tu­lação do Sy­riza, será pre­ciso que o país in­teiro se mo­bi­lize para re­cu­perar a sua so­be­rania em­pe­nhada pela União e o seu Banco Cen­tral Eu­ropeu, a ins­ti­tuição cen­tral da es­tru­tura mon­tada, que tem todos os po­deres e não é eleita por nin­guém.

A crise da TSU

En­tre­tanto, em­ba­lado pelas pes­quisas que mos­tram um cres­ci­mento do PS e a es­tag­nação das in­ten­ções de voto do Bloco de Es­querda e do PCP, An­tónio Costa adotou neste início do ano uma me­dida que sabia que não ia ser aceita pelos seus par­ceiros da es­querda: o au­mento do sa­lário mí­nimo de 530 para 557 euros seria com­pen­sado por uma re­dução da TSU, a con­tri­buição pre­vi­den­ciária que os pa­trões pagam por cada tra­ba­lhador que em­pregam. Isto é: os pa­trões que pagam sa­lário mí­nimo re­ce­biam um in­cen­tivo para con­ti­nuar a fazê-lo à custa de um en­fra­que­ci­mento da Se­gu­rança (Pre­vi­dência) So­cial ou do Or­ça­mento de Es­tado. An­tónio Costa con­tava que a di­reita apro­vasse esta me­dida e, por­tanto, es­tava con­fi­ante de que a me­dida pas­saria sem di­fi­cul­dades.

Não foi o que acon­teceu. Como era um de­creto do go­verno, Bloco de Es­querda e PCP so­li­ci­taram uma apre­ci­ação par­la­mentar, pela qual o par­la­mento se pro­nuncia e, en­quanto o faz, o de­creto fica sus­penso. Acon­tece que o PSD de­cidiu votar contra também. Era uma falta de co­e­rência com o seu pro­grama e com o que sempre de­fen­dera, mas, ex­plicou Passos Co­elho, o PSD não es­tava dis­posto a ser en­gre­nagem so­bres­sa­lente da “ge­rin­gonça”.

Re­sul­tado: a re­dução da alí­quota da TSU pa­tronal para fi­nan­ciar o au­mento do sa­lário mí­nimo foi re­jei­tada no dia 25 de ja­neiro deste ano pelos votos do PSD, do Bloco de Es­querda, do PCP, dos Verdes e do PAN (de­fensor dos ani­mais). Foi a pri­meira crise da “ge­rin­gonça”, não su­fi­ci­ente para a der­rubar, mas que serviu de alerta. Tanto para o PS quanto para a es­querda. “O que nós fi­zemos neste Par­la­mento foi acabar de vez com a ideia pe­re­grina de que o au­mento do sa­lário mí­nimo deve ser com­pen­sado. Essa ideia morreu, paz à sua alma”, afirmou Ca­ta­rina Mar­tins, ao fazer o ba­lanço do epi­sódio.

http://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12320-portugal-um-ano-depois-a-geringonca-e-as-suas-contradicoes-2

Leia o artigo 1 – https://controversia.com.br/2988

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