Guilherme C. Delgado – A sociedade que ora sofre o caudal de retrocessos em direitos de cidadania, conquanto relativamente anestesiada pela desinformação da mídia corporativa, não está inerte, apenas um tanto confusa politicamente.
Todos os indicadores de emprego e desemprego no Brasil em 2016 vêm reproduzindo, mês a mês, a mesma situação crítica de 2015, quando o país cancelou liquidamente 1,5 milhão de vagas formais nos setores priva- do e público, segundo o Relatório Anual de Informações Sociais (Rais) do Ministério do Trabalho.
O ano de 2016 revela infelizmente a mesma trajetória, com a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (Pnad contínua) indicando piora da situação de desemprego entre janeiro e julho, considerando médias trimestrais – de 8,6% para 11,6% da População Economicamente Ativa (PEA), correspondendo nessa última data a 11,8 milhões de pessoas desocupadas.
Em tal conjuntura econômica notoriamente adversa ao mundo do trabalho, o sistema político oficial opera com uma lógica inteiramente estranha às necessidades de proteção social aos riscos incapacitantes ao trabalho, mas de maneira especial àqueles que perderam emprego e, também, aos jovens que chegam pela primeira vez ao mercado de trabalho.
Não se operando políticas anticíclicas na conjuntura para gerar em- pregos, promete-se ainda por cima restringir substancialmente o campo dos direitos sociais na Saúde, Educação, Assistência Social, no Seguro Desemprego entre outros, acenando-se ainda com uma reforma da Previdência Social fortemente restritiva aos direitos da base da pirâmide social. Neste sentido, a PEC 241/2016, já em tramitação desde julho de 2016, cumpre o papel de limitar seletivamente o gasto primário do Orçamento à inflação do ano anterior, com exceção da despesa financeira, que conti- nuaria a seguir a trajetória desenhada pelo próprio “setor” financeiro; e às transferências constitucionais para Estados e municípios, que seguiriam o critério constitucional atual.
A referida PEC retrocede direitos sociais básicos contidos no conceito orçamentário de “gastos primários”, que são escalados para se estagnar por 20 anos ou mesmo a decrescer em termos reais para vários setores, a depen- der de certo canibalismo por recursos entre os gastos primários – educação, saúde, segurança defesa, salários e ordenados de diferentes e desiguais ca- tegorias, benefícios previdenciários etc., que disputariam a fatia maior no Congresso, sem as salvaguardas constitucionais atuais.
Desse jogo duplamente desigual, os direitos básicos da “Ordem Social” são escalados para perder sistematicamente contra o setor financeiro, cujas despesas não estão limitadas, e contra os setores econômicos e buro- cráticos com maior poder de barganha orçamentária, contidos no limite do total do gasto primário (a inflação do ano anterior).
Salta aos olhos a inversão ética da PEC 241/2016. Despesas financeiras, atualmente na faixa de 500 bilhões de reais anuais, algo como 10% do PIB, ficariam isentas de qualquer limite. Os beneficiários dessas despesas financeiras (juros, subsídios fiscais e financeiros, seguros cambiais) se habilitam a receber toda a sobra do Orçamento, a título de “superávit” primá- rio, para solver os seus serviços financeiros. Essa montanha de recursos vai às poucas dezenas de milhares de famílias detentoras de títulos da Dívida Pública. E todos os demais “setores” orçamentários ficariam restritos a não crescer ou praticar canibalismo dos direitos básicos para crescer, ou seja, ultrapassar o limite da inflação do ano anterior mediante emendas “arranjadas” na barganha congressual, contrapondo-se a outro setor mais débil, que perderia recursos.
Essa PEC transforma o serviço da dívida pública e a própria Dívida Pública oficial em entidade teológico-idolátrica, a quem a sociedade, especialmente os mais pobres, tem que servir a qualquer custo, mesmo que à revelia da ética, do direito (constitucional) e da justiça.
Valores estratosféricos – 500 bilhões de reais, quase cem vezes maio- res que todos os desvios de recursos da Petrobras, apurados e revelados pelos procuradores de Curitiba, na última fala televisiva – são empurrados para a sociedade pagar, mediante compulsória cobrança da “República In- dependente do Banco Central”. A PEC 241/2016 complementa o serviço ilegítimo de um tópico da Constituição de 1988, que declara o serviço da dívida pública insusceptível de emenda pelo Congresso (Art. 166, pará- grafo 3, item II ‘b’), tópico este sobre o qual pesam fundadas suspeitas de ser sido introduzido clandestinamente na Carta, sobre o que o ex-ministro Nelson Jobim teria algo a dizer.
Por outro lado, os campos dos direitos políticos e dos direitos civis, que juntamente com os direitos sociais compõem o tripé fundante dos direitos humanos na chamada ordem constitucional, padecem de constrangimentos e também de violações sistemáticas. Por trás de muitas violências identificadas rigorosamente em 2016, seja pelo Relatório Anual do Cimi sobre violências contra povos indígenas, seja pelo Relatório Anual da CPT, que trata da violência agrária, opera a avassaladora grilagem de terras públicas, ora convertidas em “imóveis rurais” reivindicados pelos ruralistas à internacionalização do chamado mercado de terras brasileiro, agora em fase de votação pelo plenário da Câmara Federal (PL 4059/2012).
No campo político não há como esconder a notória ilegitimidade substantiva do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, independentemente dos vários erros de condução da sua política econômica, que se somaram às muitas armadilhas preparadas pelos adversários para derrubá-la.
Não há como esconder também o papel faccioso de parte importante do judiciário, conivente com a armação do golpe do impeachment, e da sua continuidade no presente, que é a liquidação, por via judicial, da figura política do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.
Mas de tanto repetir o espetáculo midiático, a última encenação que foi a apresentação da denúncia contra o ex-presidente Lula pelos procu- radores da “República de Curitiba”, o tiro aparentemente saiu pela cula- tra. Com a peça acusatória apresentada, vazia de conteúdo probatório, sem o querer, os procuradores ofereceram ao ex-presidente o álibi perfeito: ao nada provarem, cacifam sua candidatura para 2018. Mas as ameaças aos direitos políticos da Constituição de 1988 continuam em plena efervescên- cia enquanto não se desatarem os nós críticos da crise estrutural ora em curso.
Há também fatores externos condicionantes dessa crise. Não somente no Brasil estão sob cerco os setores que promoveram política externa inde- pendente dos EUA. Na Argentina, no Equador e na Venezuela também, para citar três exemplos mais notórios.
Mas é preciso que tenhamos maturidade para identificar na articula- ção interna de vários grupos resistentes à ordem democrática, nos moldes específicos da Constituição de 1988, papéis protagonistas e de bastidores no retrocesso democrático. Neste sentido, precisamos identificar o sistema financeiro, o sistema midiático-corporativo e os grandes proprietários fun- diários do agronegócio, juntos resistentes há 28 anos, a que se restrinjam seus privilégios absolutos mediante regulamentações de textos constitucio- nais específicos – Art. 166 (serviço da dívida), Arts. 220 a 224 (Comuni- cação Social) e Art. 186 (função social da propriedade da terra).
Sinais de esperanças e de saídas para a crise
A sociedade que ora sofre o caudal de retrocessos em direitos de cidadania, conquanto relativamente anestesiada pela desinformação da mídia corporativa, não está inerte, apenas um tanto confusa politicamente. Multiplicam-se manifestações contra o comando aparente do atual retrocesso. Há crescimento sem precedente da consciência de direitos de cidadania, ora sob ameaça. Formam-se crescentemente mídias sociais alternativas. Desenvolvem-se iniciativas autônomas para proteção social e, de outra parte, mercados institucionais não operados pelo Estado, para viabilizar produtores familiares.
E, finalmente, no campo das saídas político-econômicas institucionais, cresce a consciência da necessidade imperiosa de se pôr limite ao ser- viço da dívida e à própria voracidade de sua auto alimentação mediante completa liberalidade ao sistema financeiro. Falta ainda um grau de consciência política maior.
Contraditoriamente, o aprofundar da crise e das terapias ultraconservadoras tende a desfechos de maior consciência social e de enfrentamentos crescentes.
https://www.social.org.br/index.php/relatorios/relatorios-portugues/194-relatorio-direitos-humanos-2016.html
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