Política

A reorganização da pilhagem

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Renato Nucci Jr. e Fernando LuzA classe tra­ba­lha­dora bra­si­leira e a mai­oria do povo as­sistem a um re­tro­cesso his­tó­rico sem pa­ra­lelo em seus di­reitos. Sob o pom­poso nome de re­formas, apre­sen­tadas como mu­danças ina­diá­veis para re­tirar o país da crise, busca-se na ver­dade a des­truição sis­te­má­tica dos nó­dulos ci­vi­li­za­tó­rios con­quis­tados pelo povo e que lhe ga­rantem o mí­nimo de dig­ni­dade.

A pro­posta de re­forma da pre­vi­dência apre­sen­tada pelo go­verno Temer re­pre­senta um ataque sem pre­ce­dentes aos in­te­resses da classe tra­ba­lha­dora bra­si­leira. Elevar a idade mí­nima de apo­sen­ta­doria para 65 anos, sob a jus­ti­fi­ca­tiva ter ocor­rido um au­mento na ex­pec­ta­tiva de vida da po­pu­lação, é ig­norar ou­tras va­riá­veis igual­mente im­por­tantes. No Brasil, a en­trada no mer­cado de tra­balho se faz, para par­celas sig­ni­fi­ca­tivas da classe tra­ba­lha­dora, ainda na ado­les­cência e em em­pregos pre­cá­rios e in­for­mais. Outro as­pecto ro­tun­da­mente ig­no­rado é o fato de a ex­pec­ta­tiva de vida não ser a mesma quando se con­si­dera a faixa de renda. Pa­rece meio óbvio, mas os mais po­bres vivem em média menos do que os ricos.

A re­or­ga­ni­zação da acu­mu­lação

Além da ele­vação da idade mí­nima, as mu­danças também atingem o valor dos be­ne­fí­cios, pois para re­ceber o valor in­te­gral de apo­sen­ta­doria, um tra­ba­lhador pre­ci­saria ter 49 anos de con­tri­buição. Con­si­de­rando a ele­vação da idade mí­nima para 65 anos, um tra­ba­lhador teria de co­meçar a con­tri­buir a partir dos 16 anos inin­ter­rup­ta­mente se quiser re­ceber a con­tri­buição pelo valor in­te­gral. A pro­posta também al­tera o Be­ne­fício de Pres­tação Con­ti­nuada (BPC), des­vin­cu­lando-o do sa­lário mí­nimo e au­men­tando a idade para o re­que­ri­mento de 65 anos para 70 anos. Outro be­ne­fício afe­tado é o da pensão por morte. Este dei­xaria de ser in­te­gral, re­du­zido a 50% do valor mais 10% por de­pen­dente, e também des­vin­cu­lado do sa­lário mí­nimo.

Aqui re­side uma grande ar­ma­dilha do go­verno Temer. A pro­posta, con­si­de­rada como ex­tre­ma­mente agres­siva, pode ser a partir de ne­go­ci­a­ções ate­nuada. Porém, seu as­pecto re­gres­sivo fi­caria man­tido em uma pro­porção menor do que o pro­jeto ori­ginal. Mas as pro­postas de mu­dança, res­pal­dadas por uma cam­panha in­sis­tente dos grandes meios de co­mu­ni­cação sobre uma imi­nente quebra do sis­tema cau­sado por um rombo fi­nan­ceiro, não mexe apenas com o re­gime da pre­vi­dência so­cial.

Elas al­teram o fun­ci­o­na­mento de todo o sis­tema da se­gu­ri­dade so­cial, uma das mai­ores con­quistas da classe tra­ba­lha­dora bra­si­leira ga­ran­tida na Cons­ti­tuição de 1988. A se­gu­ri­dade so­cial in­clui a pre­vi­dência so­cial, a as­sis­tência so­cial e a saúde, cum­prindo em tese o papel de forjar uma es­pécie de “so­li­da­ri­e­dade po­li­clas­sista”. Para termos uma ideia da im­por­tância da se­gu­ri­dade, o BPC, pago a pes­soas com mais de 65 anos cuja renda fa­mi­liar per ca­pita é de até R$ 220, e também aos de­fi­ci­entes fí­sicos, be­ne­ficia mais de 4 mi­lhões de pes­soas e re­pre­senta um vo­lume anual de re­cursos de R$ 50 bi­lhões.

Acresce-se a esse quadro de pro­fundo ataque aos in­te­resses po­pu­lares a im­po­sição de um teto aos gastos pú­blicos pri­má­rios por 20 anos, como a saúde, também in­te­grante da se­gu­ri­dade so­cial. Ou seja, as classes mais em­po­bre­cidas, além de terem mais di­fi­cul­dades para acessar os be­ne­fí­cios pre­vi­den­ciá­rios, terão ser­viços de saúde e edu­cação bem mais pre­cá­rios e es­cassos. Logo, a es­ti­ma­tiva de vida média tende a ser menor nestas novas con­di­ções do que pro­põem os cál­culos de hoje, ba­se­ados na evo­lução da se­gu­ri­dade so­cial atual e não na sua des­truição. Porque não há dú­vidas de que a se­gu­ri­dade so­cial foi a prin­cipal res­pon­sável pelo au­mento da ex­pec­ta­tiva de vida dos bra­si­leiros ao longo do tempo. A sua des­truição sig­ni­fica a di­mi­nuição da ex­pec­ta­tiva de vida das massas em­po­bre­cidas em geral.

Com o des­monte da se­gu­ri­dade so­cial, o Es­tado bur­guês no Brasil envia si­nais claros de sua dis­po­sição em ar­rasar todas as con­quistas so­ciais dos tra­ba­lha­dores bra­si­leiros. Con­quistas res­pon­sá­veis por ga­rantir, mesmo em pa­ta­mares baixos, um mí­nimo de dig­ni­dade a mi­lhões de pes­soas.

Pi­lhagem sem li­mites

No final de 2016, o go­verno Temer ainda nos “brindou” com o anúncio de uma re­forma tra­ba­lhista, cujo sen­tido é o de des­truir os me­ca­nismos le­gais de pro­teção ao tra­balho, prin­ci­pal­mente a CLT. Ao es­ta­be­lecer a su­pre­macia do ne­go­ciado sobre o le­gis­lado, os sin­di­catos de tra­ba­lha­dores po­derão ne­go­ciar, nas con­ven­ções co­le­tivas, acordos que fle­xi­bi­lizem jor­nada de tra­balho e di­mi­nuição dos in­ter­valos in­tra­jor­nada. O ob­je­tivo não é outro senão o de impor ao tra­ba­lhador uma dupla pre­ca­ri­zação, im­pe­dindo-lhe de plei­tear na jus­tiça horas-ex­tras não pagas, bem como a di­mi­nuição do ho­rário de re­feição, pois dos 200 mil pro­cessos ca­das­trados no TST em 2013, quase 30% plei­teiam jus­ta­mente horas-ex­tras e des­res­peito ao in­ter­valo in­tra­jor­nada. E, além disso, pre­tende-se, também, au­mentar a pre­ca­ri­zação das re­la­ções de tra­balho através da ter­cei­ri­zação das ati­vi­dades-fim das em­presas.

Feita a re­forma tra­ba­lhista da ma­neira como de­seja a bur­guesia, o go­verno Temer e seus ali­ados no Con­gresso, as ca­madas mais po­bres da classe tra­ba­lha­dora, mais su­jeitas ao tra­balho pre­cário e com alta ro­ta­ti­vi­dade, não con­se­guirão com­pletar em vida os 49 anos de con­tri­buição su­ge­ridos na pro­posta de re­forma que Temer en­viou ao Con­gresso. Quer dizer, a PEC 55, a Re­forma da Pre­vi­dência e a Re­forma Tra­ba­lhista, se con­cluídas nos termos em que estão sendo apro­vadas e co­gi­tadas, jo­garão mais da me­tade da po­pu­lação bra­si­leira em um es­tado de grave mi­se­ra­bi­li­dade.

Apre­sentam-se essas mu­danças como ne­ces­sá­rias para “mo­der­nizar” o país e criar um am­bi­ente econô­mico capaz de re­cu­perar os in­ves­ti­mentos para a eco­nomia crescer. No fundo, pre­tende-se com todas essas al­te­ra­ções au­mentar o me­ca­nismo de su­pe­rex­plo­ração da força de tra­balho, vi­sando ga­rantir a lu­cra­ti­vi­dade do ca­pital. E isso im­plica um re­bai­xa­mento da in­serção econô­mica do Brasil no mer­cado in­ter­na­ci­onal cau­sado pela he­ge­monia da fração ren­tista, que de­ter­mina as li­nhas ge­rais da po­lí­tica econô­mica, com­bi­nada a uma fração agrária e mi­ne­ra­dora, cuja atu­ação econô­mica se volta ex­clu­si­va­mente ao mer­cado ex­terno. As­sis­timos a uma es­pécie de re­a­tu­a­li­zação, em pleno sé­culo 21, de me­ca­nismos econô­micos de nosso pas­sado co­lo­nial.

Mas, en­quanto a se­gu­ri­dade so­cial é des­truída e os gastos pú­blicos pri­má­rios serão com­pri­midos por 20 anos, os gastos com juros da dí­vida pú­blica serão man­tidos in­tactos. Seus prin­ci­pais be­ne­fi­ciá­rios são os pa­ra­sitas do sis­tema fi­nan­ceiro. En­quanto nos úl­timos dois anos os tra­ba­lha­dores en­fren­taram de­sem­prego e ar­rocho sa­la­rial, só em 2015 os cinco prin­ci­pais bancos do país (Itaú/Uni­banco, Bra­desco, San­tander, Caixa Econô­mica Fe­deral e Banco do Brasil), fe­charam o ano com R$ 69,9 bi­lhões de lucro lí­quido. A lu­cra­ti­vi­dade desses bancos está for­te­mente vin­cu­lada a apli­cação em tí­tulos e va­lores mo­bi­liá­rios, prin­ci­pal­mente a dí­vida pú­blica, re­pre­sen­tando 43% da sua re­ceita nos úl­timos dois anos. O me­ca­nismo da dí­vida re­pre­senta uma forma pri­vi­le­giada de acu­mu­lação de ca­pital ga­ran­tida pelo Es­tado. Em 2015, dos R$ 2,268 tri­lhões exe­cu­tados no Or­ça­mento Geral da União, 42,43% foram gastos com juros e amor­ti­za­ções da dí­vida pú­blica.

Pri­o­rizar no Or­ça­mento os in­te­resses do pa­ra­si­tismo fi­nan­ceiro, bem como for­ta­lecer nossa “vo­cação” agro-mi­neral-ex­por­ta­dora, em de­tri­mento dos in­te­resses da mai­oria do povo, deixa claro que o sen­tido da re­lação da bur­guesia bra­si­leira com o es­paço na­ci­onal tem um ca­ráter pre­da­tório, cuja base de apoio sempre es­teve ao longo de nossa his­tória nas par­celas po­li­ti­ca­mente mais re­a­ci­o­ná­rias das ca­madas mé­dias. Essa re­lação pre­da­tória se cons­tata nas se­guintes si­tu­a­ções:

1) pela pi­lhagem de re­cursos pú­blicos através da cor­rupção, ou por me­ca­nismos for­mal­mente le­gais como a dí­vida pú­blica e a pri­va­ti­zação, bem como por uma es­pécie de lo­te­a­mento do Es­tado entre as di­fe­rentes fra­ções bur­guesas.

2) por uma apro­pri­ação dos re­cursos na­tu­rais do país (terra e ri­quezas mi­ne­rais) por grandes grupos ca­pi­ta­listas pri­vados.

Essa ex­pro­pri­ação muitas vezes é exe­cu­tada pela ex­pro­pri­ação de pe­quenos agri­cul­tores, qui­lom­bolas e in­dí­genas no es­paço rural; e no es­paço ur­bano através do pro­cesso de gen­tri­fi­cação, es­pe­cu­lação imo­bi­liária e a re­moção de co­mu­ni­dades po­bres.  O ca­ráter pre­da­tório, no caso da ati­vi­dade agrário-mi­neral, ma­ni­festa-se em uma forma de ex­plo­ração sem quais­quer pre­o­cu­pa­ções com im­pactos am­bi­en­tais, sem a par­tilha dos lu­cros dessa ex­plo­ração com o resto da so­ci­e­dade e por uma ati­vi­dade que não chega ao fim en­quanto não exaurir com­ple­ta­mente as re­servas ex­plo­radas.

3) em uma re­ti­rada de quais­quer li­mites le­gais, ou mesmo mo­rais, ao pro­cesso de acu­mu­lação ca­pi­ta­lista, cujo exemplo mais sig­ni­fi­ca­tivo são os altos ní­veis de ex­plo­ração da força de tra­balho.

O blá­bláblá li­beral em torno dessas po­lí­ticas serve apenas para edul­corar o con­teúdo ne­fasto dessa re­lação pre­da­tória. Seu ob­je­tivo real ocul­tado pelo apa­rato de pro­pa­ganda é per­mitir à bur­guesia pros­se­guir com a pi­lhagem de todos os re­cursos na­ci­o­nais, através da es­po­li­ação e da im­po­sição de enormes sa­cri­fí­cios ao povo. É nesse sen­tido que a crise em curso no nosso país é de uma gra­vi­dade sem pa­ra­lelo.

A bur­guesia, para manter seus lu­cros em pa­ta­mares ele­vados, apro­veita-se de uma con­jun­tura na qual a classe tra­ba­lha­dora se en­contra po­li­ti­ca­mente muito fra­gi­li­zada, para per­pe­trar contra esta um ataque sem pre­ce­dentes aos seus di­reitos. Não es­tamos di­ante de uma mera crise econô­mica ou fiscal. Muito menos es­tamos di­ante de uma mera crise po­lí­tico-ins­ti­tu­ci­onal. Ambas são usadas como jus­ti­fi­ca­tiva das des­graças que nos querem im­pingir.

Terra ar­ra­sada

A origem da crise em curso, como foi apon­tada acima, está na acen­tu­ação das con­tra­di­ções ge­radas pela re­lação pre­da­tória e es­po­li­a­dora da bur­guesia com o es­paço na­ci­onal. Essa re­lação pre­da­tória foi dra­ma­ti­ca­mente acen­tuada a partir da subs­ti­tuição, por parte da bur­guesia bra­si­leira, de um pro­jeto na­ci­onal-de­sen­vol­vi­men­tista pelo ne­o­li­be­ra­lismo. Nota-se uma clara mu­dança na po­sição ide­o­ló­gica da bur­guesia bra­si­leira quanto a sua re­lação com o es­paço na­ci­onal. Sua fração he­gemô­nica, como in­di­cado, é li­de­rada pelo ren­tismo e por uma bur­guesia as­so­ciada, ambas com fortes vín­culos com o cir­cuito fi­nan­ceiro in­ter­na­ci­onal e com os mer­cados ex­ternos.

A vo­ra­ci­dade da agenda fi­nan­ceira sobre o Es­tado e o país, com seu alto grau de pa­ra­si­tismo, as­so­ciada à bur­guesia agrário-mi­neral ex­por­ta­dora, acentua essa re­lação pre­da­tória. Já as fra­ções su­bal­ternas da bur­guesia, prin­ci­pal­mente aquelas cuja pro­dução está di­ri­gida pre­fe­ren­ci­al­mente ao mer­cado in­terno, ainda que te­nham num pri­meiro mo­mento seus lu­cros di­mi­nuídos por causa da po­lí­tica econô­mica de in­te­resse do ren­tismo, re­cebem como com­pen­sação uma pro­posta de re­forma tra­ba­lhista que acentua a su­pe­rex­plo­ração do tra­balho.

A base dessa re­lação pre­da­tória se situa nos fa­tores es­tru­tu­rantes do ca­pi­ta­lismo bra­si­leiro: su­pe­rex­plo­ração do tra­balho (ainda maior quando se in­cluem fa­tores ét­nicos, de gê­nero e re­gi­o­nais), que atua como con­dição para ga­rantir os al­tís­simos ní­veis de con­cen­tração de renda e de ri­queza de par­celas ín­fimas da po­pu­lação e como re­sul­tado do papel su­bor­di­nado do país na ca­deia im­pe­ri­a­lista. Esse re­gime de acu­mu­lação e de re­pro­dução do ca­pital busca cons­tan­te­mente obs­truir, pelo uso re­cor­rente dos apa­re­lhos ju­rí­dico-re­pres­sivos do Es­tado, ou pelo con­trole po­lí­tico sobre os apa­re­lhos ad­mi­nis­tra­tivo-bu­ro­crá­ticos, o aten­di­mento de me­didas de cunho re­for­mista que efe­ti­va­mente ate­nuem os efeitos dos as­pectos es­tru­tu­rais acima in­di­cados. Às massas po­pu­lares cabe o “di­reito” de viver na bar­bárie co­ti­diana.

Esse é o ca­pi­ta­lismo real

O ca­pi­ta­lismo re­al­mente exis­tente em nosso país co­nhece pe­ri­o­di­ca­mente pro­cessos de re­a­tu­a­li­zação desses fa­tores es­tru­tu­rantes. Essa ne­ces­si­dade de re­a­tu­a­lizar ou, se pre­fe­rirmos, de mo­der­ni­zação sem mu­danças subs­tan­ciais em nosso ca­pi­ta­lismo, não se deve a um ata­vismo cul­tural de nossa classe do­mi­nante. Suas de­ter­mi­na­ções obe­decem a ra­zões bem mais prá­ticas, como o es­tágio da luta de classe, os re­or­de­na­mentos im­postos à eco­nomia mun­dial pelas po­tên­cias im­pe­ri­a­listas e a ne­ces­si­dade de re­compor as taxas de lucro em con­di­ções de ga­rantir a re­pro­dução am­pliada do ca­pital.

O atual mo­vi­mento de re­a­tu­a­li­zação da re­lação pre­da­tória, porém, ao ter como força he­gemô­nica o pa­ra­si­tismo ren­tista e a bur­guesia agrário-mi­neral ex­por­ta­dora, tem um as­pecto que chama a atenção. O apo­dre­ci­mento sem pa­ra­lelo da so­ci­a­bi­li­dade bur­guesa no Brasil. Seus sin­tomas são vi­vidos di­a­ri­a­mente pela massa tra­ba­lha­dora do país na forma de au­mento da vi­o­lência, da cri­mi­na­li­dade, da dis­puta entre fac­ções cri­mi­nosas pelo con­trole de redes de trá­fico de drogas, pela exa­cer­bação da vi­o­lência ma­chista, pelo ra­cismo, pelo apa­re­ci­mento de mo­vi­mentos se­pa­ra­tistas e pelo ataque sis­te­má­tico a qual­quer pro­jeto igua­li­ta­rista, tenha ele cunho re­for­mista ou re­vo­lu­ci­o­nário.

Nesse caldo po­lí­tico e so­cial ga­nham au­di­ência as so­lu­ções mís­tico-re­li­gi­osas e po­lí­tico-au­to­ri­tá­rias de ca­ráter con­ser­vador. Ambas apelam para a ne­ces­si­dade de se im­plantar “re­formas con­ser­va­doras”, vistas ilu­so­ri­a­mente como as únicas ca­pazes de nos trazer de volta a “paz so­cial”.

Um ramo do apa­relho de Es­tado tem de­mons­trado, mais do que qual­quer outro, os efeitos desse apo­dre­ci­mento. Trata-se do sis­tema po­lí­tico. Este, em qual­quer país ca­pi­ta­lista, cumpre dois pa­péis fun­da­men­tais, cujas de­ter­mi­na­ções po­lí­tico-ide­o­ló­gicas con­cretas re­fletem o es­tágio da luta de classe. Pri­meiro é o de re­gular o acesso aos apa­re­lhos de Es­tado das fra­ções bur­guesas con­cor­rentes. Se­gundo é o de obs­ta­cu­lizar o acesso das classes do­mi­nadas a esses mesmos apa­re­lhos de Es­tado. Em es­sência, sua fi­na­li­dade é sempre a de ga­rantir a do­mi­nação de classe, mesmo que para isso as classes do­mi­nantes te­nham que fazer con­ces­sões po­lí­tico-econô­micas às classes do­mi­nantes.

Neste caso, a re­lação pre­da­tória as­sume um ca­ráter de pi­lhagem dos re­cursos pú­blicos, através da cor­rupção pura e sim­ples, ou re­cor­rendo a me­ca­nismos “le­gais” como apro­pri­ação de fundos es­ta­tais através da dí­vida pú­blica, pri­va­ti­zação, ter­cei­ri­zação ou con­cessão de ser­viços pú­blicos. Desse modo, as elei­ções não passam de mera dis­puta entre má­fias po­lí­tico-em­pre­sa­riais pelo con­trole dos ramos exe­cu­tivo e le­gis­la­tivo dos apa­re­lhos de Es­tado. O in­tuito claro é o de ga­rantir, a partir de po­si­ções im­por­tantes no in­te­rior da má­quina de go­verno, o acesso a uma massa con­si­de­rável de re­cursos pú­blicos para, a partir daí, re­a­lizar toda a sorte de ne­gó­cios es­cusos. Re­side aqui um as­pecto im­por­tante da re­lação pre­da­tória.

A dis­puta po­lí­tica atual é apenas pela chave do cofre

Trata-se de uma luta in­tra­bur­guesa, no sen­tido de lo­te­a­mento do Es­tado e mesmo de pe­daços do ter­ri­tório na­ci­onal. O ren­tismo con­trola os ins­tru­mentos de po­lí­tico-econô­mica. A fração agrário-mi­ne­ra­dora do­mina pe­daços do ter­ri­tório na­ci­onal. Pa­trimô­nios his­tó­ricos e na­tu­rais são en­tre­gues à gestão de em­presas pri­vadas. E as bur­gue­sias re­gi­o­nais lutam pelo con­trole dos apa­re­lhos de Es­tado lo­cais através da ter­cei­ri­zação ou con­cessão de ser­viços pú­blicos.

Mas a re­gressão so­cial ob­ser­vada pela re­a­tu­a­li­zação da re­lação pre­da­tória só ad­quire a força atu­al­mente vista pelas di­fi­cul­dades de as massas tra­ba­lha­doras ofe­re­cerem uma re­sis­tência de pro­porção idên­tica. Di­fi­cul­dade que re­sulta, prin­ci­pal­mente, dos efeitos anes­té­sicos cau­sados por 13 anos de man­datos pe­tistas em termos de des­mo­bi­li­zação, des­po­li­ti­zação e baixo nível de cons­ci­ência de classe.

A luta de classe se re­baixou ao mais reles eco­no­mi­cismo, pois os man­datos pe­tistas não se pro­pu­seram a de­fender qual­quer re­forma pro­gres­sista capaz de mo­bi­lizar os tra­ba­lha­dores e o povo, além de fazer avançar seu nível de cons­ci­ência e de po­li­ti­zação. Temos uma classe tra­ba­lha­dora, atu­al­mente, de­sar­mada po­lí­tica e ide­o­lo­gi­ca­mente para res­ponder à ofen­siva da bur­guesia contra os seus di­reitos e barrar o pro­cesso de pi­lhagem.

A res­posta da bur­guesia para quem não aceitar morrer na mi­séria se re­flete na cri­mi­na­li­zação e na re­pressão ju­rí­dico-po­li­cial, com ins­tru­mentos cri­ados in­clu­sive pelo go­verno Dilma, como a lei an­ti­ter­ro­rismo. Este é um dos mo­tivos para o go­verno Temer ter dei­xado de fora da re­forma da pre­vi­dência os mi­li­tares, res­pon­sá­veis por mais da me­tade do dé­ficit ob­ser­vado no sis­tema. Fica claro seu ob­je­tivo de não se in­dispor com o apa­rato re­pres­sivo do Es­tado, pois dele pre­ci­sará para re­primir du­ra­mente as par­celas in­sa­tis­feitas da po­pu­lação.

En­cru­zi­lhada his­tó­rica

As fra­ções he­gemô­nicas da bur­guesia bra­si­leira, ao re­a­tu­a­li­zarem nas con­di­ções atuais a re­lação pre­da­tória com o es­paço na­ci­onal, levam a um agra­va­mento da crise so­cial e da bar­bárie co­ti­diana vi­vida pela grande massa tra­ba­lha­dora do país. As ten­dên­cias em curso in­dicam um cres­cente es­gar­ça­mento da so­ci­a­bi­li­dade bur­guesa, acen­tuada pelo des­monte da se­gu­ri­dade so­cial e dos me­ca­nismos de pro­teção ao tra­balho. A re­ação das par­celas mais com­ba­tivas da classe tra­ba­lha­dora é res­pon­dida com mais vi­o­lência es­tatal e cri­mi­na­li­zação dos mo­vi­mentos so­ciais. Agravam-se, com o re­curso cada vez mais comum à vi­o­lência, a luta con­cor­ren­cial entre as fra­ções bur­guesas por uma re­par­tição mais equi­li­brada do poder po­lí­tico e econô­mico. Por fim, a crise tende a agravar a cri­mi­na­li­dade e a dis­puta entre fac­ções cri­mi­nosas, que se ar­raigam cada vez mais no sis­tema po­lí­tico.

As con­clu­sões acima podem pa­recer apo­ca­líp­ticas. To­davia, pre­fe­rimos pecar pelo re­a­lismo pes­si­mista a ficar no oti­mismo vazio e sem base real e con­creta. Es­tamos, sem exa­gero, di­ante de uma es­pécie de “me­xi­ca­ni­zação” do Brasil: ali­nha­mento total das fra­ções bur­guesas he­gemô­nicas com os Es­tados Unidos, des­na­ci­o­na­li­zação da eco­nomia, pre­ca­ri­zação das re­la­ções de tra­balho, em­po­bre­ci­mento ainda maior da mai­oria da po­pu­lação, dis­puta vi­o­lenta entre as fra­ções bur­guesas pelo con­trole de es­paços de poder no in­te­rior do Es­tado, au­mento da vi­o­lência e da cri­mi­na­li­zação contra os mo­vi­mentos so­ciais mais com­ba­tivos e do­mínio do crime or­ga­ni­zado (prin­ci­pal­mente as redes de trá­fico de drogas) sobre par­celas do ter­ri­tório na­ci­onal e mesmo no in­te­rior do Es­tado.

A única saída para essa crise de di­mensão his­tó­rica, que pode hi­po­tecar o fu­turo do país pelas pró­ximas dé­cadas e até mesmo in­vi­a­bi­lizá-lo como Es­tado na­ci­onal, está na mo­bi­li­zação da classe tra­ba­lha­dora e do con­junto do povo para botar abaixo os as­pectos es­tru­tu­rantes de nosso ca­pi­ta­lismo e pre­parar as bases para a cons­trução de uma so­ci­e­dade so­ci­a­lista. São ób­vias as di­fi­cul­dades atuais para que esse mo­vi­mento se con­cre­tize. To­davia, trata-se de uma ta­refa ines­ca­pável, se qui­sermos su­perar as con­sequên­cias ca­tas­tró­ficas pro­du­zidas pelo atual mo­vi­mento de re­a­tu­a­li­zação da re­lação pre­da­tória da bur­guesia bra­si­leira com o es­paço na­ci­onal.

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