IGOR GIELOW – Quando a bandeira vermelha da União Soviética desceu o mastro do Kremlin no gelado 25 de dezembro de 1991, poucos poderiam prever que em um mero quarto de século os elementos que levaram à derrocada do império comunista seguiriam a assombrar Moscou.
Queda nos preços do petróleo que move sua economia intrinsecamente disfuncional, elevação de gastos militares e o desafio representado pela Ucrânia. O que foi fatal há 25 anos ameaça agora os planos de Vladimir Putin de resgatar o prestígio da antiga superpotência.
O presidente, que considera o fim do império que faria cem anos em 2017 o “maior desastre geopolítico do século 20”, tem dobrado a aposta.
Tem dado certo pontualmente, mas os próximos dois anos mostrarão se as vitórias táticas que vem colhendo podem tornar-se duradouras.
Sem sucessor claro nas eleições de 2018, Putin vem centralizando poder com intrigas dignas do papado na era dos Bórgias, expurgando aliados e criando instâncias como sua Guarda Nacional.
A economia, como sempre, é quem dá o ritmo à valsa. O arco narrativo russo de 2016 torna-se uma serpente a comer o próprio rabo de 1991 justamente devido à pressão sobre as arcas do Kremlin.
O governo prevê que o principal fundo soberano amealhado no ciclo de alta do petróleo esteja exaurido em 2017, não menos pela voracidade do gasto militar, perto dos 5% do PIB.
No ocaso soviético, era semelhante, mas, até pela natureza do regime, a percepção da crise era mais branda para o cidadão comum, apesar das famosas filas para comprar comida.
“A vida era melhor, as pessoas tinham previsibilidade. Quando acabou, não quis acreditar. Aí veio o [governo de Boris] Ieltsin, parecia que ia ser bom, mas foi um desastre. Putin colocou ordem ao virar presidente, mas as coisas andam difíceis”, diz Vera Pimenova, 64, professora aposentada em Khabarovsk, segunda maior cidade do Extremo Oriente russo.
Lá, o pleito de setembro passado manteve no poder o Rússia Unida, partido criado para dar suporte a Putin em 2001. “Votamos nos chefes do poder, como nos tempos comunistas. Não sei como é em Moscou”, resume Vera.
A leste da ferrovia Transiberiana, tudo parece mais soviético. A 9.289 km de Moscou, no ponto final em Vladivostok, carros japoneses passam por estátua que homenageia a tomada da cidade pelo Exército Vermelho em 1922.
Família assiste em casa ao discurso de renúncia do presidente da URSS, Mikhail Gorbatchov
CAPITAL E INTERIOR
Na capital russa é diferente, a despeito de a cidade guardar aqui e ali símbolos soviéticos e propagandeá-los como suvenires.
Com uma classe média escolarizada e melhor renda (concentra 21,6% do PIB do país), a cidade viu grandes protestos logo depois da terceira eleição de Putin à presidência, em 2012 –após esquentar a cadeira de premiê (e real governante) na gestão do protegido Dmitri Medvedev, que a ocupa agora.
Apesar de ser um centro de dissenso, Moscou também é dominada pelo Rússia Unida. É do Kremlin que Putin executa seu projeto de recriação de uma identidade nacional, seguindo o padrão da dinastia Romanov (1613-1917) e replicado sem o verniz religioso pelos comunistas.
“Somos um povo de valores”, afirma o chefe de comunicação da Igreja Ortodoxa, Vladimir Legoyda, 43, o que explica o peso dado por Putin à ritualística. E a igreja é um baluarte do projeto putinista, que também passa por suas aventuras militares.
A intervenção na guerra civil da Síria é a mais recente e criticada, mas para Putin o sucesso doméstico da propaganda é inegável: segundo o instituto de pesquisas Levada, ele mantém a aprovação na casa dos 80%.
“O regime está entrando num novo estágio, de preservação, não de se arriscar com novas visões ou política econômica”, diz o historiador ucraniano Serhii Plokhy, 59, professor em Harvard e autor de um livro seminal sobre o fim da União Soviética, “O Último Império” (Leya, 2015).
Torre do Kremlin com arranha-céus stalinistas ao fundo, em Moscou
OTAN
O nó econômico é reforçado pelas sanções dos EUA e Europa após a anexação da Crimeia, território de maioria russa cedido a Kiev em 1954.
A Rússia é um país travado pela geografia, sem acesso fácil ao mar e, logo, ao comércio e à projeção militar. Com o fim da União Soviética, perdeu o bloco que a isolava do Ocidente. Retomar sua base no mar Negro soa lógico, assim como para os mais alarmistas também seria cobiçar as antigas repúblicas soviéticas do Báltico.
Para piorar, o Ocidente manteve uma política agressiva de expansão de suas instituições no pós-Guerra Fria, com a UE (União Europeia) e Otan às margens da Rússia.Plokhy e outros duvidam desse avanço, já que os três Estados da região estão na Otan (aliança militar ocidental). Mas a Estônia, com 25% de russos étnicos em seu território, se prepara ativamente para algum tipo de conflito ou insurreição.
Conhecedor da inapetência do Ocidente para o conflito de fato, Putin joga com o fato de ter 1.800 armas nucleares prontas para uso, fora outras 5.500 no estoque.
“Quando eu era criança, não tinha medo de guerra nuclear. De uns dois anos para cá, passei a ter, por mais improvável que pareça”, afirma o analista militar Ruslan Pukhov, 44, diretor do Centro para Análise de Estratégias e Tecnologias de Moscou.
Falando grosso e travando uma guerra arriscada contra a nanica Geórgia em 2008, Putin conseguiu frear novos convites da Otan a ex-repúblicas soviéticas. Só que a UE namorou a Ucrânia, levando à queda do regime pró-Moscou em 2014 e à subsequente ação russa –que também fomenta separatistas.
Voltamos a 1991. Naquele ano, a insistência de Kiev em promover um referendo de independência e rejeitar a União proposta pelo então presidente Mikhail Gorbatchov foi o prego no caixão do regime, dado o peso geopolítico da rica Ucrânia e sua posição entre russos e europeus.
“A Ucrânia é agora um conflito congelado”, sentencia o papa da geopolítica americana George Friedman, 67, presidente da empresa de previsão estratégica Geopolitical Futures. Isso dá uma vitória temporária a Putin, a quem ele considera superestimado pelo Ocidente.
TRUMP
Há também um fator imponderável: a chegada de Donald Trump ao poder nos EUA. Trump terá dificuldades em explicar ao eleitor por que deveria arriscar guerra termonuclear para salvar Riga ou Tallinn, uma vez que ameaçou deixar a Otan às moscas.
E o russo arriscaria? “Putin fez intervenção de baixo risco na Síria que aumentou a chance de desafiar os EUA diretamente, mas as oportunidades de baixo risco estão acabando”, diz Friedman.
Já Plokhy vê um clima mais favorável a Putin com a ascensão dos nacionalismos. “A Rússia é regra, não exceção, Putin estava lá antes de todos. Ele pode celebrar uma vitória. Há grandes chances de que a emergência do nacionalismo e do isolacionismo na UE e nos EUA facilite atingir seus objetivos de reintegração de espaço no Leste Europeu e retomada de posições no Oriente Médio”, diz.
“A experiência recente do impeachment no Brasil é um guia. Quando a economia se deteriora, carreiras políticas acabam”, compara, menos complacente, Friedman.
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/12/1844364-petroleo-e-ucrania-assombram-a-russia-25-anos-depois-da-urss.shtml
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