Vladimir Safatle – A democracia liberal como a conhecemos é uma invenção que se consolidou a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Ela respondia a um sistema de acordos e equilíbrios entre setores sociais antagônicos. Sua base de sobrevivência foi a capacidade em orientar a política em direção a uma espécie de “luta pela conquista do centro”.
Assim, por exemplo, os partidos de esquerda paulatinamente moderaram seus horizontes de ruptura institucional para acabar por serem gestores da social-democracia e do dito Estado de bem-estar social europeu. Mesmo os partidos comunistas da Europa, fortes até o final dos anos 1970, operaram no interior dessa lógica. Da mesma forma, os partidos de direita foram levados a aceitar a conservação de uma espécie de mínimo social a ser respeitado, mesmo agindo em vistas à liberalização da economia.
O primeiro tremor neste pacto se deu com a leva neoliberal de Thatcher e Reagan. Nos EUA, o pacto criado pelo New Deal de Franklin Roosevelt foi desmontado por meio de uma política de retração do Estado e redução de impostos para os mais ricos. O mesmo foi feito no Reino Unido, sob o fogo de uma luta incessante contra os sindicatos e as categorias profissionais.
No entanto, os anos 1990 pareciam inicialmente implicar certa retração do horizonte neoliberal com a ascensão do que se chamou à época de “onda rosa”. Mas o novo trabalhismo de Tony Blair, o novo centro de Gerhard Schröder e a volta dos democratas com Bill Clinton demonstraram outra coisa.
Na verdade, tratava-se de um alarme falso. O que se viu foi apenas a consolidação da falência da social-democracia, seu enterro pelos próprios atores que, de certa forma, deveriam representá-la. A França de Lionel Jospin, com alguns tons de rosa mais vermelhos, foi apenas um ponto fora da curva, já que foi lá, em 1995, que ocorreu a última grande greve geral de defesa do Estado de bem-estar.
Essa conversão da “esquerda” à gestão de um neoliberalismo “com o rosto mais humano” era irreversível.
Isso ficou evidente com a crise de 2008 e com a ausência de alternativas a um modelo econômico falimentar. Todos os atores políticos mundiais foram forçados a aplicar a mesma política de “austeridade”, com suas contenções de gastos públicos, seu desmonte de mecanismos de distribuição de renda e elevação dos interesses do sistema financeiro mundial a dogma inquestionável.
Nesse processo, os partidos de esquerda foram simplesmente dizimados, já que perderam de vez sua função de contraponto.
O resultado disso estamos vendo hoje. A ascensão de aberrações como Donald Trump, a protofascista Marine Le Pen, na França (em primeiro lugar nas pesquisas), e o Alternativa para a Alemanha, além da vitória do “brexit”, são partes de um mesmo fenômeno. Essas escolhas expressam a ausência de escolha dentro da democracia liberal.
Elas demonstram, na verdade, que a democracia liberal acabou, que seu acordo não existe mais. A crise econômica destruiu a democracia liberal e levou populações a irem em direção ao extremo em vez de aceitarem as normas e a dogmática econômica que vigoravam no centro.
Há uma certa ironia macabra nessa situação. Durante anos, a imprensa mundial tentou nos fazer acreditar que EUA e Inglaterra eram dois países que haviam deixado a crise econômica para trás com suas políticas de austeridade. No entanto, não é assim que pensam os próprios cidadãos desses países. Na verdade, eles escolheram discursos que insistiam na pauperização, na insegurança econômica, na precarização e no fim da globalização.
Daqui em diante, esta será a dinâmica política. Como não há mais acordo possível de conservação de conquistas sociais elementares, a política irá para os extremos. Só que, neste momento, a “esquerda” não consegue mais organizar um discurso de alternativa econômica. Em países como França e Alemanha (já que o SPD governa com a CDU há anos), foi ela que levou a cabo os choques de austeridade.
Nessa lógica, o único setor que realmente faz política hoje é a extrema-direita com sua mistura de discursos de proteção social e proteção paranoica contra tudo o que é tachado como “corpo estranho” no interior de um delírio identitário de vida social. Por isso, ela cresce vertiginosamente.
Qualquer um que tentar, mais uma vez, a lógica fracassada de conquista do centro tem seu lugar garantido no balcão de devoluções dos equívocos históricos.
Os tempos são outros.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/11/1835181-o-unico-setor-que-realmente-faz-politica-hoje-e-a-extrema-direita.shtml
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