Valério Arcary –
“O que tem de ser, tem muita força”
Sabedoria popular portuguesa
Uma parcela da esquerda mais moderada, depois da derrota eleitoral do primeiro turno de 2024, afirma que estamos perdendo a “guerra cultural” porque a esquerda virou “identitária”. Esta tese é errada. É também perigosa. A verdade é que a maioria da esquerda abraçou a defesa das reivindicações dos movimentos dos oprimidos atrasada. Não é a linguagem neutra que explica o peso do bolsonarismo. Estamos na defensiva há oito anos, mas por outras razões. A extrema-direita influencia um terço da população. Seu núcleo “duro” radicalizado em posições neofascistas não é menor que 15% ou, mais ou menos, a metade de seu apoio eleitoral. Suas agendas são claras: denuncia que a esquerda é corrupta e quer o poder para roubar; apoiam a violência policial impune, os massacres e chacinas – são até contra as câmeras nas fardas – e defendem o encarceramento em massa; reivindicam o legado da ditadura militar; foram negacionistas do perigo sanitário durante a pandemia, são negacionistas do aquecimento global, defendem a expansão da fronteira agropecuária na Amazônia; desprezam a luta contra o racismo, o machismo, a homofobia, zombam dos direitos indígenas e defendem o marco temporal. Todas estas posições são bizarras, absurdas e irracionais. Mas, não só têm peso de massas, como a extrema-direita é o movimento mais militante e com maior capacidade de mobilização política no país. Não se explica esta ofensiva somente porque contam com uma parte majoritária das igrejas neopentecostais. Uma primeira pista é que o nosso campo, a começar pelo governo Lula, não faz a disputa política-ideológica: silencia e capitula, mesmo quando as oportunidades são favoráveis, como depois da derrota da semi-insurreição de 8 de janeiro de 2023. Mas, tampouco, não é só por isso. Então, por quê?
O Brasil mudou muito nos últimos dez anos. Análises de inspiração marxista se apoiam na interpretação, em última instância, do contexto econômico-social. O que tem de ser tem muita força. As pessoas se situam, em primeiro lugar, em função dos seus interesses. Mas marxismo não é fatalismo econômico. Não é possível compreender a realidade política que nos cerca sem considerar que a esquerda está perdendo a guerra cultural. O que se denomina como “guerra cultural” é a luta pela hegemonia política. A luta pela hegemonia é uma luta que tem três dimensões distintas: política, teórica e ideológica. Trata-se de uma luta de critérios, valores, propostas, projetos, visões de mundo. Mas não adianta ter somente os melhores argumentos, embora as ideias importem. Não adianta ter somente as opiniões mais justas. Não adianta somente ter razão. Não é o bastante. O que define quem está na ofensiva e quem está na defensiva neste terreno é a luta de classes. São as posições de força. E posições de força se conquistam lutando pela consciência social média. Isso não é possível sem disputar o “senso comum”. A ideia mais poderosa da esquerda, também a mais simples, é que é possível mudar o mundo e acabar com a injustiça social. Mas ela contraria poderosas forças de inércia histórica. Este é o cerne da luta pela hegemonia. Quando uma onda de luta dos explorados e oprimidos avança tudo parece mais possível.
No entanto, aceitar que a disputa se faça somente no terreno do inimigo de classe já nos deixa em condição desfavorável. O espaço institucional da democracia-liberal reduz a luta política aos debates parlamentares. Em condições desfavoráveis a esquerda não pode deixar de fazer o combate onde somos desafiados. Mas o principal instrumento de luta contra a extrema-direita é o governo Lula. Há outras ferramentas muito importantes, porque a esquerda lidera os principais movimento sociais: o sindical, estudantil, feminista, negro, ambientalista, indígena e LGBT. Mas o mais poderoso é o governo Lula. Ao abdicar de usar o governo para a conquista de hegemonia se confirma que não aprendemos a lição mais importante deixada pelo golpe do impeachment. A pior derrota é a derrota sem luta.
Força se conquista com coragem de iniciativa e mobilização social. Isto se traduz nas posições respectivas que os trabalhadores e seus aliados ocupam diante de seus inimigos, as diferentes frações da classe dominante, e a capacidade de cada campo arrastar parcelas dos setores médios, no cenário das conjunturas que se alternam, no marco da situação política. A régua de aferição é o estudo da correlação social e política de forças que está em permanente disputa. A história deixou lições inspiradoras. Brizola usou o governo do Rio Grande do Sul em 1961 para garantir a posse de Jango: teve coragem de sinalizar que tinha disposição de ir até à guerra civil. Adiou por três anos o golpe que acabou vindo em 1964. Montoro usou o governo de São Paulo para a mobilização pelas Diretas Já em 1984. Iniciou uma campanha que levou milhões às ruas. A luta pela hegemonia se constrói apoiada na mobilização social. Estamos na defensiva porque a liderança da esquerda insiste em desprezar o perigo que é a presença de uma extrema-direita liderada pelo bolsonarismo neofascista. Não convoca as massas populares para entrarem em cena.
Tudo começou a mudar, qualitativamente, a partir das jornadas de junho de 2013, porque a esquerda perdeu a disputa da direção desta explosão acéfala. Concluídos os três primeiros anos do governo Dilma Rousseff, os indicadores econômico-sociais eram preocupantes para a classe dominante. A situação era de pleno emprego, os custos produtivos em alta e a as taxas de lucro em queda. Os capitalistas se dividiram. Uma fração apresentou um ultimato, exigindo um programa radical de austeridade e ajuste fiscal. A pressão do mercado mundial sobre o capitalismo brasileiro era devastadora. A recessão mundial estabeleceu os limites de um crescimento médio inferior a 3% ao ano. Depois de treze anos de governos liderados pelo PT, a estratégia de sustentar o projeto de pequenas reformas apoiado no crescimento econômico que dependia, essencialmente, de uma demanda externa das exportações do agronegócio e da mineração que gerava uma acumulação de reserva de dólares que continha pressões inflacionárias se esgotou. O impacto das ondas de choque externos, que vinham desde a grande crise capitalista internacional de 2007/08, foi brutal. O que junho de 2013 demonstrou com a saída às ruas em avalanche avassaladora de milhões, é que uma parcela importante da juventude assalariada, a mais escolarizada da história do Brasil, tinha perdido a esperança de que teriam uma vida melhor do que a de seus pais. As expectativas “reformistas” de que os governos do PT ainda seriam capazes de “mudar a vida” começavam a morrer.
Mas o mais terrível foi que, depois de uma vitória apertada em segundo turno, em 2014, sob a bandeira de que “nem que a vaca tussa”, o governo Dilma Rousseff cedeu à pressão burguesa. Tentou apagar o perigo de incêndio com gasolina. Desconsiderou a frustração de milhões de jovens mais educados, mas condenados a baixos salários e a trabalhos precários. Esse foi o fermento de um crescente mal-estar social que foi incendiado pelas denúncias de corrupção da Lava Jato: uma operação política subversiva que alimentou a mobilização da classe média que superou cinco milhões nas ruas, e ofereceu a oportunidade para o golpe institucional do impeachment. A relação de forças se inverteu em 2016 e, desde então, estamos em uma situação reacionária, “ladeira abaixo”. A hegemonia política se deslocou, vertiginosamente, para a extrema-direita. O tema tem importância estratégica porque o governo Lula 3 está, em 2024, diante de um impasse semelhante ao do governo Dilma 2. Cederá ou não às pressões cada vez mais fortes do mercado que exige um corte de despesas para garantir um déficit zero que aumente as garantias de redução do endividamento público? Haddad terá o seu momento “Levy”?
Em perspectiva, a situação reacionária já consumiu os últimos oito anos. Como explicar uma situação defensiva tão longa? Em primeiro lugar, porque os erros se pagam. O Brasil de 2016 já não era o mesmo de 1979/80, quando se abriu a fase final da luta contra a ditadura. As taxas de mobilidade social absoluta e relativa diminuíram, se compararmos o período histórico 1988/2016 com o período anterior, 1930/1980. Durante meio século, entre 1930 e 1980, o Brasil conheceu uma mobilidade social absoluta muito alta em relação à situação atual em 2024. Esse processo foi possível em função da acelerada urbanização, que permitia a absorção massiva de mão-de-obra de origem rural pela indústria. Mesmo quando deslocada dos interiores para as periferias e favelas urbanas, as massas populares melhoravam as suas condições de existência. Esta dinâmica histórica entre os anos 1930/80 é chave para compreendermos a crise atual, porque foi excepcional. Absolutamente excepcional.
O Brasil agrário era uma sociedade de desenvolvimento econômico lento, grande rigidez social e espantosa inércia política. Durante muitas gerações, os antepassados da maioria esmagadora do povo brasileiro foram vítimas da imobilidade social e da divisão hereditária do trabalho. Os que nasciam filhos de escravos não tinham muitas esperanças sobre qual seria o seu destino. Os filhos dos sapateiros já sabiam que seriam sapateiros. Os filhos dos médicos, ou engenheiros, ou advogados, mesmo se não tivessem propriedades, poderiam, em contrapartida, aspirar uma ascensão aos meios burgueses.
O padrão histórico dominante na história do Brasil antes de 1930 foi outro: a herança da aberração histórica que foi a escravidão, que perpetuava uma desigualdade social anacrônica. E desde os anos noventa até 2024 o que prevaleceu também foi outro. Embora a miséria tenha sido reduzida, porque os extremamente pobres passaram a ser beneficiados por políticas de transferência de renda, como a Previdência social e o Bolsa-família, os trabalhadores de renda média ou remediados viram suas condições de vida estagnarem ou piorarem. O bolsonarismo é um movimento burguês com base social na classe média acomodada, mas essa base social não é suficiente para lutar pelo poder em um país como o Brasil. São os remediados o “núcleo duro” que potencializa a força social de impacto da extrema-direita.
No entanto, a memória histórica de mobilidade social que o período 1930/80 deixou como repertório cultural de experiência permanece viva na mentalidade da geração adulta atual. A inércia do senso comum se apoia nesta memória, em grande medida romantizada, em especial na moderna classe média eurodescendente que idealiza a saga de ascensão social de seus avós e pais como exemplo meritocrático. É compreensível, embora ingênua, que ainda seja poderosa a expectativa de que, mesmo nos limites do capitalismo, sejam possíveis oportunidades de enriquecimento. O discurso da extrema-direita repousa nesta promessa. Só não é possível que o “elevador” social suba mais rápido porque, desde 1988, o regime democrático-eleitoral estendeu direitos demais para os mais pobres, e o custo desta rede de assistência e proteção é cara demais: o imposto de renda (IRPF), a Previdência, a universalização da saúde pelo SUS, a universalização do ensino público, as cotas, as universidades públicas gratuitas, etc. Este é o centro da disputa ideológica na luta pela hegemonia. Porque reformas distribuidoras de renda sem conflitos sociais agudos não são possíveis. Mas essa não foi a aposta dos governos liderados pelo PT durante treze anos. Não é, tampouco, a aposta de Lula em 2024. Mas esta linha prepara para 2026 uma derrota terrível. O problema de estratégia para a esquerda radical é que estamos ameaçados pelo perigo de uma derrota histórica, a ameaça de um “inverno siberiano”, mas as esperanças reformistas – a expectativa, incontáveis vezes frustrada, mas renovada, de uma concertação social que garanta pleno emprego, reforma agrária, aumento da escolaridade com expansão da rede pública, elevação do salário médio, etc. – continuam vivas. A chave da disputa pela hegemonia passa pela mobilização social a quente.
(*) Valério Arcary é historiador e professor titular aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.
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