Sociedade

Como os soviéticos quase inventaram a Internet e porque não deu certo

Tempo de leitura: 20 min

Benjamin Petersis – Os cientistas soviéticos tentaram por décadas criar uma rede conectando toda sua nação. A mesma coisa que os colocou num impasse está agora fraturando a internet global.

Na manhã de 1 de outubro de 1970, o cientista da computação Viktor Glushkov entrou no Kremlin para se encontrar com o Politburo. Era um homem alerta, com olhos penetrantes rodeados por óculos pretos, com o tipo de mente que, diante de um problema, deduziria um método para resolver todos os problemas semelhantes. E, naquele momento, a União Soviética tinha um sério problema. Um ano antes, os Estados Unidos tinham lançado a ARPANET, a primeira rede informática distribuída para comutação de pacotes que, a seu tempo, daria origem à Internet tal como a conhecemos. A rede distribuída foi originalmente concebida para colocar os EUA à frente dos soviéticos, permitindo que os computadores dos cientistas e dos líderes governamentais se comunicassem mesmo na eventualidade de um ataque nuclear. Era o auge da corrida tecnológica e os soviéticos precisavam dar uma resposta a isso.

A ideia de Glushkov era inaugurar uma nova era de socialismo eletrônico. Ele nomeou o projeto colossalmente ambicioso de Sistema Automatizado de Todos os Estados. A iniciativa buscava racionalizar e atualizar tecnologicamente toda a economia planificada. Este sistema manteria a tomada de decisões econômicas por meio de planos estatais, e não através de preços de mercado, mas seria acelerado por modelos computadorizados para prever estados de equilíbrio antes destes acontecerem. Glushkov almejava a tomada de decisões de maneiras mais inteligentes e mais rápidas, e talvez até mesmo uma moeda eletrônica. Tudo o que ele precisava era da carteira do Politburo.

Mas quando Glushkov entrou na sala cavernosa naquela manhã, reparou em duas cadeiras vazias na longa mesa: seus dois aliados mais fortes estavam ausentes. Sem seu apoio, ele encarou uma mesa de ministros ambiciosos e de olhos de aço – muitos dos quais queriam a carteira e o apoio do Politburo para si próprios.

Entre 1959 e 1989, os principais homens da Ciência e do Estado soviéticos haviam se aventurado repetidamente na tentativa de construção de uma rede nacional de computadores para fins amplamente pró-sociais. Com as profundas feridas da Segunda Guerra Mundial estando longe de cicatrizadas, a União Soviética continuava a especializar-se em projetos de modernização maciça, que transformaram uma nação czarista dispersa de camponeses analfabetos numa potência nuclear global no espaço de duas gerações.

Depois do líder da União Soviética, Nikita Khrushchev, ter denunciado o culto da personalidade de Stalin em 1956, o sentimento de novas possibilidades tomou conta do país. Neste cenário, entraram em cena uma série de projetos socialistas para interligar a economia nacional em redes, entre os quais estava a primeira proposta em qualquer lugar do mundo para criar uma rede nacional de computadores para civis. A ideia foi criação do pesquisador militar Anatoly Ivanovich Kitov.

Um jovem de baixa estatura e com uma mente afiada para a matemática, Kitov subiu pelas fileiras do Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Depois, em 1952, descobriu a obra-prima de Norbert Wiener, Cibernética (1948), numa biblioteca militar secreta. O título do livro era um neologismo cunhado a partir do grego para “timoneiro” (ou “condutor”) e batizava uma ciência do pós-guerra de sistemas de informação autônomos. Com o apoio de dois cientistas seniores, Kitov traduziu a cibernética numa abordagem robusta em língua russa para o desenvolvimento de sistemas de controle e comunicação autônomos utilizando computadores. O flexível vocabulário sistêmico da cibernética deveria equipar o Estado soviético com um conjunto de ferramentas de alta tecnologia para uma governança racional marxista, um antídoto para a violência e para o culto da personalidade que caracterizavam o Estado de mão forte de Stalin. De fato, talvez a cibernética pudesse até mesmo ajudar a garantir que nunca mais houvesse outro homem forte como ditador, ou assim dizia o sonho tecnocrático.

Em 1959, como diretor de um centro secreto militar de pesquisa em informática, Kitov voltou sua atenção para dedicar “quantidades ilimitadas de poder de processamento de cálculo confiável” para planejar melhor a economia nacional, que era o problema de coordenação de informações mais persistente afligindo o projeto socialista soviético. (Foi descoberto em 1962, por exemplo, que um erro de cálculo feito à mão no censo de 1959 causou uma falha na previsão populacional em 4 milhões de pessoas.) Kitov escreveu seus pensamentos na “carta do Livro Vermelho”, que enviou a Khrushchev. Ele propôs permitir que “organizações civis” usassem os “complexos” militares de computação em funcionamento para o planejamento econômico nas horas noturnas, quando a maioria dos militares estava dormindo. Assim, pensava ele, os planejadores econômicos poderiam aproveitar o excedente computacional militar para corrigir os problemas do censo em tempo real, ajustando o plano econômico todas as noites, se necessário. Ele nomeou sua rede nacional de computadores militares-civis de Sistema de Gestão Econômica Automatizada.

Acontece que os supervisores militares de Kitov interceptaram a carta do Livro Vermelho antes que ela chegasse a Khrushchev. Eles ficaram indignados com sua proposta de que o Exército Vermelho compartilhasse recursos com os planejadores econômicos civis — recursos que Kitov também ousou descrever como uma tecnologia que estava ficando atrasada. Um tribunal militar secreto foi organizado para revisar suas transgressões, pelas quais Kitov foi prontamente destituído de sua filiação ao Partido Comunista por um ano e demitido do exército permanentemente. Assim terminou a primeira rede nacional pública de computadores já proposta.

A ideia, entretanto, sobreviveu. No início dos anos 1960, outro cientista aceitou a proposta de Kitov, um homem de quem Kitov se tornaria próximo o suficiente para que, décadas depois, seus filhos se casassem: Viktor Mikhailovich Glushkov.

O título completo do plano de Glushkov – O Sistema Automatizado de Todos os Estados para Coleta e Processamento de Informações para Contabilidade, Planejamento e Governança da Economia Nacional, URSS – fala por si mesmo e por suas ambições épicas. Proposto pela primeira vez em 1962, o Sistema Automatizado de Todos os Estados, ou OGAS (na sigla latinizada da expressão em russo), pretendia se tornar uma rede nacional de computadores de acesso remoto em tempo real, construída com base no cabos de telefonia preexistentes e em novos. Em sua versão mais ambiciosa, abrangeria a maior parte do continente eurasiano, mapeando-se como um sistema nervoso para cada fábrica e empresa na economia planejada. Sua rede seria modelada hierarquicamente seguindo a estrutura piramidal de três níveis do Estado e da economia: um centro computacional central em Moscou se conectaria a até 200 centros de computação de nível médio em cidades importantes, que por sua vez se conectariam a até 20.000 terminais de computadores distribuídos em locais de produção importantes na economia nacional.

Em consonância com os maiores compromissos na vida e na obra de Glushkov, os planos da rede refletiam uma concepção deliberadamente descentralizada. Isto significava que, embora Moscou pudesse especificar quem receberia quais autorizações, qualquer usuário autorizado poderia entrar em contato com qualquer outro usuário por toda a rede piramidal – sem necessidade de permissão direta do nó-mãe. Glushkov compreendia intimamente as vantagens de se aproveitar os conhecimentos locais no projeto das redes, tendo passado grande parte da sua carreira trabalhando em problemas matemáticos relacionados, enquanto se deslocava entre a sua casa e a capital central (em tom de brincadeira, ele chamava o trem entre Kiev-Moscou o seu “segundo lar”).

Para muitos funcionários do Estado e planejadores econômicos, especialmente no final da década de 1960, o projeto OGAS parecia a melhor resposta para um velho dilema: os soviéticos concordavam que o comunismo era o caminho do futuro, mas ninguém desde Marx e Engels sabia qual seria a melhor forma para se chegar lá. Para Glushkov, a computação em rede poderia levar o país a uma nova era daquilo a que o escritor Francis Spufford chamou mais tarde de “abundância vermelha”. Seria o meio pelo qual a arrastada força vital da crisálida da economia planificada – quotas, planos e pesadíssimos compêndios de normas industriais – se transformaria nas rajadas neurais da nação, movendo-se à sublime velocidade da eletricidade. O projeto significava nada menos do que a introdução do “socialismo eletrónico”.

Tamanhas ambições exigem pessoas brilhantes e empenhadas, dispostas a abandonar as velhas formas de pensar. Nos anos 60, essas pessoas podiam ser encontradas em Kiev – a alguns quarteirões do local onde os irmãos Strugatsky escreviam a sua ficção científica à noite e trabalhavam como físicos durante o dia. Ali, nos arredores de Kiev, Glushkov dirigiu o Instituto de Cibernética durante 20 anos, a partir de 1962. Ele preencheu o seu instituto com jovens ambiciosos, homens e mulheres; a idade média dos pesquisadores era de cerca de 25 anos. Glushkov e a sua jovem equipe dedicaram-se ao desenvolvimento do OGAS e de outros projetos cibernéticos a serviço do Estado soviético, tais como um sistema de recibos eletrônicos para virtualizar a moeda concreta num registro contábil online – isso no início da década de 1960. Glushkov – que tinha fama de vexar ideólogos do Partido Comunista em discussões ao citar parágrafos de Marx de memória – descreveu a sua inovação como sendo uma realização fiel da profecia marxiana de um futuro socialista sem dinheiro. Infelizmente para Glushkov, a ideia de uma moeda eletrônica soviética suscitava ansiedades e acabou não recebendo a aprovação do comitê em 1962. Felizmente, por outro lado, o seu grande projeto de uma rede econômica pôde viver para ver outro dia.

Estes ciberneticistas imaginavam uma espécie de rede neural inteligente, um sistema nervoso para a economia soviética. Esta escolha de analogia cibernética entre a rede de computadores e o cérebro deixou a sua marca em outras inovações teóricas da computação em Kiev. Por exemplo, em vez do chamado gargalo de von Neumann (que limita a quantidade de dados transferíveis num computador), as equipes de Glushkov propuseram o “processamento paralelo em macro-canalizações” (macro-piping processing), seguindo o modelo dos disparos simultâneos de muitas sinapses no cérebro humano. Para além de inúmeros projetos de computadores mainframe, outros esquemas teóricos incluíam a teoria dos autômatos, o escritório sem papel e a programação em linguagem natural, que permitiria aos seres humanos se comunicar com os computadores de maneira semântica, e não apenas de maneira sintática, como fazem atualmente os programadores. De maneira ainda mais ambiciosa, Glushkov e seus alunos teorizaram a “imortalidade informática”, um conceito que poderíamos chamar de “carregamento (ou upload) da mente”, lembrando ideias de Isaac Asimov ou Arthur C Clarke. No seu leito de morte, décadas mais tarde, Glushkov consolou a sua esposa em luto com uma reflexão ressonante: “fique tranquila”, disse ele, “um dia, a luz da nossa Terra passará por outras constelações e, em cada uma delas, voltaremos a aparecer jovens. Assim estaremos juntos para sempre nas eternidades!”

Depois do seu dia de trabalho, os ciberneticistas se divertiam em um clube de comédia cheio de frivolidades e de tiradas alegres que beiravam o desafio aberto. Apesar de não ser nada além de um espaço para desabafar e aliviar a tensão, o seu clube pós-horas de trabalho também se considerava um país virtual independente do domínio de Moscou. Numa festa de Ano Novo em 1960 eles batizaram o grupo de “Cibertonia”, e passaram a organizar regularmente eventos sociais como bailes em feriados, simpósios e conferências em Kiev e Lviv, chegando até mesmo a publicar artigos irônicos como “Sobre querer ficar invisível – pelo menos para as autoridades”. Em vez de convites para os eventos, o grupo emitia falsos passaportes cheios de trocadilhos, certidões de casamento, boletins de notícias, moedas de cartão perfurado e até uma constituição de Cybertonia. Numa paródia à estrutura de governança soviética (em conselhos), Cybertonia era governada por um conselho de robôs, e à frente desse conselho estava o sua mascote e líder supremo, um robô que tocava saxofone – uma alusão à importação cultural do jazz estadunidense:

Glushkov também entrou na brincadeira: ele chamou as suas memórias de Apesar das Autoridades, mesmo que ele tivesse o título oficial de vice-presidente da Academia de Ciências da Ucrânia. A contracultura, compreendida nos estudos de Fred Turner como sendo o poder de contabilizar e contrariar outros poderes, há muito é próxima da cibercultura.

Tudo isto, porém, exigia dinheiro – muito dinheiro, especialmente para o projeto OGAS de Glushkov. Isso significava ter de convencer o Politburo a lhes dar esse dinheiro. E foi assim que Glushkov esteve no Kremlin no primeiro dia de outubro de 1970, na esperança de continuar o trabalho de Cybertonia e trazer uma Internet para o desgrenhado Estado soviético.

Mas havia um homem no caminho de Glushkov: o ministro das Finanças, Vasily Garbuzov. Garbuzov não queria saber de redes computacionais brilhantes e otimizadas em tempo real governando ou fornecendo informações sobre a economia do Estado. Em vez disso, ele queria computadores simples que acendessem luzes e tocassem música nos galinheiros para estimular a produção de ovos, como tinha observado durante uma visita recente a Minsk. Suas motivações não haviam nascido de um pragmatismo de bom senso, evidentemente: ele queria o financiamento para o seu próprio ministério. De fato, há rumores de que antes da reunião de primeiro de outubro ele havia abordado em privado o primeiro-ministro Alexei Kosygin, que buscava reformas econômicas, e ameaçado que se o ministério do seu concorrente, a Administração Central de Estatística, mantivesse o controle sobre o projeto OGAS, então Garbuzov e o seu Ministério das Finanças iriam fazer afundar internamente quaisquer esforços de reforma que Kosygin pudesse apresentar, tal como ele já havia feito com as reformas de liberalização fragmentadas que este tentou promover cinco anos antes.

Glushkov precisava de aliados para enfrentar Garbuzov e manter viva a Internet soviética. Só que não havia nenhum deles na reunião. Os dois lugares que ficaram vazios naquele dia eram o do primeiro-ministro e o do secretário-geral, o tecnocrata Leonid Brejnev. Estes eram os dois homens mais poderosos do Estado soviético – e provavelmente seriam apoiadores do OGAS. No entanto, aparentemente, eles preferiram ficar ausentes a enfrentar um motim ministerial.

A primeira rede global de computadores surgiu graças a capitalistas se comportando como socialistas cooperativos, e não socialistas se comportando como capitalistas competitivos.

Garbuzov conseguiu convencer o Politburo de que o projeto OGAS, com os seus ambiciosos planos para modelar e gerir os fluxos de informação na economia planificada de forma otimizada, era grande demais, e que era cedo demais para algo desse porte. O comitê, depois de quase ter seguido o caminho inverso, achou que era mais seguro apoiar Garbuzov – e o projeto OGAS, ainda ultrassecreto, foi deixado para definhar no limbo da revisão durante mais uma década.

As forças que derrubaram o OGAS assemelham-se às que acabaram por destruir a União Soviética: as formas surpreendentemente informais de mau comportamento institucional. Ministros subversivos, burocratas inclinados ao status quo, gerentes de fábrica nervosos, trabalhadores confusos e até mesmo outros reformadores econômicos opuseram-se ao projeto OGAS porque era do seu interesse institucional fazê-lo. Sem o financiamento e a supervisão estatal, durante as décadas de 1970 e 1980, o projeto de rede nacional para a introdução do socialismo eletrônico foi estilhaçado em uma colcha de retalhos de dezenas e depois centenas de sistemas de controle locais em torno das fábricas, isolados e não interoperáveis. O Estado soviético não foi capaz de interligar em rede a sua nação, não porque fosse demasiado rígido ou concebido de maneira hierárquica demais, mas porque na prática era exageradamente inconstante e pernicioso.

Há uma ironia nesse fato. As primeiras redes informáticas globais foram estabelecidas nos EUA graças a um financiamento estatal bem regulado e a ambientes de pesquisa colaborativa, enquanto os esforços contemporâneos (e notavelmente independentes) das redes nacionais na URSS fracassaram devido à concorrência não-regulada e às lutas institucionais internas entre os administradores soviéticos. A primeira rede mundial de computadores surgiu graças a capitalistas que se comportavam como socialistas cooperativos, e não de socialistas que se comportavam como capitalistas competitivos.

No destino da Internet soviética podemos vislumbrar um aviso nítido e atual para o futuro da Internet. Atualmente, a “Internet” – entendida como uma única rede global de redes para fazer avançar a liberdade de informação, a democracia e o comércio – está em sério declínio. Se os argumentos de Prince e do Conselho da AP Style não forem convincentes, considere quão frequentemente empresas e Estados têm buscado isolar as suas experiências online: o omnipresente “app” é muito mais um jardim fechado por um muro para os que procuram extrair rendas do que um bem comum público para os navegantes da internet. Os poços de gravidade voltados para o seu interior (como o Facebook e o firewall chinês) devoram crescentemente os sites com links externos (como este portal). O mesmo acontece com os líderes da França, Índia, Rússia e outras nações ansiosas por internacionalizar a Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números e impor regulamentos locais aos seus cidadãos. Na verdade, centenas de redes que não a internet têm funcionado por décadas em empresas e países. O futuro das redes de computadores, sem dúvida, exibe o aspecto não de uma grande Internet, mas de muitos distintos ecossistemas online.

Em outras palavras, sem dúvidas, o futuro assemelha-se ao passado. O século XX caracterizava-se pela multiplicidade de redes computacionais nacionais que reclamavam um status global. O drama da Guerra Fria daquilo que, com uma piscadela de olho, poderíamos chamar de “nyetworking soviética” – ou mesmo, como no título encantador do historiador Slava Gerovitch, a “InterNyet soviética” – ajuda a preencher os estudos comparativos das redes de computadores com uma espécie de estudo de caso de uma Internet -1.0. Colocada na balança junto das muitas redes passadas – e possivelmente, futuras – a perceção de que existe apenas uma única rede global de redes é a exceção à regra. Dado o fato de que os soviéticos de outrora não se saíram bem na ironia da Guerra Fria que está no centro desta história – o fato de que capitalistas em cooperação superaram socialistas em competição -, talvez não devêssemos ter tanta certeza de que a Internet de amanhã terá um resultado muito melhor.

O antropólogo e filósofo Bruno Latour brincou certa vez que a tecnologia seria a sociedade tornada durável, querendo dizer com isso que os valores sociais estão incorporados nas tecnologias: por exemplo, o algoritmo PageRank da Google é considerado “democrático” porque, entre muitos outros fatores, ele contabiliza os links (e os links para sites que fazem links) como votos. Tal como os políticos com os votos, as páginas que recebem mais hiperlinks recebem melhores classificações. Atualmente, a Internet parece ser um veículo de liberdadedemocracia e comércio, em parte porque ela se cimentou no nosso imaginário popular no momento em que os valores ocidentais pareciam triunfar, no rescaldo da Guerra Fria. A história da Internet soviética também inverte o aforismo de Latour: também a tecnologia da sociedade é tornada temporária.

Em outras palavras, à medida que os nossos valores sociais se transformam, o mesmo acontece com o que parece óbvio em relação à tecnologia. Em dado momento, os soviéticos incorporaram nas suas redes valores – coletivismo cibernético, hierarquia estatista e economias planejadas – que hoje nos parecem estranhos; da mesma forma, os valores que os leitores modernos atribuem à Internet parecerão estranhos aos observadores do futuro. As tecnologias de rede perdurarão e evoluirão, mesmo que as nossas suposições sociais mais queridas sobre elas acabem na lata de lixo da história.

A história de Glushkov é também um vívido lembrete para os agentes da mudança tecnológica de que o gênio espantoso, a visão abrangente e a perspicácia política não são suficientes para transformar o mundo. As instituições de apoio muitas vezes fazem toda a diferença. Esta é uma lição expressa da experiência soviética e de um ambiente de media sendo continuamente minado por dados digitais e outras formas de exploração da privacidade: as redes institucionais que estão na base da criação de redes computacionais e das suas culturas são tão vitais quanto estão longe de ser singulares.

Enquanto os projetos de redes de computadores e seus promotores vão continuar exaltando publicamente futuros cada vez mais brilhantes para as redes, as forças institucionais privadas, a menos que sejam colocadas em cheque, continuarão capitalizando redes de vigilância empenhadas em se fecharem privadamente às nossas vidas. (Talvez seja disso que se trata na realidade a privacidade: a vastidão de poder de instituições onívoras de informação de vasculhar privadamente as nossas vidas, e não apenas os direitos individuais de proteção contra esse ataque privado). O estudo de caso soviético nos recorda que o programa de espionagem doméstica da Agência de Segurança Nacional dos EUA e a Nuvem da Microsoft fazem parte de uma tradição mais longa do século XX de secretariados gerais empenhados em privatizar a informação pessoal e pública para seu benefício institucional.

Em outras palavras, ninguém deveria sentir muito conforto com o fato da Internet global ter evoluído graças a capitalistas cooperativos e não socialistas competitivos: a história da Internet soviética nos lembra que nós, utilizadores da Internet, não temos qualquer garantia de que os interesses privados que atualmente sustentam a Internet se comportarão melhor do que as forças maiores cuja falta de vontade em cooperar não só declarou o fim do socialismo eletrônico soviético como ameaça encerrar o capítulo atual da nossa era de redes.

Sobre os autores

Benjamin Petersis é professor assistente de Comunicações na Universidade de Tulsa e membro do Projeto Sociedade da Informação na Escola de Direito de Yale. Publicou em 2016 o livro How Not to Network a Nation: The Uneasy History of the Soviet Internet (“Como não interconectar uma nação: a história desconfortável da Internet soviética”).

Fonte da matéria: Como os soviéticos quase inventaram a Internet e porque não deu certo Como os soviéticos quase inventaram a Internet e porque não deu certo % % – https://jacobin.com.br/2024/08/como-os-sovieticos-quase-inventaram-a-internet-e-porque-nao-deu-certo/

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