Assessoria de Comunicação do CEM – Na hora de votar, questões morais se sobrepõem à redistribuição de renda para esse grupo, mostra pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole.
Probabilidade de pentecostais votarem em partidos de esquerda é muito pequena em comparação com católicos e evangélicos tradicionais – Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil
A religião pentecostal influencia a preferência de votos dos mais pobres por partidos que não têm em sua plataforma de governo políticas de redistribuição, mesmo sendo eles os mais beneficiados por elas. Um dos fatores para explicar essa opção é o fato de seus líderes religiosos atuarem como ‘cabos eleitorais’ e enfatizarem em suas falas e pregações questões morais que, muitas vezes, conflitam com as pautas dos partidos mais à esquerda no espectro ideológico, aqueles que tradicionalmente propõem políticas redistributivas.
É o que constata Victor Araújo, pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), em sua tese de doutorado em Ciência Política, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Seu objetivo foi entender por que os mais pobres não votam, ou votam menos frequentemente do que se esperaria, em partidos e candidatos que têm como proposta criar e executar políticas de redistribuição, como o Bolsa Família ou o Programa Luz para Todos. Intitulada A religião distrai os pobres?, a tese analisa o pentecostalismo e o voto redistributivo no Brasil. “Não é que os pobres sejam irracionais ou não queiram votar por redistribuição, é que parte deles ranqueia a dimensão moral acima da questão da renda”, destaca.
Os modelos mais tradicionais na ciência política assumem que a variável que mais importa para o eleitor na hora de votar é a renda, mas isso não condiz com o fato de que os indivíduos com menor renda deixam de votar em partidos de esquerda mais frequentemente do que o esperado. “Esses partidos, por sua vez, são os atores que, historicamente, nas democracias, estão ligados a políticas redistributivas. Na América Latina, por exemplo, evidências empíricas sugerem que a ascensão de governos de esquerda nos anos 2000, fenômeno que ficou conhecido como Maré Rosa, está associada ao aumento do gasto social com saúde e educação”, afirma.
A pesquisa compara as tendências de votos dos católicos; dos evangélicos tradicionais – as igrejas protestantes históricas como Batista, Metodista, Presbiteriana; e dos pentecostais nas eleições presidenciais brasileiras entre 2002 e 2018. Araújo foi orientado pela pesquisadora do CEM e professora do Departamento de Ciência Política da FFLCH, Marta Arretche.
“Não é que os pobres sejam irracionais ou não queiram votar por redistribuição, é que parte deles ranqueia a dimensão moral acima da questão da renda”, afirma o pesquisador Victor Araújo – Foto: LinkedIn – Reprodução
O Brasil é um país muito pouco secularizado. Dados da pesquisa mostram que mais de 85% das pessoas admitem ter religião, e grande parte é cristã, com maioria católica, seguida por evangélicos Entre 2000 e 2010, o número de cristãos evangélicos no País cresceu 61%, alcançando 22,2% (42.310 milhões) da população. Do total de evangélicos no Brasil, 57% (24 milhões) se declaravam pentecostais em 2010. E dois entre três novos convertidos às igrejas evangélicas pentecostais são provenientes do catolicismo, religião que perde 1% da população a cada ano. É a chamada transição religiosa.
Na literatura mais tradicional da ciência política, a religião explicaria o fato de os mais pobres não votarem em partidos que têm propostas de redistribuição porque as igrejas criariam uma espécie de estado de bem-estar social (welfare state) alternativo. Elas conectariam as pessoas a diversas redes que podem lhes oferecer serviços de proteção numa situação de crise: cesta básica, acesso a redes de networking para conseguir emprego, e de ajuda para lidar com fatores como consumo de drogas. No entanto, essas redes existem em diversas denominações religiosas, e o comportamento eleitoral entre elas é bastante distinto, observa Araújo.
Os modelos quantitativos elaborados por Araújo mostram que a probabilidade de pentecostais votarem em partidos de esquerda é muito pequena em comparação com católicos e evangélicos tradicionais, mesmo quando mantidas as características (renda, nível escolar, local de moradia etc.) dos indivíduos constantes. É um processo que ocorre desde as eleições de 2002, pelo menos. “Eles tendem a não votar em partidos de esquerda há muito tempo. A novidade está no fato de que esse grupo do eleitorado aumentou e passou a ser importante ter seu apoio para vencer eleições no Brasil”, ressalta.
Para Araújo, esse comportamento é um paradoxo. Isso porque trata-se de uma população mais pobre – 75% ganha menos de dois salários mínimos -, menos escolarizada, com menos acesso à informação e que está concentrada nas áreas periféricas das grandes cidades, onde essas igrejas estão presentes em maior número. Apesar da baixa renda, e mesmo que sejam beneficiados por políticas de redistribuição, as pautas calcadas nas questões morais se sobrepõem à renda na hora do voto, aponta o pesquisador.
O papel dos brokers
Isso ocorre, segundo a tese, por causa de uma soma de fatores. Um deles é a influência das lideranças religiosas pentecostais, que atuam como brokers, ou “cabos eleitorais”. Elas utilizam em seus discursos e pregações o elemento moral, e este acaba tendo mais peso na decisão de voto dos seguidores dessas religiões do que o fator renda. “Essas lideranças mobilizam explicitamente o eleitorado de baixa renda contra os partidos de esquerda. Fazem isso porque a agenda moral dos partidos de esquerda conflita com a dessas igrejas”, completa.
É o caso de temas como legalização do aborto, do consumo e venda da maconha e do casamento entre pessoas do mesmo sexo, pautas que costumam ser relacionadas aos programas de partidos de esquerda que enfrentam grande resistência entre pentecostais. Segundo cálculos feitos por Araújo, com base nas informações do Latinobarómetro, a probabilidade de apoio à união homoafetiva, por exemplo, é 57% menor para um evangélico tradicional e 71% menor para um evangélico pentecostal. Já a probabilidade de um católico se posicionar a favor é 45% maior.
Segundo estudo, o fato da população mais pobre não votar muito em partidos de esquerda é resultado de muitos fatores, entre eles a influência das lideranças religiosas pentecostais – Foto: via/ PixabayNas igrejas católicas e evangélicas tradicionais, a pauta moral está presente, mas não é vocalizada como nas pentecostais. Ele exemplifica: na eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989, a direção nacional da Assembleia de Deus veio a público dizer que, depois de muita oração, o Espírito Santo havia indicado que este seria o candidato escolhido para melhorar o Brasil. “Manifestações desse tipo são constantes nas igrejas pentecostais. Analisei dados de redes sociais e documentos históricos para mostrar que isso ocorreu em todas as eleições presidenciais desde a redemocratização e que os pastores usam argumentos morais para mobilizar os membros de suas igrejas contra os candidatos de esquerda”, comenta.
Araújo utilizou dados de nível individual para mostrar os efeitos da conversão ao pentecostalismo sobre o julgamento moral dos eleitores. Ele usou dados em painel que considera os mesmos indivíduos em vários momentos ao longo de vários anos. Depois de convertidos, os indivíduos passam a ver mais corrupção nos políticos, mas exclusivamente nos de esquerda.
O pesquisador também trabalhou com dados georreferenciados envolvendo uma igreja específica no Rio de Janeiro (Assembleia de Deus Vitória em Cristo) e constatou que nas sessões eleitorais muito próximas dessas igrejas, os candidatos de esquerda nas eleições presidenciais tiveram sempre desvantagem. Na tese, Araújo concluiu, ainda, que nos municípios em que cresce a proporção de pentecostais, decresce a proporção de votos em partidos de esquerda. A rejeição aos candidatos de esquerda também tende a ser maior nas porções do território brasileiro com alta concentração de evangélicos pentecostais, como sugerem os modelos espaciais utilizados pelo autor.
Culto em uma igreja evangélica – Foto: Wikimedia Commons
Outro fator que explica a opção de voto está no baixo consumo de informação por parte dos pentecostais. As lideranças religiosas e a igreja acabam sendo suas principais fontes. Como eles também frequentam mais as igrejas quando comparados com seguidores de outras religiões, passam mais tempo sob influência dos brokers. Também confiam mais nas suas lideranças na comparação com católicos e evangélicos tradicionais. “Um indivíduo com filiação evangélica pentecostal tem uma chance cinco vezes maior de frequentar a igreja uma vez por semana ou mais. E a chance de um evangélico pentecostal avaliar bem a liderança de sua igreja é cerca de quatro vezes maior na comparação com outras religiões”, aponta Araújo na tese.
No caso específico dos católicos, é mais difícil para os padres atuarem como brokers porque a hierarquia é muito maior. A liturgia segue padrões que vêm do Vaticano. O padre não tem tanta margem para, na homilia, se colocar de forma clara em relação a questões políticas. Católicos e evangélicos tradicionais também têm maior acesso à informação, o que os torna mais críticos em relação aos discursos.
O peso das questões morais para pentecostais está relacionado a diferenças teológicas entre as igrejas. “O catolicismo e o protestantismo tradicional estão muito mais concentrados no plano da ação individual e o pentecostalismo no coletivo. Para pentecostais, “além de seguir as doutrinas bíblicas, é preciso garantir que os valores do reino também sejam difundidos em todos os setores da sociedade, o que inclui a arena política, a instância onde são tomadas as decisões. Por isso, a necessidade de votar em candidatos alinhados aos valores cristãos”, explica. Até 2035, os evangélicos serão maioria no Brasil e os católicos serão o segundo, de acordo com as estimativas demográficas, conta Araújo. Ou seja, trata-se de uma corrente do eleitorado em expansão que tende a não votar nos partidos de esquerda. Como conclusão, a tese mostra que será cada vez mais difícil para um partido de esquerda obter sucesso nas eleições presidenciais no Brasil nos próximos anos, a não ser que consiga quebrar a barreira e dialogue com esse eleitorado.
Clique no player abaixo e ouça a entrevista do pesquisador ao Jornal da USP No Ar:
Texto via Assessoria de Comunicação do CEM
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