Rodrigo Perez – As eleições para o Conselho Federal de Medicina chamaram bastante atenção e repercussão tem sua razão de ser, pois traduz a polarização ideológica sobre a qual está fundada a política brasileira contemporânea.
As eleições para o Conselho Federal de Medicina chamaram bastante atenção ao longo desta semana. A repercussão tem sua razão de ser, pois traduz a polarização ideológica sobre a qual está fundada a política brasileira contemporânea. E ainda digo mais: nos convida a analisar aquele que é um dos maiores potenciais da extrema direita, algo que costuma ser subestimado pelas forças políticas democráticas.
Antes de desenvolver o argumento, algumas informações importantes.
No dia 07 de agosto, depois de uma disputa polarizada que movimentou a comunidade médica, o infectologista Francisco Cardoso foi eleito representante de São Paulo no CFM. O processo foi conflituoso e conturbado, envolvendo denúncias à Polícia Federal e difusão de fake news. Cardoso contou com o apoio organizado das mídias digitais bolsonaristas, inclusive com manifestações de lideranças como Luciano Hang, Nikolas Ferreira e Marcelo Queiroga.
Cardoso se notabilizou durante a pandemia por ter defendido o uso off label da cloroquina, ecoando o negacionismo do então presidente Jair Bolsonaro.
A extrema direita parece ter entendido a dimensão estratégica de um órgão como o CFM, cuja função é normatizar, disciplinar e fiscalizar o exercício da medicina, ou seja, definir o que os médicos podem ou não podem fazer. Em tempos de grandes disputas nas políticas de saúde pública, como no tema dos direitos reprodutivos das mulheres, o CFM é importante foro de decisão. O representante do principal estado da federação no conselho será um bolsonarista de primeira ordem.
Mobilização semelhante já havia acontecido em outubro de 2023, na ocasião das eleições para o Conselho Tutelar, que tem a missão de cuidar dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes. Todos sabemos como o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, e a educação pública são pautas prioritárias para a guerra cultural travada pela extrema direita. Parlamentares bolsonaristas e igrejas evangélicas neopentecostais convocaram suas
bases sociais a comparecerem às urnas e votarem em candidatos ideologicamente alinhados com os seus valores. Nunca uma eleição para o Conselho Tutelar havia contado com tamanha participação popular. O resultado foi bastante favorável à extrema direita.
As eleições para o Conselho Federal de Medicina e para o Conselho Tutelar mostram que a extrema direita está organizada e disposta a disputar diversos espaços de poder, a maioria ignorados pelas demais forças políticas. Podemos lembrar, também, da “super live” da família Bolsonaro em janeiro de 2024, onde Jair e seus três filhos lançaram o programa da “Ação Conservadora” para formação de militantes com foco nas eleições para os legislativos municipais.
A extrema direita parece ter entendido muito bem as lições de Antonio Gramsci, um dos dos principais representantes do pensamento político de esquerda. Segundo Gramsci, a melhor tática de dominação política não deveria se sustentar na violência e na supremacia militar, mas sim na lenta e progressiva conquista de “hegemonia” na sociedade civil, através da ocupação de diversos espaços de poder.
O pensamento político de Gramsci começou a circular na direita brasileira na década de 1990, através da atuação de Olavo de Carvalho, para quem a esquerda havia seguido os passos do italiano ao conseguir construir hegemonia em diversas instâncias de poder na Nova República, como nas universidades, na imprensa e no sistema judiciário. Carvalho convidava a direita a fazer algo semelhante, num movimento de apropriação das teses gramscianas.
Sei que muitos ainda tendem a tratar a extrema direita herdeira de Olavo de Carvalho na perspectiva do deboche e da caricatura, como se fossem um grupo de ignorantes e iletrados. Não acho que seja boa ideia. Essas pessoas estão lendo e estudando. Contam com financiamento e investem muita energia, e dinheiro, na formação ideológica de sua militância. Lentamente, estão ocupando posições estratégicas, avançando pouco a pouco no território da institucionalidade. Enquanto isso, as forças democráticas continuam voltadas quase que exclusivamente para o poder executivo, como se a hegemonia política fosse construída de cima pra baixo, quando o que acontece é exatamente o contrário.
Sim, a extrema direita leu e entendeu Gramsci, enquanto a esquerda parece tê-lo esquecido.
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