Neilton Júnior – O que o gesto de Endrick pode nos ensinar sobre o entretenimento esportivo capitalista contemporâneo? Ou, quando o esporte contempla a própria obra.
O futebol espetacular, assim como outras modalidades esportivas submetidas a mesma racionalidade do entretenimento, está repleto imagens de barbárie e daquilo que Jean-Marie Brohm classificou como cultura de brutalização dos corpos. Para o autor, o esporte espetáculo conforma uma ideologia reprodutora de u conjunto imenso de irracionalidades e vítimas; dentre as quais se destacam os atletas negros. Mas de modo geral, o autor argumenta que ninguém escapa à desumanização promovida pela ideologia esportiva contemporânea, posto que “o espaço público, reduzido a uma tela de sonho televisionado, está saturado de esporte, a tal ponto de comprometimento que a política é considerada, também ela, como um esporte”. O autor sustenta que “a unidade desse conjunto reconfigurou simultaneamente o tempo do mundo (estabelecimento de calendários competitivos cada vez mais apertados, servindo de referências aceitas por todos) e o espaço geopolítico (multiplicação de locais de esporte: junto dos edifícios, nos estádios, em casa diante da televisão, no meio do mato)”. Essa articulação que ele considera inédita, em que tempo e espaço são mobilizados na direção da configuração de uma realidade paralela composta por façanhas, recordes, desempenhos excepcionais, compreende um terreno fértil à emergência de mitos, deuses, lendas e feras, com os quais os expectadores estabelecem uma relação complexa de diferenciação quase sempre perigosa.
O “êxito” desse modelo esportivo se expressa na forma naturalizada com que a violência repetidamente se apresenta na cena. Mesmo em períodos mais remotos, a brutalização do corpo estava na ordem do dia como parte do processo de construção da virilidade necessária à legitimação do pertencimento social. Observa-se que o século XIX se manteve fiel a esse objetivo, atribuindo ao “processo civilizador” de sistematização e modernização das práticas esportivas um caráter formador e mantenedor da “masculinidade ideal”.
Em diferentes práticas culturais, a brutalização do corpo foi e tem sido elemento indispensável ao processo de urdidura dos homens de verdade. Nem mesmo o trabalho moderno escapa a essa regra. Talhados pelo adestramento, ritos de guerra ou esforço produtivo, os homens podem também escapar à heteronomia associada às formas de vida mais rudimentares. Está mais do que flagrante que esse tipo de relação deu muito errado, pois além de naturalizar a violência, conseguiu enraizar no imaginário social uma concepção antropocêntrica de mundo que está longe de qualquer possibilidade de reconciliação com a natureza. As experiências humanas de “descolamento da natureza” são sempre violentas, como destrutivas têm sido as formas de transformação dessa natureza.
Não por acaso, o insulto ao atleta se apresenta nas práticas esportivas como elemento auxiliar dos reforços positivos e negativos de refinamento e aperfeiçoamento da performance em um contexto em que a sociabilidade concorrencial se utiliza do corpo via de acesso a um status de humanidade ideal que se consagra nos resultados de vitórias, recordes e títulos. Por isso mesmo é que a violência compreende parte das estratégias de desestabilização dos adversários que, submetidos à mesma trama, tentam “vencer” o desafio imposto esforçando-se sempre mais, retendo lágrimas e, quando possível, revidando na mesma moeda em repetidas tentativas de afirmação da condição de homem. Podemos observar ainda que existe gozo em tudo isso. O insulto e a briga entre adversários de hóquei no gelo, por exemplo, faz parte do espetáculo, quebrando a monotonia e silêncio dos espectadores, energizados com novas doses de virilidade afirmativa da condição humana ideal. Superada a falsa concepção de que política e esporte não se misturam, é preciso agora entender que violência e esporte convenientemente se confundem, curiosamente, à revelia das teses que descrevem o esporte moderno como uma “forma racional” de práticas corporais.
Por essas e outras razões, toleramos a violência no/do esporte nas suas mais diferentes dimensões e intensidades. Toleramos que jovens futebolistas sejam estocados em contêineres. Toleramos a destruição da saúde mental e carreira de atletas, vítimas da violência racial dos estádios. Toleramos o uso dos megaeventos como instrumentos de degradação dos ecossistemas e dos direitos humanos. A brutalização social é parte constitutiva da forma esportiva moderna. Isto posto, o gesto de Endrick imitando o personagem fictício King Kong não nos diz muita coisa se o analisarmos isoladamente. Dentre as várias formas de interpretar a cena, o que encontramos imediatamente é King Kong representando uma anomalia do processo evolutivo que se torna objeto de interesse de zoologistas e caçadores. King Kong representaria também a fúria e uma da natureza contra a ação humana inconsequente, força incontrolável que não se permite enjaular, somesticar, ser reduzida a uma mercadoria.
Quando imita King Kong, Endrick se inscreve entre aqueles cujo talento e condição atlética foi historicamente associado às imagens animalescas. Algo que esteve sempre presente no vocabulário jornalístico e “folclore” futebolístico para se referir às “lendas” do esporte, em que pese o conteúdo racista de algumas dessas classificações. Com isto quero dizer que: atribuir a Endrick alguma culpa pelo “enfraquecimento” da luta antirracista no futebol, ou deduzir que seu gesto “justifica reações racistas”, é no mínimo um exagero. Principalmente se desconsiderarmos as razões que levam o jogador do Palmeiras a reproduzir o gesto. Como ele mesmo se explicou: “Quero mostrar para todo mundo que gosto do Kong”.
O problema me parece ser mais profundo do que a análise isolada do caso Endrick nos sugere. Para começarmos a entendê-lo, precisamos suspender a ansiedade jornalística e recorrer a história. Não precisamos ir tão longe no tempo. Os séculos XIX e XX estão cheios de exemplos de como a formação da nossa identidade humana está ancorada a postulados antropocêntricos imediatamente consignados a relações hierarquias e dicotômicas entre homem e natureza. A ciência, a literatura, as estórias e os entretenimentos de corpo colonial cumpriram papel decisivo nesse processo. Poderíamos dar o exemplo da pedagogia antropocêntrica dos zoológicos, mas fiquemos apenas com o caso dos zoológicos humanos que vigoraram do século XIX até 1958.
Nessas programações, a premissa zoológica antropocêntrica permanecia intácta, mas já não se tratava apenas de distinguir homem de animais. Não se tratavam de experimentos educativos de aproximação dos expectadores à diversidade humana, mas entretenimentos reforçadores da ideia de que existem formas subumanas passíveis de sequestro e toda sorte de especulações científicas, teológicas e míticas, marcadoras da diferença e desigualdades fenotípicas entre formas humanas “acabadas” e as “inacabadas”.
Ao olhar para grupos de não-brancos enjaulados em zoológicos, feiras de ciências, museus ou exposições circenses, os espectadores, quase sempre brancos, podem se sentir mais humanos, recorrendo à lúdicidade do espetáculo como componente anestésico contra interações que conduzam a algum tipo de identificação com o “Outro” enjaulado.
Essa experiência formativa antropocêntrica misturada ao entretenimento também encontrou lugar na chamada “era dos linchamentos”. Grandes programações de espancamento, enforcamento e carbonização de afro-americanos que reunia milhares de pessoas em espaços públicos, previamente convidadas pelos jornais de que, no dia X, horário Y e local Z, mais um negro seria linchado.
Organizado majoritariamente por brancos pobres, o ritual de linchamento trazia consigo um claro recado à classe trabalhadora americana de que a posição dos negros na hierarquia social era um dado da natureza que deveria ser cultivado, sob pena de a sociedade americana se degradar.
Se prestarmos mais atenção o vocabulário das provocações nos estádios, veremos que esse olhar zoológico e antropocêntrico para o espetáculo esportivo permanece vivo e convenientemente cultivado como uma forma de liberação do ódio conentrado por uma classe trabalhadora diuturnamente brutalizada pela precarização do trabalho e da vida. Contra isso, a forma esportiva contemporânea nada pode fazer, conforme alertou Antonio Rüdgier em texto intitulado “Esta carta não vai acabar com o racismo no futebol”. Rüdiger nos diz:
Sempre que algo assim acontece [violência racial em estádios], como o mundo do futebol reage? As pessoas dizem: “Ahhh, é tão terrível”. Os clubes e os jogadores postam uma pequena mensagem no Instagram: “Chega de racismo!!!”. Todos agem como se fossem “apenas alguns idiotas”. Há uma investigação, mas nada acontece. De vez em quando, temos uma grande campanha nas redes sociais, todo mundo se sente bem consigo mesmo e, então, voltamos ao normal. Nada muda realmente. Por que a imprensa, os torcedores e os jogadores se juntaram para acabar com a Superliga em 48 horas, mas, quando há abusos racistas evidentes em um estádio de futebol ou online, é sempre “complicado”? Talvez porque não sejam apenas alguns idiotas nas arquibancadas. Talvez porque vá muito mais a fundo.
O comprometimento do esporte com o entretenimento capitalista atingiu um nível tão alto, que no fundo parece ser mais fácil para as instituições esportivas abrirem mão da construção e apoio às políticas de reconhecimento. O custo político e financeiro da administração de uma nova “crise de racismo” parece ser muito menor se comparado ao volume de recursos que precisariam ser mobilizados na elaboração e promoção de campanhas mais robustas que permitissem com que o esporte não fosse apenas interpretado como um “reflexo do social”, mas um aparelho capaz de influenciar o social concreta e criticamente.
O esporte não substitui a pedagogia antropocêntrica dos zoológicos, mas participa desse processo de maneira muito eficiente, sem encontrar maiores adversários pelo caminho. O gesto de Endrick apenas revela a contradição de um sistema de entretenimento que, ao se olhar no espelho, não consegue suportar a própria imagem ou a própria obra.
Fonte: Futebol, feras e antropocentrismo | by Neilton Júnior | May, 2024 | Medium
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