Régis Moraes – Dois vetores me parecem importantes para explicar essa evolução: a vida material e a formação de comportamentos e hábitos mentais e o fator subjetivo.
Sabemos bem que os anos 1970, no Brasil, foram anos de chumbo. Ditadura policial, baixo astral, combate nas trevas, sobram imagens para assombrar as lembranças. As organizações de esquerda tinham sido praticamente dizimadas nos primeiros anos da década. Muito pouco ficara de pé. Meu grupo político, ambiciosamente chamado de partido, tinha sido desmantelado em 1971. Muita gente na cadeia, muita gente no exílio, muita gente desaparecida e muita gente numa semi-clandestinidade braba, engatinhando no escuro para tentar a “reconstrução”. Os sindicatos estavam silenciados por dentro e por fora. Outros movimentos sociais também. Mas ao longo da década assistimos a uma recomposição de todos esses movimentos e a uma redefinição daquilo que chamávamos de esquerda. Uma outra esquerda ia nascendo. Aos trancos e barrancos. E aos soluços.
A superfície da política –confrontos parlamentares, disputas eleitorais – mostrava inconsistências e instabilidades. Algumas gangorras. Em 1972 houve uma eleição municipal que foi exibida pela ditadura como uma espécie de plebiscito que a legitimava. Afinal, a Arena, partido do governo, tinha conseguido cerca de 80% dos votos! Contudo, apenas dois anos depois, a gangorra mudava: o MDB, partido da oposição consentida, venceu “de lavada”, conseguindo 16 das 22 vagas de senadores em disputa.
Mas, fora dessa superfície, ou debaixo dela, aquela lenta recomposição ocorria. Ás vezes ela se refletia timidamente na superfície, em apoios a candidatos “populares”, por exemplo. Mas, em geral, seguia uma linha de desenvolvimento própria, cinzenta, teimosa, a passos de formiga.
Dois vetores me parecem importantes para explicar essa evolução. É uma simplificação, baseada em pura memória de ativista, mas acho que ajuda a explicar as chamadas conjunturas difíceis e a encará-las com menos ansiedade, coisa de que estamos precisados.
Vetor 1: A vida material e a formação de comportamentos e hábitos mentais
O primeiro vetor talvez se possa chamar de linha mestra da vida material. Também uma simplificação. E uma descrição limitada a grandes cidades, metrópoles, e a um segmento da vida material, o segmento do trabalho industrial, da classe operária em sentido muito estrito. Pura memória, como disse, muito marcada pela minha própria experiência.
A estória é a seguinte. Tomo como exemplo a indústria automobilista e a rede metalúrgica a ela vinculada. Pelo tamanho e pelo poder simbólico desse segmento, na época. E, mais ainda, seleciono o exemplo da região metropolitana de São Paulo. Esse recorte, porém, me parece inspirador (com alterações, claro) para outros cenários do país.
Nos anos 1970, esse setor produtivo era enorme, influente e diversificado, estratificado. Havia um punhado de montadoras, cinco ou seis. Empregavam uns 100 mil trabalhadores. Mas em torno delas orbitavam milhares de empresas e oficinas, englobando outras centenas de milhares de empregados. No meio da década, na grande São Paulo (Capital, Guarulhos, Osasco, ABC) devia haver uns 500 mil metalúrgicos, talvez mais. E isso criava um interessante calendário, quase um ritual de comportamentos e atenções.
Os trabalhadores do ABC tinham contratos de trabalho (acordos coletivos) que venciam em maio. Isto é, deviam ser negociados com a patronal (o famoso Grupo 14 da Fiesp) em maio. Assim, depois do carnaval começava uma espécie de rotina de pedagogia política. O sindicato formava uma “comissão salarial” eleita em assembleia. Ela era incumbida de pesquisar, entre trabalhadores, as expectativas – quais os reajustes, quais as demandas relativas a condições de trabalho. Era também uma ferramenta de agitação – chamar atenção para esses temas, dentro das fábricas – e de sondagem de disposições, isto é, da disposição dos trabalhadores para um eventual confronto. Nos meses seguintes ocorreriam as assembleias para decisão sobre a pauta reivindicatória e sobre as contrapropostas patronais. Isso mobilizava, em diferentes níveis, mais de cem mil trabalhadores – e, claro, também atraia a atenção de suas famílias, vizinhos, etc. Hábitos, formas de pensar, escalas de valores, tudo isso girava em torno desse calendário. O que não era pouco.
Quando terminava o ciclo do ABC começava o movimento dos metalúrgicos da capital, com data limite em novembro. Com os mesmos rituais e efeitos, embora mais fragmentado, com muito mais empresas e um numero maior de operários.
O segmento metalúrgico era uma referência para outras categorias – trabalhadores da indústria química, plástica, farmacêutica, marcenaria, têxtil, alimentícia, etc. A aprendizagem política dos metalúrgicos transbordava para outras categorias, Além disso, os movimentos dos metalúrgicos catalisavam apoios e estimulavam participação política em diferentes movimentos de bairros operários. Em torno de uma greve surgiam numerosos grupos de apoio. No primeiro de maio de 1980, p. ex,, se organizou uma marcha de 130 mil pessoas em São Bernardo, no meio de uma greve em que a diretoria do sindicato e os dois níveis do comando de greve tinham sido detidos. A concentração desafiou a proibição da PM e marchou em direção ao estádio das assembleias, que estava ocupado pela polícia, e ali fez um ato político. Mais da metade daquelas 130 mil eram pessoas que vinham de diferentes cantos, de diferentes categorias e diferentes movimentos sociais. E esse é apenas um exemplo da “imantação” irradiada pelos movimentos desse segmento sindical, pela sua aprendizagem política.
Estou descrevendo, de modo rápido e impressionista, um cenário dos anos 1970. Antes da avalanche de “reengenharias” das empresas – com terceirizações, outsourcing e offshore. Antes, portanto, da fragmentação dessas macro-categorias em empresas e segmentos bem menores, muitas vezes inclusive rebatizados como “trabalhadores de serviços auxiliares” e não mais como trabalhadores industriais. E essa transformação foi decisiva – sobretudo porque não devidamente percebida e enquadrada, organicamente, pelas direções sindicais, que viam escorrer suas bases. A mudança dessa “base material” – mesmo que fosse (não era) puramente organizacional, contábil – já era suficiente para desmanchar todo aquele ritual formador de comportamentos, idéias e identidades que descrevi mais acima. Nos anos 1980 isso ainda era pouco visível. Nos anos 1990 foi brutal. Uma escola de política tinha sido bem debilitada.
Vetor 2: o fator subjetivo
Para um observador estrangeiro, maio de 1978 talvez mostrasse algo surpreendente. Para muitos de nós, nativos, também. Quase como um raio no céu azul, algumas emissoras de TV mostram cenas de um personagem quase maldito: a classe operária, ou, mais precisamente, o movimento operário. Lembro-me de ver, surpreso, as cenas de greves em indústrias da grande São Paulo. Ou de um conflito em eleições para o sindicato metalúrgico da cidade de Osasco (mais tarde, a cena se repetia no sindicato da categoria na capital). Não me surpreendi com os fatos – eu os conhecia bem de perto. A surpresa era chegar na telinha. Aparentemente, o movimento operário saia das catacumbas. Quase literalmente, porque vivíamos mesmo em catacumbas. Explico – ou tento explicar.
Simplificando muito a estória, a esquerda armada foi dizimada em 1971, com alguns focos restantes. A partir daí, um longo caminho de reconstrução foi iniciado. Não apenas de reconstrução, mas de redefinição. Na maior parte dos grupos, os militantes que ficaram no país e não tinham sido destruídos pela prisão, começou um giro para o “trabalho de massa”, em fábricas e bairros operários, sobretudo. Lentamente, também nos sindicatos, em que a vigilância policial era muito forte, marcação homem a homem. Essa reorientação, paciente, trabalhosa, teve um associado valioso, determinante. Desde o começo dos anos 1960 a igreja católica passava por uma transformação, um giro para os segmentos populares, para os pobres. Na América Latina isso ganhou impulso simbólico com o encontro episcopal de Medelin (1968), que certo modo consagra a chamada igreja popular e a opção preferencial pelos pobres. Na cidade de São Paulo e nas cidades operárias periféricas, dezenas de padres progressistas começavam a fomentar a organização popular. Não apenas os padres operários, aqueles que se integravam nas fábricas, mas aqueles que dirigiam paróquias e capelas nos bairros periféricos. Era algo essencial, não apenas pela logística – locais, aparelhos de impressão (mimeógrafos) – mas pelo envolvimento da comunidade com valores e idéias baseadas em um sentimento genérico de solidariedade dos de baixo, de valores coletivistas. Essa rede dos nossos “padrecos” foi decisiva para a formação de ativistas e militantes, para a disseminação desses movimentos como algo legitimo, “natural” e não como atividade criminosa, carimbo que a ditadura tentou fixar na gente. Várias vezes, nós dirigíamos a palavra à comunidade para falar de uma campanha salarial, uma greve, uma eleição sindical. Inclusive em missas, naquele momento em que se lia e explicava uma passagem do Evangelho. A reflexão sobre a vida de Jesus era substituída pela reflexão sobre os outros “filhos de Deus”, os perseguidos e explorados do dia. Nunca será possível exagerar a importância desse componente – em que se soldou a cooperação entre cristãos e comunistas – na reconstrução do movimento operário e popular. E na modelagem da nova esquerda.
É relevante indicar esse vetor até para destacar o que aconteceu quando ele deixou de existir ou perdeu força, no final da década. Em 1979, um papa militantemente reacionário começou a obra de desconstrução dessa igreja progressista. A ferro e a fogo. A sementeira de ideias, sentimentos e valores (e de militantes) era atacada em sua raiz. Como a natureza detesta o vácuo, o espaço foi ocupado por outros atores, agora não mais movidos pela teologia da libertação, mas pela chamada teologia da prosperidade, a versão supostamente religiosa de uma ideologia capitalista extremada, ultra-individualista e ultra conservadora.
Se nós caminhássemos pelos bairros populares, durante os anos 1970, encontraríamos em todos eles uma paróquia ou uma capela – o que para nós, militantes, era um ponto de referência. Quase nenhuma igreja protestante, porque as igrejas protestantes eram, naquele momento, as tradicionais igrejas reformadas – metodistas, presbiterianos, anglicanos, etc. – e estavam sediadas, em geral, em bairros centrais ou de classe média. Hoje, nesses mesmos bairros, para uma igreja ou paroquia católica encontramos uma dezena de locais de culto neopentecostais, pregando a teoria de “Deus é seu sócio”. Para piorar o quadro, as igrejas do lucro foram à TV. Uma outra escola de política tinha sido debilitada. Uma outra, bem diferente, fora erguida.
A classe trabalhadora estava mudando rapidamente, o ambiente em que se encontrava e formava seus sentimentos e juízos também. Estas reflexões não devem estimular a idéia vã de reconstruir os mesmos castelos e trilhar os mesmos caminhos. Devem ser estímulo para pensar os equivalentes funcionais dessas trincheiras que perdemos. Ferramentas novas, em situações novas, para enfrentar problemas quem sabe semelhantes. Aquelas formas de organização e mobilização respondiam a necessidades prementes. Eram um pouco de modo espontâneo e um pouco refletidas, planejadas. Revisitá-las ajuda a apreender com esse passado e pensar o futuro aumentando a dose de construção deliberada, de construção consciente. Apostar na pura espontaneidade não é apenas arriscado, é irresponsável. Essa memória deve servir para gerar algo mais do que nostalgia, que é, afinal, inevitável para aqueles que passaram 20 anos esperando o alvorecer e agora enfrentam uma outra noite de ignorada duração. Para aqueles que virão, como dizia o poeta, pensem em nós e em nossos erros com alguma compreensão.
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