LUIZ FELIPE REIS – Clássico na luta contra o racismo tem sua história destrinchada na obra de David Margolick
Os garçons interrompem o atendimento, a clientela silencia e um breu retumbante toma a sala do Café Society, um bar construído no porão da Sheridan Square, no Greenwich Village. No escuro infinito, um ínfimo rasgo de luz focaliza o rosto de Billie Holiday. Um piano chama e “Strange fruit” brota. Em apenas três minutos a escuridão da noite torna a invadir o café. É o tempo necessário para que ela entoe seu número final. Billie deixa o palco. Sem despedida, bis, nada. Apenas escuro e silêncio. Até que uma mão se junta a outra, e uma ovação inunda a sala. Mas não há volta. A diva não reaparece. E, invariavelmente, a cena se repete nas noites nova-iorquinas de 1939.
“As pessoas tinham de se lembrar de ‘Strange fruit’, ficar com as entranhas queimadas pela música”, recordou Barney Josephson, o ex-dono do clube, em entrevista concedida ao jornalista americano David Margolick, em 1998. “Minha instrução era para ela sair, ponto.”
À época, Margolick preparava uma reportagem que foi publicada em setembro daquele ano pela revista “Vanity Fair”. Três anos depois, a matéria foi ampliada no livro “Strange fruit — Billie Holiday e a biografia de uma canção”, que chega agora às livrarias do país, pela Cosac Naify. Nele, o jornalista constrói, como deixa claro o título, a história de vida de uma única canção, desde o nascimento até a sua mort… — bem, “Strange fruit” recusa-se a morrer. Considerada a primeira canção de protesto explícito contra o racismo e o linchamento de negros no Sul dos Estados Unidos, ela é um poema metafórico que ilustra o modo como os negros eram mortos e exibidos ao público: pendurados em galhos de árvores, como “frutos estranhos”.
— Essa única canção contém toda a história dos direitos civis nos Estados Unidos. É um lembrete da capacidade única que a música tem de capturar a condição humana — diz Margolick.
E é exatamente a força e a perenidade dessa peça emblemática do repertório de Billie Holiday que o autor investiga. Para isso, reconstrói a história do nascimento da canção, liquidando mitos criados até por sua intérprete oficial.
— Eu queria esclarecer a informação sobre o autor da canção, porque alguns mitos foram propagados pela Billie e pelas pessoas que assinaram com ela a sua autobiografia (“Lady sings the blues”) — diz o jornalista. — Eles fabricaram a história de que ela a teria escrito após testemunhar um linchamento.
O verdadeiro autor da canção
Para Margolick, não há dúvidas de que Abel Meeropol é o autor da letra e da música, “e passou metade da vida a lembrar as pessoas (disso)”. Homem branco, judeu progressista e professor no Bronx, Meeropol escrevia sob o pseudônimo de Lewis Allan. Admirado por Kurt Weill e Ira Gershwin, tinha pouco mais de 30 anos quando deparou com uma fotografia, publicada numa revista de direitos civis, que estampava o linchamento de dois negros ocorrido em Indiana, em 1930. Abalado com a imagem, Meerepol escreveu o poema “Bitter fruit” e mais tarde, em 1938, pisou à soleira do Café Society para mostrar a Billie sua nova canção. No livro, tanto Meeropol como o dono do bar que lhe abriu as portas especulam sobre a incompreensão de Billie frente à canção: “O que você quer que eu faça com isso?”, ela teria dito ao escutá-la. “Strange fruit” era diferente esteticamente de tudo o que a cantora interpretara até então. Do ponto de vista temático, iluminava a ruptura do comentário social em meio às baladas de amor e, sob o viés do gênero, não se alinhava nem à tradição folk e nem às inovações do jazz. Mas Margolick é taxativo: “É inconcebível que ela não soubesse o que estava cantando e não sentisse profundamente.”
— Billie se apropriou da canção e fez dela um sucesso. A música não teria ido longe se não fosse por ela, mas também não teria existido sem Meeropol. Essa reescrita da história para torná-la “melhor” é perniciosa. Quis deter isso.
Ao trabalhar para deter isso, Margolick torna o seu livro interessante, porque não se empenha em levantar polêmicas ou tornar definitiva outra teoria. Seu texto aposta na polifonia, recorrendo a fontes e versões distintas que conduzem, por si mesmas, a um melhor entendimento da história. Não só da origem da música. Mas, principalmente, do que ela espelha: a violência indiscriminada contra os negros na sociedade americana. E, para isso, dados: entre 1889 e 1940, mais de 2.700 negros foram linchados e assassinados no Sul dos EUA. No ano em que Billie cantou “Strange fruit” pela primeira vez, apenas três casos foram registrados. Mas o preconceito estava longe da trégua, e o movimento pelos direitos civis só eclodiria 16 anos depois, após a prisão de Rosa Parks, que se negou a ceder seu lugar no ônibus a um branco.
— “Strange fruit” foi escrita numa época em que as relações raciais nos EUA eram muito precárias. Os linchamentos, apesar de terem diminuído, não eram discutidos. Por isso, cantar aquela música foi um ato de coragem.
Em meio à plateia de intelectuais de esquerda do Café Society, Billie recebeu apoio. Fora do porão, no entanto, a canção lhe rendeu agressões, e não só físicas. A Columbia Records se negou a gravá-la, e sua mãe protestou quando soube da música. Billie respondia em cada show. A indignação e a ferocidade de sua interpretação eram também usadas como arma para impedir qualquer outro músico de tocá-la: “Ela queria cortar o meu pescoço”, recordou Josh White. E também de quem a desrespeitasse. A um branco abusado, Billie ofereceu cadeiras, e a uma plateia careta, reservou outro plano: “Virou as costas, curvou-se, levantou o vestido e mostrou a bunda preta”, diz Josephson, no livro. “Uma pessoa negra disse ‘kiss my ass’ para uma plateia branca!”
— Os negros não queriam ouvir uma música sobre aquilo, assim como a maioria dos brancos — diz Margolick.
Além de desafetos, o peso da canção se integrou à alma de Billie: “Fiz uma porção de inimigos, sim”, disse ela à revista “Downbeat”, em 1947. “Cantar aquilo não me ajudou em nada.”
Margolick comenta:
— Em sua tristeza e tragédia, Billie Holiday passou a encarná-la.
Ao forçar a nação a enfrentar seus mais sombrios impulsos, Billie não recebia em troca solidariedade, e o autor chega a vislumbrar que a canção, de fato, teria precipitado seu declínio ao buraco negro das drogas. Viciada em álcool e heroína, Billie viu pouco a pouco seu estado de saúde se deteriorar até a sua morte, aos 44 anos, em 1959.
— A sua agonia pessoal acentuava o tema angustiante da canção — diz Margolick. — Como um grito contra o racismo, “Strange fruit” representava os obstáculos que alguém como Billie teria de superar, mas que, no caso dela, não foi possível.
Trecho da música Strange fruit, de De Lewis Allan (tradução de Carlos Rennó)
“Árvores do Sul dão uma fruta estranha/ Folha ou raiz em sangue se banha/ Corpo negro balançando, lento/ Fruta pendendo de um galho ao vento/
Cena pastoril do Sul celebrado/ A boca torta e o olho inchado/ Cheiro de magnólia chega e passa/ De repente o odor de carne em brasa/
Eis uma fruta para que o vento sugue,/ Pra que um corvo puxe, pra que a chuva enrugue,/ Pra que o sol resseque, pra que o chão degluta,/ Eis uma estranha e amarga fruta”
http://oglobo.globo.com/cultura/chega-ao-brasil-biografia-da-cancao-strange-fruit-imortalizada-por-billie-holiday-5826308
Deixe uma resposta