Marcelo Carvalho (UNIFESP) – A justificativa usada pelo Governo Temer na defesa da PEC do Corte de Gastos é a necessidade de combater a crise econômica que herdou das gestões de Dilma. Essa afirmação coloca, de imediato, duas questões que proponho abordar aqui em suas linhas gerais. Em primeiro lugar, a compreensão da natureza e da dinâmica que se situa na origem dessa crise, de fato iniciada no Governo Dilma. Ao lado disso, a avaliação da eficácia e necessidade do remédio proposto: o corte nos gastos públicos e a restrição da ampliação futura das despesas do Estado. Essas duas perspectivas oferecem, por sua vez, um pano de fundo que esclarece muito da dinâmica política em curso no Brasil hoje e dos mecanismos de agregação e forças sociais, em uma época em que é a dinâmica de alianças pontuais que tem determinado qual narrativa e quais políticas se tornam momentaneamente dominantes. Evidencia-se, sobretudo, o projeto ideológico subjacente ao debate sobre a crise econômica brasileira.
Durante os dois governos Lula o Brasil viveu um período tipicamente caracterizado como “milagre econômico”, pois agregava elementos aparentemente contraditórios: um forte crescimento do mercado consumidor, efeito direto e indireto dos programas de distribuição de renda e de investimento do Estado, crescimento geral, acelerado e sustentado da economia, por um período longo, inclusive durante uma gravíssima crise internacional, e controle do processo inflacionário. Um mito que se associa ao crescimento econômico desse período é o de que ele elevou o endividamento público. Os dados apontam o inverso, com acúmulo de ativos superior à dívida pública (o que equivale a zerar essa dívida), apesar do forte papel do Estado no financiamento do investimento, via BNDES e bancos públicos. A hipótese corrente para explicar esse processo, bastante razoável e sustentada, é de que o crescimento econômico e a diminuição da pobreza desses anos resultaram, de um lado, das políticas de distribuição direta de renda, e, de outro, dos ajustes microeconômicos que garantiram um crescimento da produção em ritmo acelerado, de modo a que a ampliação do consumo não resultasse em pressão inflacionária. Esse cenário foi favorecido pela expansão da economia internacional até 2009, mas evidenciou sua sustentabilidade nos anos de crise externa.
O início da primeira gestão de Dilma se faz acompanhar de uma compreensão por parte dos economistas do governo de que o ciclo de crescimento alavancado pelas políticas anteriores estava se encerrando e que era necessário buscar base de sustentação para um novo ciclo a ser iniciado. A estratégia adotada consistia, em linhas gerais, em apostar em uma expansão da produção e do emprego (e, de modo derivado, da renda média) por meio de estímulos à atividade produtiva. Esses estímulos definiram a identidade de algumas das principais políticas desses anos: ampliação da infraestrutura para a produção, sobretudo de transporte, desoneração de setores produtivos considerados estratégicos, redução do preço da energia elétrica e tentativa de diminuição das taxas de juros praticadas pelos bancos. O resultado desse conjunto de medidas seria, assim se esperava, um estímulo ao investimento produtivo e a manutenção do crescimento dos anos anteriores.
O resultado dessa política não foi, entretanto, o esperado. Os setores produtivos brasileiros, sobretudo a indústria, não responderam positivamente a esses incentivos e a economia brasileira passou a apresentar, em um primeiro momento, indicativos de interrupção da dinâmica anterior de crescimento e, em seguida, perspectiva de estagnação. Como na base da política econômica dos anos 2011-2014 se encontrava a redução das receitas do Estado, resultado das isenções fiscais e da redução do valor da eletricidade, por exemplo, e em ampliar os investimentos em infraestrutura, o que se passa a vislumbrar no horizonte é a possibilidade de um desequilíbrio nas contas públicas. Esse tipo de incerteza é, por si só, uma pressão inflacionária relevante, completando o quadro de uma crise econômica que se delineava a partir de 2014 e que foi objeto de ampla discussão antes e depois das eleições presidenciais daquele ano. O cenário de crise de fato existia, mas já era dimensionada pelo próprio mercado como uma crise leve ou mediana, a ser combatida através de alguns ajustes no modelo de política econômica dos anos 2011-2014. Essa era uma crise “ordinária” do sistema de mercado e, dados os ativos do Estado naquele momento e os instrumentos disponíveis, não havia qualquer motivo para supor que seria grave ou duradoura.
A crise que se apresenta após as eleições, entretanto, é algo muito distinto daquilo que se supunha a princípio. O elemento de agravamento que determina boa parte do que a sociedade brasileira viveu nos anos 2015-2016 é de natureza fundamentalmente política. A contestação do resultado das eleições, a abertura de um “terceiro turno” eleitoral, inicialmente no TSE e depois nas ruas, e a instabilidade no Governo Dilma provocada pela Operação Lava Jato tiveram dois resultados devastadores. O primeiro, direto, foi a redução dos investimentos da Petrobrás e de outras empresas públicas, acompanhado da redução dos investimentos do setor privado, o que resultou em uma violenta paralização da economia. O outro, indireto, associado às expectativas, derivava do receio de que o governo combatesse a crise política buscando sustentação através da ampliação dos gastos públicos, abrindo um “saco de bondades” que agravaria ainda mais os desequilíbrios herdados de 2014. As medidas adotadas em 2015 pelo Governo Dilma, de consolidação dos ativos da Petrobrás e de contenção brutal dos gastos públicos, tinham por objetivo reverter a paralisia dos investimentos e conter as expectativas de explosão do déficit público e da inflação.
Há muitas leituras que se pode fazer das políticas econômicas dos anos Dilma, de seu equívoco na leitura das melhores estratégias de desenvolvimento e distribuição de renda, de sua compreensão da distribuição de renda como resultado derivado de uma política de expansão do setor produtivos, invertendo a lógica anterior, de sua busca tardia e sem sucesso de assegurar ao mercado o equilíbrio fiscal através de cortes excessivos nos gastos. Mas deve-se, em todos os casos, frisar que o impressionante agravamento da crise e a retração da economia brasileira em 2015-2017 é resultado da instabilização política do governo e do quadro de incertezas que isso introduziu. Que se atribua a cada um a sua responsabilidade: o Governo Dilma errou na estratégia que adotou para levar adiante a expansão e distribuição de riquezas dos anos anteriores, mas não tem nenhuma responsabilidade pelos elementos que agravaram a crise e, de fato, tentou responder ao mercado em uma língua que ele entende: a contenção das despesas diretas do Estado, feita por um ministro que contava com a confiança dos setores financeiro e industrial.
Esse é o contexto de pressões econômicas em meio ao qual o Governo Temer apresentou a PEC dos Gastos Públicos. O propósito de sua formulação seria, a princípio, administrar as expectativas futuras do mercado. Ela indica, ainda que de modo vago e provisório, a imposição de uma maior responsabilidade fiscal ao governo. Com isso, contém a expectativa
de que se busque apoio político através de uma expansão irresponsável dos gastos públicos ou de que se deixe de lado o combate à inflação resultante desse déficit. Uma Emenda Constitucional que tire do governo a prerrogativa de ampliar os gastos públicos é o meio mais brutal de oferecer essas garantias ao Capital. Assegurar essa “responsabilidade” com o controle dos gastos era exatamente o que o Governo Dilma, através do então Ministro Joaquim Levy, tentava oferecer como antídoto para o agravamento da crise ao longo de 2015. E as fortes pressões políticas que inviabilizaram essas medidas, seja no setor produtivo, seja no Congresso Nacional, que alimentava o incêndio da economia com uma pauta-bomba que ameaçava justamente agravar o déficit público, foram determinantes para seu insucesso e para o apoio manifestado nas ruas ao afastamento da presidenta.
A dose desse exagerada do remédio proposto, a PEC dos gastos, é o que evidencia que por detrás das medidas de ajuste econômico se oculta uma pauta política bastante específica. Basta comparar essas medidas com a ortodoxia de Joaquim Levy, que propõe o mesmo diagnóstico e o mesmo remédio para a recuperação da economia. Em um caso, temos a explicitação do compromisso a diminuição dos gastos públicos, no outro, o corte e congelamento dos investimentos por vinte anos. A diferença é gritante e não pode ser explicada apenas por meio de argumentos técnicos sobre a dinâmica de expectativas no mercado. No bojo dessa proposta o que se encontra de contrabando é o projeto de redefinição do papel do Estado brasileiro, o qual se pretende viabilizar em tempo recorde, sem debate, antes do processo eleitoral de 2018.
O argumento em geral usado em defesa da PEC, mais comum em meios não especializados e exaustivamente repetido pela mídia, é simplesmente falso. Trata-se de afirmar que a estabilidade econômica e o crescimento resultam de um “equilíbrio das contas públicas”, de que se gaste menos do que se arrecada. Toda a economia moderna se estrutura, já desde o final do século XVIII, sobre a compreensão de que os conceitos de riqueza e equilíbrio aplicados a indivíduos não são válidos para o conjunto da sociedade. Guardar dinheiro não torna uma sociedade mais rica. Pelo contrário, é causa de um processo inflacionário e de uma sobrevalorização de sua moeda que dificulta as exportações. De modo similar, o gasto público não a deixa necessariamente mais pobre, como os anos Lula mostraram tão bem e como se evidencia, para usar um exemplo menos “suspeito”, nos 787 bilhões gastos pelo Governo Obama para combater a crise de 2009. Gastar dinheiro público em políticas anticíclicas, como no caso dos EUA sob Obama, é a base de qualquer ação responsável de governos ocidentais frente a crises. Do mesmo modo, apenas para explicitar como os conceitos sobre finanças privadas não se aplicam às finanças públicas, a dívida do Estado é o instrumento mais básico do sistema financeiro, através do qual se transporta valores presentes para o futuro (comprando títulos de dívida pública garantidas pelo Estado). A definição de um teto rígido para os gastos é insustentável no médio prazo, contraria a racionalidade econômica das economias ocidentais de mercado e retira das mãos do Estado instrumentos essenciais na gestão da dinâmica dessas economias.
Mas o que está em jogo com a PEC, então? Porque ela excede em tanto àquilo que seria necessário para contentar os mercados e reestabelecer um “ambiente de negócios” no país? Para compreender essa PEC é preciso olhar para o outro lado: muito mais do que oferecer garantias de responsabilidade fiscal, ela se apresenta como um meio extremamente eficiente (pois desvia o debate para um terreno aparentemente técnico) de redefinição do papel do Estado na economia e na sociedade brasileira atual. Definida a restrição orçamentária para 2017 e, eventualmente, 2018, e construído o discurso de que essa restrição é algo positivo e necessário para o ajuste da economia, um jogo que a mídia tem ajudado o atual governo a vencer, o passo seguinte é adequar os gastos a este novo patamar. Ou seja: o orçamento de 2017 será elaborado ante a necessidade de distribuir os cortes de gastos e estabelecer prioridades. E, então, dada a limitação do gasto público, a manutenção dos programas sociais implicaria a retirada de recursos de outras fontes, como o SUS, a Educação Básica ou o investimento em infraestrutura. Seremos reduzidos a alternativas do tipo: acabar com o SUS ou restringir os programas sociais? E a defesa desses programas será confundida com a defesa da falência do Estado, do fim da Educação Básica, do já precário sistema único de saúde, etc.
O que a PEC oferece ao atual governo e àqueles o sustentam, mais do que garantias ortodoxas aos investidores do mercado (com enorme dano para a maior parte da população), são os meios para desmontar as políticas sociais dos governos Dilma e Lula sem precisar pisar no terreno delicado de um debate ideológico sobre a extinção (de fato) do bolsa-família, do Prouni, do Minha Casa, Minha Vida, etc. A restrição dos programas sociais dos governos anteriores se fará, seletivamente, por força de norma constitucional. O que se encontra no horizonte da PEC é uma redefinição completa do modelo de Estado existente no Brasil hoje, eliminando a estrutura de bem-estar social construída entre 2003 e 2014. E isso se fará sem que seja necessário ao atual governo se contrapor efetivamente a esses programas. Será resultado da incompatibilidade dessas políticas com o ajuste “necessário” que está sendo aprovado pelo Congresso. Cumprida essa tarefa, talvez já em 2018, antes das eleições, já não se faça necessário manter as restrições orçamentárias (as quais, aliás, são completamente incompatíveis com um governo do PMDB). O que se deixará, entretanto, como legado é o corte de verbas para a universidade publica e a interrupção de sua expansão, a redução do impacto de programas sociais, do investimento na agricultura familiar, na pesquisa acadêmica e na educação pública federal em geral. O Estado que está sendo construído, sem nunca ter sido defendido publicamente ou referendado pelas urnas, é não um Estado Mínimo, mas um estado descomprometido com as medidas de justiça social e diminuição da desigualdade que transformaram o país na última década.
Quando Michel Temer nomeou para seu primeiro ministério apenas homens brancos e ricos, e logo depois o Ministro Mendonça Filho recebeu Alexandre Frota para ouvir suas propostas para a educação eu pensei, quase feliz: basta dar corda que eles se enforcam sozinhos! Neste ritmo não chegam ao final do ano! Errei por muito. Esse grupo tem mostrado desde então uma habilidade política impressionante na implementação de sua agenda. Sua finalidade não é nunca apresentada de modo direto. Sua meta é, entretanto, extremamente ambiciosa: a redefinição do papel do Estado brasileiro através de reformas implantadas a toque de caixa, antes que se compreenda o seu impacto e, assim, sem uma contraposição explícita às políticas públicas e programas sociais de caráter distributivo. A eliminação da viabilidade desses programas se efetiva de um modo que evita a confrontação que poderia mobilizar uma parte significativa da sociedade contra o governo. No caso específico da PEC, a implementação de um projeto político de longo prazo se apresenta travestida de medidas econômicas urgentes e inevitáveis.
Há um gênio maligno neste governo, que usa todo seu ardil para nos enganar a cada momento, mesmo quando ele parecia tolo e frágil, ou quando propõe medidas “técnicas”, mesmo quando sabemos, como sabemos, que tudo no Brasil de hoje tudo está tão certo como dois e dois são cinco.
http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/989-para-nao-dizer-que-nao-falei-da-economia
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