Sergio Abranches – O liberalismo tem sido o biombo moral atrás do qual se escondem os autocratas contemporâneos. A ultradireita se define como anticomunista e, portanto, contra o estatismo. Adota o rótulo de liberal para se contrapor a ele. O estatismo não é necessariamente de esquerda. A ditadura no Brasil era anticomunista e estatista. Do mesmo modo, o privatismo tem sido frequentemente confundido com o liberalismo. Não é confusão apenas semântica, é uma granada de fumaça para permitir a entrada bruta de autocratas, privatistas na economia e autoritários na política. O mais novo caso é de Javier Milei, recém-empossado na presidência da Argentina e que já começou o governo com medidas repressivas para calar os descontentes que se multiplicam exponencialmente. Donald Trump, em bravata recente, disse que será um ditador só no “dia um”, se for reeleito. Como se fosse possível alternar entre a ditadura e a democracia, ou ser apenas um pouco ditatorial.
O falso liberalismo da extrema-direita é um misto de enganação e ignorância. Citações fora do lugar, uso de frases para provar o contrário do que o autor diz no raciocínio do qual foi retirada a frase. Parecido com os maus usos da Bíblia por pastores-políticos-mercantis. É visível o manejo pobre dos conceitos, as falhas graves de conhecimento do que dizem e escrevem sobre ser liberal. Falta o mínimo de lógica nesse uso abusado do liberalismo. O conceito de liberdade que se extrai dele não resiste a uma análise lógica primária. A liberdade não é bem divisível. Fracionada, ela perde integralmente sua natureza, torna-se seu oposto. Hanna Arendt escreveu que a liberdade do medo e a liberdade da necessidade andam juntas na determinação da liberdade para ser livre. Quem vive cativo da miséria não é livre para escolher o que seria melhor para si, nem para buscar a felicidade sua e dos seus. Quem é cativo do medo de repressão estatal ou violência privada não é livre para agir de acordo com seus desejos, valores e interesses. É preciso ter a liberdade de ser livre.
Liberalismo não é livremercadismo nem privatismo. Basta ler a Teoria dos Sentimentos Morais, de Adam Smith, Dois tratados sobre o governo civil, de John Locke ou os escritos de John Stuart Mill, para constatar a imensa diferença entre o que pensam os que se autodenominam liberais e o verdadeiro pensamento liberal. Contenho-me em indicar a leitura de O contrato social, de Jean-Jacques Rousseau, muito citado por Paulo Guedes, quando ministro da Economia de Bolsonaro, porque o pensador francês, na minha leitura, inaugura a vertente do social-liberalismo, este então ainda mais distante do pensamento da “direita alternativa”. Mais ainda no campo social-liberal está a obra do pensador contemporâneo, John Rawls, sobre liberalismo político. O libertarianismo, ou anarquismo de direita reivindicado por Milei, tampouco tem a ver com o que ele diz ou faz. Eu recomendaria ao presidente argentino a leitura do texto já clássico do filósofo contemporâneo, Robert Nozik, Anarquia, estado e utopia, no qual ele define, explica e aprofunda o anarquismo de direita.
Javier Milei já mostrou que governará pelo medo. Ameaçou cortar os direitos sociais de quem fizer piquete contra suas políticas antissociais. Deve ser inconstitucional até na Argentina. Mas, quem tem necessidade, tem medo. Agora, no recente “decretaço”, limitou o direito de greve e autorizou a demissão justificada de quem participar de piquetes. As imagens são claras. O aparato policial mobilizado para reprimir manifestantes na histórica Plaza de Mayo é inequívoco sobre a atitude autoritária do governo Milei. Sua máxima “liberal”, “dentro da lei, tudo, fora da lei, nada”, parece fazer sentido. Mas qualquer sentido que fizesse se perde quando se vê que ele está estreitando o escopo legal das liberdades. Especialistas argentinos dizem que o decretão é inconstitucional e avança sobre prerrogativas do Legislativo definidas na Constituição do país. O decretaço é a mais pura expressão do que se pode chamar de privatismo autoritário, que marcou também a ditadura Pinochet, no Chile. Nada mais longe do liberalismo e do libertarianismo de direita.
No governo Bolsonaro, Paulo Guedes falava seguidamente do objetivo de transformar o Brasil na “grande sociedade aberta”. Referia-se, claro, à expressão no título da obra mais conhecida do filósofo Karl Popper, A sociedade aberta e seus inimigos. Deve ter esquecido o que representa o núcleo do pensamento popperiano. Popper, vivo, veria Bolsonaro como um governante mau e incompetente, que causou muitos danos à sociedade. O institucionalismo de Popper propõe que se deva organizar as instituições políticas de tal modo a evitar que exatamente governantes maus ou incompetentes causem muitos danos à sociedade. Bastam suas atitudes durante a pandemia e sua influência no declínio da vacinação no Brasil. Milton Friedman, ultraliberal que a extrema direita venera, ficaria indignado com a ideia de usar o gasto público para reeleger o presidente. Guedes propôs fazer isto naquela reunião ministerial da boiada. E foi o que fez.
O liberalismo nasceu como movimento contra o autoritarismo. Contra a tirania monárquica e a organização econômica que a ela correspondia. Javier Milei não é liberal, nem libertário, muito menos anarquista de direita. É um autocrata em desenvolvimento. Há uma contrariedade insanável entre ser liberal e usar o poder do estado para impor suas ideias na economia e reprimir seus opositores.
Fonte da matéria: O falso libertário – Sergio Abranches – https://sergioabranches.com.br/destaques/o-falso-libertario/
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