Sociedade

A barbárie contida na civilização: os brutalizados

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Patricia Rivero – No final de semana de 16 a 17 de setembro, fomos surpreendidos mais uma vez com um vídeo bizarro disseminado nas redes sociais, onde pelo menos 10 estudantes de medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa), no interior de São Paulo, invadiram, abaixando as calças, a quadra de vôlei onde acabava de jogar e ganhar o time feminino da Universidade São Camilo. No vídeo divulgado inicialmente, os alunos aparecem em grupo, com rosto e corpos pintados de preto, e é possível ver que alguns deles manipulam o pênis semiereto no trajeto.(Metrópoles e Banda B, acessados em 24/09/2023) Os vídeos do episódio, aparentemente ocorrido entre 28 de abril e 1º de maio desse ano, foram postados nas redes e na imprensa recentemente e anunciados sob o título de “punhetaço” ou “masturbação coletiva”.

Chama a atenção que esses estudantes (que almejam se tornar médicos) tenham pintado os rostos e o corpo de preto, apesar de se tratar, aparentemente, na sua maioria, de homens brancos, de no mínimo classe média para cima. Estudantes entrevistados pelas autoridades, inclusive algumas mulheres, naturalizaram essas práticas como formas corriqueiras de comemoração. O caso está sendo investigado pelas autoridades, mas é curioso que só a partir da semana passada a universidade em questão tomou medidas para punir alguns dos envolvidos no episódio. Houve até um jornalista que, em matéria no jornal O Globo, afirmou se tratar de “apenas uns rapazes nus”. Porém, o Presidente Lula, que estava em Nova York, participando da Assembleia das Nações Unidas, o Ministério das Mulheres e a União Nacional dos Estudantes (UNE) se manifestaram, condenando o fato na mesma semana da divulgação. As referências são deixadas aqui para que os leitores possam ter acesso às diferentes versões e avaliar. Esse tratamento diferenciado, dependendo da diversidade dos atores em questão, responde claramente a elementos contextuais, situacionais e estruturais.

Aqui, a reflexão não pretende elucidar o fato, mas trazer alguns elementos interessantes para serem pensados mais profundamente.

Não é novidade que no Brasil algumas condutas das elites econômicas e políticas, às vezes entrelaçadas entre si, podem ser confundidas com aquilo que podemos chamar de barbárie. Os últimos quatro anos do governo das trevas não nos permitem mentir. E estamos num período de transição, onde apesar dos esforços governamentais e institucionais, encontramos o que chamo de “fiapos de barbárie” permeando nossa sociedade.

A ideia de barbárie, utilizada pelos filósofos alemães Adorno e Horkheimer, aparece como contraste ao mundo civilizado, ao avanço da razão, da ciência e do conhecimento. Mas estes autores, representantes por excelência da Escola de Frankfurt no pensamento filosófico, social e estético, levantam a dúvida: o que chamamos de civilização ainda carrega dentro de si a possibilidade do comportamento irracional, principalmente na manifestação do comportamento das massas. O mundo da modernidade – e pior, daquilo que Anthony Giddens chama de “alta modernidade” –, aparece destituído de sentido, ou seu sentido é encontrado no consumo e na produção de comportamentos como espetáculo através das redes sociais. A ciência e a tecnologia, se subordinadas à lógica do lucro, do consumo e da guerra, podem se converter em elementos de destruição, como o próprio desenvolvimento da energia atômica nos mostrou. A indústria cultural e o consumo de massas subordinadas aos desígnios do capital podem produzir novos mitos, que deem sentido à existência, semelhantes aos encontrados no passado com a magia e a religião. No limite, podem levar aos identitarismos nacionalistas, religiosos, racistas e patriarcais que culminem no extermínio, como foi no caso do Nazifascismo. Portanto, aquelas ideias fundantes da civilização e o esclarecimento, com o avanço da cultura de massas, podem eclodir em ações impensadas, praticadas em grupo ou em manada, levando à violência e à brutalidade.

Numa chave diferente, Achille Mbembe adverte para o lado escuro da democracia, que carrega em si própria o que ele chama do seu pharmakon, ou seja, aquilo que funciona como seu antídoto e veneno. Isso significa que ela carrega a saída e a destruição. No seu lado luminoso proclama os direitos humanos fundamentais, mas esconde de forma hipócrita a violência com que foi construída, a saber: a violência, o racismo, a subjugação do “outro” que é diferente de “nós” e que é considerado o “inimigo”.

Nessa linha, Rita Laura Segato, coloca como representação dos colonizados e dos considerados inimigos, os corpos das mulheres ou de todos os que carregam, ao dizer da autora, “o feminizado”: crianças, idosos, LGBTQI+, indígenas, pretos, pobres, periféricos. Esses corpos representam o botim das guerras de colonização e das guerras paraestatais atuais (de milícias, narcotraficantes, grupos de extermínio). O estupro, nestes contextos, que a autora exemplifica para diversos lugares da América Latina, funciona como ocupação de território e saque na colonização. Na cidade de Juárez, fronteira do México e Estados Unidos, onde a antropóloga realizou extensa pesquisa entre 2003 e 2004, desaparecem os corpos das trabalhadoras indígenas das maquiladoras e aparecem depois com sinais de tortura e estupro. Quando são encontrados, paira o silêncio em relação aos mandantes, geralmente integrantes das elites locais. Às vezes são noticiados na imprensa, mas como crimes sexuais, isolados, atribuídos a alguns indivíduos, considerados “monstros” ocasionais. E a autora chama a atenção para o fato de que estes contam com a cumplicidade de amplos setores da sociedade, o que reforça a inação e o imobilismo das próprias vítimas. Neste caso, como em outros, as mulheres devem ser destruídas e a tortura, seja corporal ou simbólica, funciona como troféu de guerra sobre os inimigos, na sociedade do “nós” e os “outros”, a “sociedade da inimizade” como a chama Mbembe.

Nesses pequenos lugares onde as elites locais dominam, impera a lei do silêncio perante a violência, particularmente a sexual. Esses grupos dominantes espelham a si próprios como colonizadores dos outros, dos corpos frágeis e feminizados e, obedecendo ao “mandato de masculinidade”, justificam sua existência.

A masculinidade precisa ser reforçada a qualquer preço. Porém, o estupro e o assédio dos corpos feminizados, que frequentemente ocorre no espaço privado para depois emergir como crimes no espaço público, hoje aparecem sem pudor como parte do espetáculo da cultura de massas na rede. Assistimos ao vídeo da suposta “masturbação coletiva”, chamado pelas mídias sociais e pela imprensa de “punhetaço”. Mas num passado muito próximo, eram colocados vídeos de estupros coletivos, enquanto os dados de violência doméstica no Brasil mostram que o feminicídio aumentou 37% entre 2017 e 2022 (dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública). Aqueles que se identificam como elites e precisam da reafirmação de seu poder agem para reforçar uma e outra vez a masculinidade em decadência. As vítimas, mesmo se percebem que algo está fora do lugar, já não conseguem reagir, pois o espetáculo já faz parte da rotina social e o medo a reações mais violentas podem produzir paralisia. O fato acontecido, o silêncio e a cumplicidade aparente das instituições de ensino em questão e dos próprios envolvidos, a disseminação tardia e sem cuidado do vídeo no espaço público, a nomeação publicizada como “punhetaço” e até o menosprezo ao significado da mensagem passada no vídeo por uma parte da imprensa, mostram os estertores da civilização e a miséria humana em que estamos mergulhados.

Referências
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos Filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade /Anthony Giddens; tradução de Raul Fiker. – São Paulo: Editora UNESP, 1991.
MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. Editora Antígona, 1ª Edição. Lisboa, 2017.
SEGATO, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Editora Traficante de Sueños, Madrid, 2016.

Fonte da matéria: A barbárie contida na civilização: os brutalizados – Terapia Politica – https://terapiapolitica.com.br/a-barbarie-contida-na-civilizacao-os-brutalizados/

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