Priscila Pereira Machado, Nádia Rosana Fernandes de Oliveira e Áquilas Nogueira Mendes –
INTRODUÇÃO
A alimentação tem se homogeneizado progressivamente, passando de um sistema diversificado para outro hiperespecializado e integrado aos amplos sistemas de produção agroalimentar. Atualmente, praticamente em todo o mundo a base da alimentação provém de um sistema de produção e distribuição em escala planetária, cabendo à indústria alimentícia o papel de definir o que e como as pessoas comem (Canesqui; Garcia, 2005).
Desse modo, para a indústria alimentícia, a definição de alimento passa a ser pautada no entendimento do alimento-mercadoria, onde o objetivo maior é a disponibilidade de produtos gerados por meio de alta tecnologia industrial associada aos ingredientes de fácil aquisição e baixo custo. Isso é o que se come. Já a definição do comer – enquanto modo, enquanto processo social – é caracterizada pelo estímulo da individualidade e pelo uso da subjetividade de um sistema de significação simbólica do modelo capitalista de consumo (Fischler, 1995;Poulain, 2004).
Com vistas a aumentar a disponibilidade alimentar, tem se defendido um sistema de produção, distribuição e consumo desigual e injusto, com fortes impactos na saúde pública, permanecendo a fome no mundo e a violação de direitos humanos. Contudo, a discussão desse cenário de crise no sistema alimentar e seus impactos é pouco vislumbrada sob uma ótica mais ampla de crise do capital, tal qual uma das consequências da crise estrutural do capitalismo.
O objetivo deste artigo é discutir como a alimentação veio sendo dominada pela lógica privada do capital, transformando o alimento em mercadoria, a partir do cenário produtor de doenças e de desigualdades econômicas e sociais, no contexto da fase contemporânea do capitalismo e sua crise. Para tanto, este artigo está estruturado em três partes: a primeira parte aborda o contexto recente do sistema alimentar global e o processo de massificação do alimento em mercadoria; a segunda parte apresenta os traços gerais da dinâmica do capitalismo contemporâneo e sua crise com impactos sobre o sistema alimentar; a terceira parte explicita o cenário de constrangimento e violação do Direito Humano à Alimentação Adequada e à implementação da Segurança Alimentar e Nutricional na fase atual do capitalismo sob a dominância financeira.
Sistema alimentar global e a massificação do alimento-mercadoria
A partir da Segunda Guerra Mundial, fortalecia-se o discurso sobre a insuficiente disponibilidade de alimentos que gerava situação de fome nos países pobres. Órgãos internacionais como a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e o Banco Mundial enfatizavam que a baixa produtividade agrícola era a responsável pela fome e pobreza. Destarte, a partir da década de 1960 se iniciou, nos países de menor renda, a introdução de inovadoras técnicas agrícolas decorrentes de pesquisas provindas dos países industrializados, a qual foi denominada Revolução Verde (Belik; Silva; Takagi, 2001; Maluf, 2007).
Tal modelo foi baseado na intensiva utilização de sementes de alto rendimento, fertilizantes, pesticidas, irrigação e mecanização, tudo isso associado ao uso de novas variedades genéticas fortemente dependentes de insumos químicos. Com a crise mundial de produção de alimentos no início da década de 1970, além da proposta de aumento da produção, uma nova política de armazenamento estratégico e de oferta de alimentos seria necessária para garantir a regularidade do abastecimento (Goodman; Sorj; Wilkinson, 1990; Delgado, 2001).
Assim, intensificou-se a Revolução Verde, inclusive no Brasil, e coube à indústria alimentícia utilizar o excedente gerado nos ganhos contínuos de produtividade na agricultura, colocados no mercado sob a forma de alimentos industrializados (Maluf, 2007). O aprimoramento da tecnologia e o aumento da escala de produção da indústria alimentícia, com uso de ingredientes e aditivos alimentares de custo extremamente baixo, possibilitaram aumentar a disponibilidade e reduzir o preço dos produtos alimentícios industrializados (Popkin; Adair; Ng, 2012).
Nesse sentido, desde a década de 1980 tem se observado uma mudança rápida e intensa no sistema alimentar global, que tem impactado o padrão de saúde e consumo alimentar da população (Malik; Willett; Hu, 2013) com a substituição de refeições preparadas com base em alimentos e ingredientes culinários por produtos alimentícios ultraprocessados (Monteiro et al., 2012). Esses produtos são obtidos total ou parcialmente de ingredientes industriais, os quais podem ser retirados de algum alimento ou formulados sinteticamente (Monteiro et al., 2013).
A aquisição de produtos ultraprocessados é bastante elevada em países desenvolvidos, mas em termos relativos, o crescimento do consumo desses alimentos tem sido mais evidente em países em desenvolvimento, como o Brasil. Além disso, seu consumo está associado à prevalência de obesidade e doenças crônicas (Monteiro et al., 2013). Esse cenário pode ser observado em estudo realizado por (Bahia et al., 2012), os quais mostram que os custos totais estimados para o Sistema Único de Saúde (SUS) em um ano, com todas as doenças relacionadas ao excesso de peso e à obesidade, são US$ 2,1 bilhões. Isso representa uma sobrecarga a um sistema de saúde historicamente subfinanciado e capturado pelos interesses do capital (Mendes, 2012).
A maior disponibilidade de produtos ultraprocessados pode ser explicada também por mudanças nas formas de distribuição (Reardon; Timmer, 2012), visto que o desenvolvimento da indústria alimentícia foi acompanhado pela ascensão dos supermercados, que geralmente são parte integrante de cadeias multinacionais que atuam como instrumentos de empresas transnacionais para ofertar aos consumidores uma ampla variedade de produtos alimentícios ultraprocessados (Popkin; Adair; Ng, 2012; Reardon; Timmer, 2012; Malik; Willett; Hu, 2013).
Os supermercados seguem a racionalidade capitalista contemporânea de desregulamentação e liberalização financeira como conjuntura essencial para a mundialização do capital (Chesnais, 1995). Os supermercados surgiram nos Estados Unidos da América, Canadá, Japão e partes da Europa, mas com a intensa concorrência e saturação do mercado de ultraprocessados nos países de maior renda (Reardon; Timmer, 2012), os mercados emergentes tornaram-se o novo foco de grandes redes varejistas no processo de expansão e acumulação do capital (Santos, 2010).
Assim, o que se observa hoje é a intensificação de um sistema alimentar cada vez mais concentrado e determinado por poucas empresas transnacionais (Popkin; Adair; Ng, 2012). Cerca de dez grandes transnacionais controlam os agrotóxicos, as sementes e os transgênicos (Abrandh, 2013). A aquisição de alimentos também é concentrada, pois cerca de dois terços do volume de vendas de varejo no Brasil está distribuída entre cinco grandes redes nacionais e internacionais de supermercados (Monteiro; Farina; Nunes, 2012).
Como expresso por (Wilkinson, 2002), os gigantes da indústria alimentar consolidaram a distribuição mundial de produtos alimentícios se apropriando de novas linguagens com apelo para a originalidade dos produtos. Nesse sentido, a indústria se reposicionou na busca por conceitos que dialogavam com temáticas que garantiam maiores vendas e geração de lucros, como o apelo ao saudável, ao original, ao tradicional, ao caseiro, mostrando grande habilidade na adaptação às mudanças no sistema alimentar. Ademais, um marketing intensivo foi utilizado especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial para que as tarefas da cozinha doméstica fossem transferidas para a indústria de alimentos (Canesqui; Garcia, 2005), dando nascimento ao comedor-consumidor (Poulain, 2004).
O próprio conceito de sistema alimentar é um contraponto ao alimento-mercadoria, na perspectiva da inserção das relações políticas, sociais e ambientais que ele compõe, principalmente, no que tange a comensalidade. Não obstante, esse mesmo conceito – o qual pressupõe práticas emancipadoras, centradas no alimento, na comida e no comensal – foi apropriado pela indústria, a qual deturpa as relações com o alimento em função da mercadoria (Poulain, 2004).
Efeitos da dinâmica do capitalismo contemporâneo e sua crise sobre o sistema alimentar
A crise do sistema alimentar atual está enraizada na natureza das crises capitalistas, que para além de uma crise econômica, consiste em crises das relações sociais que fazem parte do processo cíclico do capitalismo (Callinicos, 2010). E, assim como o sistema alimentar experimentou transformações a partir dos anos 1960, foram mais notáveis a partir desse período duas principais tendências da crise estrutural do capitalismo: a tendência de declínio da taxa de lucro nas economias capitalistas (Kliman, 2012) e, como resposta, a entrada no caminho da financeirização a partir dos anos 1980, com a dominância pelo capital portador de juros, especialmente o capital fictício (Chesnais, 2005). Portanto, entender a constituição do capital como resultado da relação social de produção, que determina como os bens e serviços são produzidos e distribuídos na sociedade (Marx, 1983a), é primordial para entender a constituição do alimento enquanto mercadoria.
O ponto de partida para a análise de Marx é a mercadoria e a compreensão de seu processo de circulação enquanto valor de uso e de troca, com função de satisfazer as necessidades humanas e determinado pela quantidade de trabalho socialmente despendida para produzi-la. A mercadoria precisa também satisfazer as necessidades dos donos dos meios de produção, por isso deve gerar um valor – que se valoriza – que recupere o capital adiantado e gere lucro ao capitalista. Esse processo de troca tem como intercessor o dinheiro, que no meio do processo de circulação intensifica sua valorização, utilizando-se da mais-valia para expandir-se e constituir-se como capital. Fica claro, portanto, que no modo de produção capitalista as relações sociais são constituídas por duas classes antagônicas, isto é, os detentores do meio de produção e os trabalhadores (Marx, 1983a). Portanto, para Marx, a produção capitalista não é apenas a produção de mercadoria, é essencialmente a produção de mais-valia, de lucro, extraída da quantidade de trabalho não pago e dela apropriada (Mendes, 2012).
O capital pode assumir diversas funções, que se desdobram de forma lógica, dialética e autônoma dentro do processo global de circulação. O capital industrial predominou até o fim dos “30 anos gloriosos” (1940-1970), período em que o capitalismo experimentou seu maior ciclo de expansão, juntamente à criação dos Estados de Bem Estar Social (Welfare State). Assim, foi possibilitado aos capitalistas o controle sobre os meios de produção e ao Estado foi incumbida a responsabilidade de garantia de serviços e políticas sociais (Wahl, 2011), assegurando não somente a reprodução da força de trabalho, mas também a “massa consumidora”, tão vital para o ciclo normal da produção capitalista (Mészáros, 2002).
Porém, o capitalismo na sua fase do modo de produção fordista se deparou com o esgotamento de sua expansão na segunda metade dos anos 1970 e com uma tendência persistente de queda da taxa de lucro. Segundo (Kliman, 2012), a recuperação da taxa de lucro, mesmo que não de forma estritamente econômica, ocorreu após o final da Segunda Grande Guerra. Diante da massiva destruição de ativos ocorrida antes e durante os anos dessa guerra mundial, foi possível constatar no pós-guerra um crescimento substantivo de acumulação e das economias, que se alastrou por volta dos próximos vinte e cinco anos. Contudo, esse crescimento no período posterior prejudicou a sua base de subsistência. Isso porque, no momento em que o capital foi sendo acumulado, ocorreu um declínio constante da taxa de lucro, tendo como resultado a perda progressiva do próprio crescimento econômico. Mas é interessante destacar que, segundo esse autor, no caso dos Estados Unidos houve uma persistente queda da taxa de lucro no setor corporativo das empresas industriais e financeiras no período pós-Segunda Guerra: queda de 41,3% entre 1949 e 2001 (Kliman, 2012, p. 82). No momento em que essa queda ocorre, constata-se uma crise de superacumulação que é explicada não pela insuficiência da demanda efetiva, mas pela ausência de lucros (Mendes, 2012).
Em virtude do decorrente processo de superacumulação, uma parte do capital excedente em circulação precisa ser eliminada para restabelecer o equilíbrio, em um processo denominado “desvalorização do capital” (Harvey, 2013). Desse modo, a solução que o sistema dá a esse problema é a própria crise, pois é ela que possibilita a destruição de capital, sem a qual a taxa de lucro não se recupera (Carchedi; Roberts, 2013). Ou seja, “se a redução da quantidade total de capital é tudo o que é necessário para trazer o sistema de volta ao equilíbrio, então a centralização do capital pode ser vista como um dos meios disponíveis para realizar essa tarefa” (Harvey, 2013, p. 119). A centralização e maior concentração do mercado ocorrem porque os grandes capitalistas encontram condições de expropriar, pela desvalorização do capital, e absorver os bens materiais e financeiros dos pequenos capitalistas por um valor reduzido (Harvey, 2013).
A fim de que a taxa de lucro das empresas norte-americanas não declinasse progressivamente entre 1949 e 2001, teria sido necessário empreender uma destruição maciça de capital acumulado na forma de ativo fixo (imóveis, equipamentos, utensílios, ferramentas, e patentes) e na forma financeira, o que não ocorreu. Particularmente, a partir dos anos 1980 observa-se uma leve recuperação da taxa de lucro, mas longe de ser suficiente para restaurar o patamar verificado em 1949. (Kliman, 2012) argumenta que a economia norte-americana se manteve instável e não se recuperou da crise dos anos 1970 devido ao fato de que a destruição de capital havida no início dos anos 1980 foi insuficiente para recuperar a lucratividade e o dinamismo econômico da principal economia capitalista. Certamente, a existência de uma pequena recuperação da taxa de lucro após a década de 1980 se deveu às políticas econômicas neoliberais que, como se sabe, diminuíram os salários dos trabalhadores e impuseram condições de trabalho bem mais precárias.
Nos anos que se seguiram a 1980, a acumulação de capital apresentou um ritmo bastante lento nos países centrais capitalistas, o que em parte foi compensado por uma acumulação mais intensa em novos centros do capitalismo mundial, como a China, a Índia e outros países do sudeste asiático. Mas, especialmente a partir dos anos 1990, assistiu-se parte crescente dos lucros não distribuídos serem dirigidos para a esfera financeira, o que levou ao crescimento fantástico do capital fictício, seja na forma de títulos públicos, de ações negociadas no mercado secundário ou de derivativos de todos os tipos (Chesnais, 2005).
Esse processo da financeirização, como uma resposta do projeto neoliberal em busca de lucratividade, se refere à segunda tendência da acumulação capitalista que contribui para o entendimento da crise do capitalismo contemporâneo, qual seja, o crescimento e autonomia do setor financeiro sob dominância do capital portador de juros, especialmente o capital fictício (Chesnais, 2005; Callinicos, 2010). A exacerbação da lógica do capital portador de juros, sua constante autovalorização e a necessidade de maior magnitude de recursos para a acumulação de capital dão origem ao capital fictício (Chesnais, 2005).
As formas clássicas do capital fictício, analisadas por Marx em O Capital, são a dívida pública e as ações, que se referem a títulos de crédito, cuja cotação oscila com relativa independência do capital originário e cuja base de remuneração é o direito à participação em lucros ou rendimentos futuros, denotando sua natureza ilusória e essencialmente especulativa. O capital fictício alcança a forma mais fetichista da relação capitalista – dinheiro que gera dinheiro, sem passar pela esfera da produção (Marx, 1983b). A propensão do capital portador de juros para demandar da economia “mais do que ela pode dar” é uma consequência dessa parasitária exterioridade à produção e, por seu caráter ilusório, interfere de forma contraditória no processo de acumulação (Chesnais, 2005). Não obstante, o antagonismo existente no modo de produção capitalista, onde grande riqueza para alguns significa privação absoluta do necessário para muitos outros, corresponde a uma lei natural e imprescindível ao processo de acumulação (Harvey, 2013).
Dentre as consequências do processo de financeirização, superacumulação e superprodução, as políticas de liberalização e de desregulamentação foram estratégias para escoamento do capital, dando início ao seu processo de mundialização. As ações de liberalização têm reforçado os mecanismos de centralização e de concentração do capital. Aliado às políticas de descompartimentalização e de desintermediação, esse processo resultou na abertura ao capital dos setores protegidos socialmente a fim de oferecer oportunidades de lucro (Chesnais, 2005), em um verdadeiro ataque aos Estados de Bem Estar Social (Wahl, 2011).
Nesse sentido, a crise no sistema alimentar pode ser vislumbrada como um dos reflexos da crise estrutural do capitalismo, onde o capital, frente aos limites de lucratividade e a fim de realizar a sua vocação, que é a produção de mais capital, adota comportamento imperialista na procura e controle de novos mercados e recursos (Harvey, 2013). A junção do capital financeiro com o capital industrial, a concentração de investimento através de fusões e aquisições, a possibilidade de redução dos custos de produção por meio da expropriação da mais-valia do trabalhador e da propriedade dos meios de produção, assim como as políticas de liberalização e desregulamentação, fortemente praticadas a partir da década de 1990 (Mendes, 2012), impulsionaram a diversificação de instrumentos e a “liberdade” dos fluxos de capitais, favorecendo a entrada das multinacionais no Brasil e a concentração de mercado.
Como resultado do processo de desregulamentação e liberalização dos mercados financeiros e o desenvolvimento das inovações financeiras, novos instrumentos foram criados, como os derivativos e os bônus corporativos. Os derivativos constituem uma das formas do capital fictício mais contemporâneas a Marx e têm por base a performance de um ativo já existente, que pode ser físico, como os commodities, ou financeiro, como ações ou taxa básica de juro. Seus negócios são direcionados especialmente para a obtenção dos ganhos do capital oriundos das oscilações nos preços dos títulos ou nas taxas de juros (Chesnais, 2005).
Esse mecanismo financeiro tem sido aplicado na produção de alimentos a fim de assegurar remuneração antecipada pela venda ou para não perder recursos com a variabilidade do câmbio. Assim, a mercadoria pode ser vendida por determinado preço hoje e a entrega será no futuro, daí seu caráter meramente especulativo (Mendes, 2012). Com a crise imobiliária de 2008, os alimentos apresentaram destacada importância no mercado de commodities, visto seu caráter de bem necessário, atrativo e estável. Contudo, como resultado, não mais o agricultor tem exercido o papel de controle da sua produção, mas grandes investidores financeiros se transformam em proprietários de milhões de toneladas de alimentos e viram nesse mercado uma oportunidade de especular e aumentar seus lucros (Montaño, 2008), reforçando o círculo vicioso da inflação alimentar (Abrandh, 2013).
Além do mais, atualmente o agricultor não define mais a gestão de sua produção, ele é vulnerável e subordinado às decisões do oligopólio das multinacionais de biotecnologia, que detêm a propriedade privada sobre os insumos agrícolas e sementes, com suas leis de patentes e transgênicos, e o das grandes redes de indústrias e supermercados, que impõem aos agricultores produtos, preços, quantidades e prazos de pagamento, aniquilando a produção local, diversificada e independente. A aposta num modelo agrícola industrial baseado no latifúndio (seja para a produção de alimentos ou agrocombustíveis) tornou o Brasil conivente e submisso a um sistema de importação e exportação que gera amarras ao desenvolvimento local, estando, assim, preso ao chamado neocolonialismo, num esquema de exportação de matérias-primas e importação de produtos industrializados (Ribeiro, 1978; Montaño, 2008).
As políticas de liberalização e desregulamentação que garantiram a ascensão das indústrias alimentícias transnacionais e das cadeias de supermercados possibilitaram a maior disponibilidade, no Brasil, de produtos ultraprocessados, contribuindo para a ocorrência do processo de transição nutricional e epidemiológica no país (Monteiro et al., 2013) que representa um problema de saúde pública que tem crescido vertiginosamente (Popkin; Adair; Ng, 2012). Esses produtos possuem características peculiares, como a hiperpalatabilidade, a comercialização em grandes porções, a durabilidade e o baixo preço aliado a persuasivas estratégias de marketing que favorecem o seu consumo excessivo (Monteiro et al., 2013). É nítido, portanto, que o mercado tem deixado de ser instrumento e passa a ser dominador e doutrinador, utilizando-se das mais diversas estratégias para criar novas necessidades de consumo, lançando produtos e persuadindo o consumidor por meio de promoções, estratégias de preço e de marketing e maior alocação de produtos nas prateleiras dos supermercados (Reardon; Timmer, 2012), em um movimento de provocar desejos excessivos e sempre novos (Zizek, 2008).
Constrangimento e violação do direito à alimentação na fase contemporânea do capitalismo
À primeira vista, o que se pode compreender é que, apesar da existência de causas conjunturais, as causas estruturais da crise alimentar estão intrinsecamente relacionadas aos conflitos e contradições do modo de produção, distribuição e consumo capitalista e sua dinâmica contemporânea em crise. Desde o início do colonialismo, perpassando o cenário mais atual posterior à Revolução Verde, criou-se uma relação de dependência no Brasil com o capital internacional. O investimento e controle em seus vários domínios (terra, sementes, agroquímicos, maquinaria, processamento, transporte, distribuição e comercialização) fazem-se desde a posse dos meios de produção, do domínio da tecnologia, até as políticas fiscais e monetárias, aos subsídios e legislação (Ribeiro, 1978; Abrandh, 2013). Essa dependência às decisões externas leva à perda de soberania do país, incluindo a Soberania Alimentar, cujo conceito defende que
cada nação tem o direito de definir políticas que garantam a Segurança Alimentar e Nutricional de seus povos, incluindo aí o direito à preservação de práticas de produção e práticas alimentares tradicionais. Além disso, há o reconhecimento de que tal processo deve ocorrer em bases sustentáveis, do ponto de vista ambiental, econômico e social (Abrandh, 2013, p. 15).
O conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) figura na legislação brasileira sob a Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, a qual preconiza a
garantia da realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde, que respeitem a diversidade cultural e que seja ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (Art. 3o da Lei nº 11.346/2006).
Ou seja, trata-se de uma estratégia imprescindível à garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), “direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal” (Brasil, 2006, Art. 2o da Lei nº 11.346/2006). Entretanto, observa-se uma série de violações a esse direito quando se entende o alimento constituído como uma mercadoria e que, como tal, não cumpre sua função estruturante da organização social (Poulain, 2004) e ganha a de acumular capital, numa repetição interminável da circulação enquanto tal (Zizek, 2008). A lógica do lucro é capaz de gerar o paradoxo de fazer que alimentos, transformados em commodities, gerem fome e insegurança (Abrandh, 2013).
Nesse sentido, pensar estratégias para garantia de Segurança Alimentar e Nutricional à luz da visão neoliberal é mitigar os efeitos distributivos do modo de produção capitalista. As políticas de transferência de renda, por exemplo, foram instituídas em diversos países, como o Brasil, sob a justificativa de diminuir desigualdades sociais, garantir acesso aos alimentos e buscar diminuir a fome em seu território. Contudo, tais políticas propõem intervenções focalizadas e compensatórias das desigualdades geradas pelo próprio modelo capitalista (Trevisani; Burlandy; Jaime, 2012) e se fortalecem cada vez mais como estratégia de “dinamizar a própria capacidade ociosa do capital” (Faleiros, 2000, p. 75). Ademais, continuam inseridas na dependência da dinâmica do neoliberalismo mundial, ao passo que parecem se enquadrar num processo de conciliação de classes (Teixeira; Pinto, 2012), compartilhando a visão de consumo como única condição para a dignidade social (Behring, 2009). De fato, alguns autores mostram otimismo diante de tais políticas (Teixeira; Pinto, 2012), pois em 2014 o Brasil deixou o mapa da fome mundial (FAO, 2014) e 97% da população passou a se encontrar em segurança alimentar, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) (IBGE, 2014). Todavia, não se enquadram na PNAD moradores de rua, de asilos, orfanatos e presídios, levantando questionamentos sobre a subestimação desses valores de insegurança alimentar. Somado a isso, mesmo o percentual parecendo baixo, são mais de sete milhões de pessoas que passaram por algum tipo de privação de alimentos (IBGE, 2014).
Cabe ressaltar também que a Segurança Alimentar e Nutricional não pode ser reduzida à garantia de uma ração nutricionalmente balanceada (Brasil, 2006), e, para superar isso, as políticas públicas brasileiras ainda parecem distantes, frágeis e incipientes. Isso porque não se amplia a questão da segurança alimentar e nutricional à perspectiva da totalidade, considerando sua relação com uma estrutura social edificada pelo sistema que gira em torno do acúmulo de capital e, sendo assim, não totalmente inclusivo. Uma estrutura onde o Estado tanto não é indiferente, como é motor essencial para a reprodução econômica do sistema capitalista (Mendes, 2012).
É notável o entrelaçamento dos interesses do capital e do Estado frente ao neoliberalismo e a crise do capitalismo, com o Estado exercendo papel de fortalecimento da lógica de valorização e de expansão do capital (Behring, 2009; Oliveira, 1998). Além do mais, a acumulação financeira, alimentada pela dívida pública, ao passo que favorece a fração bancário-financeira gera, posteriormente, pressões fiscais fortes sobre as rendas menores e com menor mobilidade, austeridade orçamentária e paralisia das despesas públicas, agudizando, de modo inexorável, os conflitos sociais (Chesnais, 2005). No caso brasileiro, a dominação pelo capital portador de juros sustenta uma política econômica restritiva – metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante – que subordina o desenvolvimento social no país (Mendes, 2012). Diante de um cenário que constrange o Estado brasileiro, é possível observar que a Segurança Alimentar e Nutricional, como política social, evidencia certa inconsistência na defesa da Soberania Alimentar e à efetivação do Direito Humano à Alimentação Adequada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Almejou-se mostrar neste artigo como o cenário de crise no sistema alimentar precisa ser vislumbrado sob uma ótica mais ampla de crise estrutural do capitalismo, como resultado da dinâmica contraditória do modo de produção capitalista sob dominância do capital portador de juros e sua face mais perversa do capital fictício. Os embates e constrangimentos ao Estado na consolidação da Segurança Alimentar e Nutricional para a defesa da Soberania Alimentar e garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada frente a uma estrutura social edificada pelo sistema que gira em torno do acúmulo de capital impõem desafios importantes no campo da saúde pública e na garantia de direitos humanos.
O círculo vicioso e tendencioso que a economia alimentar capitalista reproduz instiga o apetite por novidades embaladas de baixo custo e cria a demanda pela praticidade e assim justifica um modelo de produção, consumo e distribuição desigual e injusto. E longe de erradicar a fome, mas defendendo esse fim, constitui industrial e geneticamente tudo que inapropriadamente é chamado de comida. Não há liberdade de escolha e soberania alimentar em um sistema onde praticamente todos os alimentos são provenientes de algumas poucas empresas transnacionais que controlam o que, como, onde e por qual preço serão produzidos e distribuídos, fruto do interesse em transformar alimento em mercadoria, capital especulativo e lucro, e não um direito.
No atual contexto sócio-histórico, em que não parece ser possível uma sociedade sem Estado ou mercado, é preciso que sejam aprofundadas as discussões para a construção de uma sociedade capaz de controlá-los de maneira que respondam ao coletivo e busquem assegurar a justiça social. O sistema alimentar deve ser pautado em um conjunto de estruturas tecnológicas e sociais que, da coleta até a cozinha, permite que o alimento seja reconhecido como comestível do ponto de vista biológico ao cultural. É preciso que a discussão seja ampliada e que a alimentação seja vista, acima de tudo, como um ato político.
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