Carlos Bocuhy – Hoje são 60 milhões de pessoas expostas a índices perigosos de calor
Penso que estamos cegos. Cegos que veem.
Cegos que, vendo, não veem.
José Saramago
A humanidade se acostumou a nomear furacões e outros eventos extremos com nomes próprios, como Katrina e Andrew, que devastaram o Caribe e a Lousiana (USA). Com as mudanças climáticas, os meteorologistas começaram a batizar também eventos de extremo calor.
O atual, que se abateu sobre a Europa, foi batizado pela Sociedade Meteorológica Italiana de Cérbero, o monstro de três cabeças infernal da Divina Comédia de Dante Alighieri. Para a semana que entra, a nova onda de calor, ainda mais escaldante, com temperaturas acima de 40 °C, já foi batizada de Caronte, o barqueiro que entregava almas ao submundo na mitologia grega. A prática de nominação oficial teve início na cidade de Sevilha, Espanha, com a onda de calor Zoe, em 2022.
Parece ser fina ironia dos climatologistas nominar a atual onda de Caronte, o transportador de almas para o mundo dos mortos, e Cérbero, o monstro que as impede de voltar. Retratam o drama do caos climático: o transporte da humanidade para um plano desconhecido e desafiador, sem possibilidade de retorno.
Hoje são 60 milhões de pessoas expostas a índices perigosos de calor. Há uma enorme incongruência com relação à causa e efeito: no norte da China os termômetros marcaram 52 °C, mas o país continua a turbinar o aquecimento global com a mais elevada queima de carvão de sua história. Cidades como Hangzhou, Wuhan e Shijiazhuang anunciaram a abertura de abrigos subterrâneos antiaéreos para moradores que buscam escapar do calor.
O Vietnã, com 30% de sua matriz energética dependente do carvão, respondeu aos protestos da sociedade colocando na prisão seus principais ativistas, entre os quais a jornalista Mai Phan Loi, que acompanhava os compromissos do governo vietnamita em desenvolvimento sustentável.
Os Estados Unidos avançam para a exploração de petróleo no Ártico, enquanto o Vale da Morte (Califórnia) registrou na semana passada 53 °C. Em Phoenix, Arizona, o calor matou pelo menos 18 pessoas e mais 69 mortes estão sob investigação. Seja no Arizona ou em Veneza (Itália), pessoas estão recebendo tratamento para fortes queimaduras em função de quedas ou de tocar superfícies muito quentes.
Em algumas áreas da Europa, idosos não podem mais sair de casa, sob pena de danos à saúde, muitas vezes letais. O calor se tornou a nova Covid. As temperaturas escaldantes forçam governos a tomar medidas extraordinárias determinando ações de assistentes sociais para tentar protegê-los.
Entregar comida a 45 °C passou a ser atividade insalubre em Nova York, e trabalhadores que executam tarefas em espaços abertos tiveram que deixar de trabalhar. Rodovias, ruas e atividades agrícolas se tornaram proibitivas.
O turismo está sendo duramente atingido: Atenas, Roma e Madri registram turistas passando mal em razão do calor e da insolação. Na ilha de Rodes, cerca de 2 mil turistas foram evacuados na última sexta-feira para fugir dos incêndios que deslocaram 30 mil pessoas de suas residências.
Em Pequim, um guia turístico desmaiou e morreu de insolação enquanto fazia um tour pelo Palácio de Verão. Em pistas escaldantes de aeroportos, manipuladores de bagagem trabalham sob risco e exaustão. Três impecáveis guardas britânicos desmaiaram em Londres durante evento oficial. E em Nápoles dois jogadores de futebol não resistiram ao calor e faleceram depois do jogo.
O calor afeta duramente ecossistemas naturais. As florestas boreais e resinosas do Canadá praticamente explodem em chamas por causa da secura e do calor que reverbera em aproximadamente 570 incêndios sem controle. Lançam na atmosfera material particulado que afeta a qualidade do ar em escala continental, cobrindo grande parte do nordeste norte-americano. A pluma de poluição já foi medida na Europa, do outro lado do Atlântico.
Os oceanos estão sendo drasticamente alterados por migrações descontroladas de espécies que buscam áreas com mais oxigênio. No golfo do México, as mortandades de peixes pelo excessivo calor são constantes.
Segundo Craig Donlon, chefe da Seção de Superfícies Terrestres e Interior da Agência Espacial Europeia, esta é uma situação global realmente surpreendente porque o aquecimento adicional da superfície que vemos neste momento acabará sendo misturado à coluna de água do oceano: “Parte desse excesso de calor chegará ao Oceano Ártico por meio de correntes oceânicas através do Estreito de Fram e do Mar da Noruega, exacerbando ainda mais o desaparecimento do gelo marinho do Ártico”.
Nesta semana, a NASA divulgou previsões climáticas apontando para “mudanças sem precedentes no mundo todo”. O climatologista-chefe Gavin Schimidt afirmou que julho de 2023 será o mês mais quente da história. Caronte, a onda de calor que sucederá Cérbero, parece ser amostra grátis diante dos cenários projetados em estudos divulgados na revista Nature Sustainability, que traça perspectivas para o aquecimento de 2,7 °C, que elevaria o contingente de exposição par 2 bilhões de pessoas em locais com temperaturas médias anuais acima de 29 °C.
O estudo, intitulado “Quantificando os custos humanos do Aquecimento Global”, aponta que, a partir de 1,5 °C, a cada décimo de grau centígrado a mais haverá exposição de 120 milhões de pessoas ao calor extremo. As instituições autoras, entre as quais estão Potsdam Institute for Climate Impact Research, universidades de Washington, Carolina do Norte, Aarhus e Wageningen, afirmam que a ação rápida da humanidade para reduzir as atuais emissões evitaria os piores impactos.
Não falta constatação científica. As legislações e o ativismo avançam, enquanto os governos empacam. Na França, o artigo 7º da lei de 22 de agosto de 2021, conhecida como Clima e Resiliência, proíbe “a publicidade relativa à comercialização ou promoção de combustíveis fósseis”. A lei deveria ter entrado em vigor em agosto de 2022, mas permanece no limbo, aguardando decreto regulamentador.
É incompreensível que, dado o conhecimento acumulado sobre o estado de arte da atmosfera global e os fortes impactos climáticos, a humanidade se mantenha no imobilismo da diplomacia inócua, conforme retratam decisões mornas das cúpulas climáticas globais.
A cegueira conveniente e seletiva, conforme Saramago afirma em seu Ensaio sobre a cegueira, apreende a superficialidade, sem profundidade ou problematização resolutiva. Esse imobilismo inaceitável já se arrasta demasiadamente. De forma urgente a humanidade tem de achar meios eficientes para se defender da incompetência e dos interesses econômicos e geopolíticos que patrocinam a inação climática.
Fonte da matéria: Dando nome à fritura climática – Le Monde Diplomatique – https://diplomatique.org.br/dando-nome-a-fritura-climatica/
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