EconomiaInternacional

Boa noite, Cinderela

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Ladislau Dowbor – Fraudes. Propinas para políticos. Manipulações. Um estudo devastador sobre o sistema financeiro revela como, por trás dos anúncios cheios de pessoas felizes, os bancos sugam a riqueza social

Às vezes precisamos de um espelho. Com o grau de deformação ideológica dos argumentos quando se trata da realidade brasileira, é bom dar uma olhada como todo o debate sobre o resgate do sistema financeiro está se dando no resto do mundo. Não somos uma ilha, e muito menos o nosso sistema financeiro, ainda que aqui algumas deformações sejam muito maiores. Hoje já não podemos ignorar o sólido acervo de pesquisas, que deslancharam após a crise de 2008, e que mostram a que ponto o sistema financeiro se distanciou dos seus objetivos iniciais de financiar o investimento e o crescimento econômico. Aqui apresentamos a excelente pesquisa de Epstein e Montecino sobre o sistema americano, organizando as ideias chave, e este espelho gera um impressionante efeito de ver na imagem refletida a sombra dos nossos dramas.

O estudo de Epstein e Montecino oferece uma visão de conjunto do impacto econômico da intermediação financeira, tal como funciona nos EUA. O sistema não só não fomenta a economia, como a drena. O título, Cobrando demais: o alto custo da alta finança, já diz tudo, e pela primeira vez temos aqui uma visão sistêmica e integrada do quanto custa à economia americana uma máquina financeira que se agigantou e se deformou radicalmente. Hoje não fomenta a economia, pelo contrário, inibe-a, gerando mais custos do que estímulo produtivo. A pesquisa faz parte de um conjunto de iniciativas do Roosevelt Institute, que tem como economista chefe Joseph Stiglitz, prêmio “Nobel” de economia, e que já foi economista chefe do governo Clinton e do Banco Mundial.

Esta pesquisa tem muita importância para nós no Brasil, pois o sistema financeiro internacional funciona aqui a pleno vapor, e a cultura da intermediação financeira não varia muito entre a City de Londres, Wall Street ou o sistema de usura que se implantou no Brasil. Hoje existe uma cultura financeira global. No nosso caso, o desajuste fica evidente quando constatamos que em 2015 o PIB recuou de 3,8%, enquanto no mesmo período o lucro declarado do Bradesco aumentou em 25,9%, e o do Itaú aumentou em 30,2%. A máquina financeira está vivendo às custas da economia real. Nosso sistema de intermediação financeira não serve a economia, dela se serve. É produtividade líquida negativa. Ajuda, e dá confiança às nossas pesquisas aqui no Brasil, esta constatação lapidar do próprio Stiglitz: “Enquanto antes as finanças constituíam um mecanismo para colocar dinheiro nas empresas, agora funcionam para extrair dinheiro delas.”i

Há pessoas que têm dificuldade em imaginar um grande banco internacional achacando os seus clientes, e imaginam que nos EUA as coisas seriam sérias, quanto mais na Europa. É preciso aqui lembrar algumas coisas óbvias. Por fraude com milhões de clientes, o Deutsche Bank foi condenado em setembro de 2016, pela justiça americana, a uma multa de 14 bilhões de dólares (uma vez e meia o orçamento anual do Bolsa Família, que tirou 50 milhões de pessoas da miséria, só para dar uma ordem de grandeza dos tamanhos das fraudes bancárias). É bom lembrar que um banco tão sério como Citigroup já foi condenado a pagar US$ 12 bilhões (fechou por US$ 7 bilhões), Goldman Sachs está pagando $ 5,06 bilhões, JPMorgan Chase&Co está pagando US$ 13 bilhões, o Bank of America US$ 16,7 bilhões. Os crimes são dos mais diversos tipos, desde fraude nas informações aos clientes até falsificações dos mais diversos tipos, depenando clientes, enganando o fisco, falsificando informações sobre taxas de juros e semelhantes.ii

Todos ouviram falar da financeirização, mas poucos se dão conta da profundidade da deformação generalizada dos processos econômicos, sociais e ambientais que resultam da migração dos nossos recursos do fomento econômico através de investimentos, para ganhos improdutivos através de aplicações financeiras. Inclusive, os bancos e a mídia chamam tudo de “investimento”, parece mais nobre do que aplicação financeira ou especulação. A revista Economist até inventou a expressão “speculative investors” e Stiglitz sente-se obrigado a se referir a “productive invesments” para diferenciar. Mas não há como escapar desta realidade simples: quando você compra papéis, eles podem render, mas você não produziu nada. E abrir uma empresa, contratar trabalhadores, produzir e pagar impostos é mais trabalhoso do que por exemplo aplicar em papéis da dívida pública. O primeiro estimula a economia, o segundo gera rendimentos sem contrapartida, e a partir de um certo nível torna-se um peso morto sobre as atividades econômicas em geral.

Voltando ao artigo de Epstein e Montecino, em termos de funcionalidade econômica os autores se referem a uma “spectacular failure”: “Um sistema financeiro saudável é aquele que canaliza recursos financeiros para investimento produtivo, ajuda as famílias a poupar para poder financiar grandes despesas tais como educação superior e aposentadorias, fornece produtos tais como seguros para ajudar a reduzir riscos, cria suficiente quantidade de liquidez útil, gere um mecanismo eficiente de pagamentos, e gera inovações financeiras para fazer todas estas coisas úteis de forma mais barata e efetiva. Todas estas funções são cruciais para uma economia de mercado estável e produtiva. Mas depois de décadas de desregulação, o sistema financeiro atual dos EUA se tornou um sistema altamente especulativo que falhou de maneira bastante espetacular em realizar estas tarefas críticas.”(1)

Do lado das alternativas, é resgatar o sistema de regulação, reestruturar o sistema para que sirva a economia e não dela se sirva apenas, e gerar sistemas alternativos de intermediação financeira para que as pessoas voltem a poder ter escolha: “Esses custos excessivos das finanças podem ser reduzidos e o setor financeiro pode de novo jogar um papel mais produtivo na sociedade. Para alcançá-lo, precisamos de três enfoques complementares: melhorar a regulação financeira, aproveitando o que a [lei] Dodd-Frank já conseguiu; uma reestruturação do sistema financeiro para que sirva melhor as necessidades das nossas comunidades, pequenos negócios, famílias, e entidades públicas; e alternativas financeira públicas, tais como bancos cooperativos e bancos especializados, para equilibrar o jogo.” (3)

Como foi se deformando o sistema financeiro, que atualmente impõe enormes custos para a economia real, obrigada a sustentar uma imensa superestrutura especulativa? “Mostramos como a indústria de gestão de recursos (assets) cobra taxas excessivas e traz retornos medíocres para as famílias que buscam poupar para a aposentadoria; como empresas privadas de gestão de ações se apropriam de níveis excessivos de pagamentos dos fundos de pensão e outros investidores enquanto frequentemente penalizam os salários e oportunidades de emprego dos trabalhadores nas empresas que compram; como os fundos especulativos (hedge funds) apresentam mau desempenho; e como emprestadores predatórios exploram algumas das pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade. Olhando desta maneira desde abaixo, podemos ver de forma mais clara como os níveis de excessos de cobrança (overcharging) que identificamos no nível macro se organizam de maneira prática.” (3)

O resultado prático é que os trilhões de dólares captados pelo sistema de intermediação financeira e os diversos fundos representam em termos líquidos um dreno para a economia americana. Este sistema, como no Brasil, representa uma produtividade negativa, e gera ganhos líquidos sem contrapartida produtiva correspondente: “Assim, as finanças têm operado nestes últimos anos um jogo de soma negativa. Isto significa que nos custa mais do que um dólar transferir um dólar de riqueza para os financistas – significativamente mais. Por isso, mesmo que você pense que os nossos financistas merecem cada centavo que conseguem, sairia muito mais barato simplesmente enviar-lhes um cheque todo ano do que deixá-los continuar a tocar os negócios como sempre.”(4)

Bancos pequenos e médios nos EUA continuaram a desempenhar as suas atividades de commercial banking, mas dez gigantes passaram a dominar o sistema financeiro, concentrando-se em outros produtos, essencialmente especulativos. Este grupo dominante, segundo a pesquisa, concentrou-se “em novos produtos e práticas ligadas à crise financeira – inclusive securitização, derivativos e comércio proprietário (proprietary trading), tudo financiado por empréstimos de muito curto prazo.”(10) A oligopolização é aqui central, apoiada não só na não-transparência dos produtos, como no seu poder político de obter subsídios (o que, no Brasil, a taxa Selic elevada). Trata-se “do poder monopolístico ou oligopolístico que as instituições financeiras podiam exercer por meio de produtos financeiros não transparentes, bem como da facilidade de acesso a volumes maciços de capital por causa dos subsídios devidos à sua condição de ‘grandes demais para quebrar’”.(19)

Segundo os autores, os numerosos bancos menores nos EUA terminam sendo tributários destes gigantes: “Os grandes bancos de Wall Street estão no epicentro do sistema financeiro. Como resultado, praticamente todos os aspectos dominantes das finanças que discutimos até aqui – hedge funds, ativos privados, créditos predatórios, mercado hipotecário e o chamado sistema de ‘bancos das sombras’ (shadow banking) – todos estão ligados até certo ponto com os grandes ‘core banks’.” Por sua vez, estes grandes bancos passam a exercer um poder político que torna qualquer reforma pouco viável: “No caso da reforma financeira, o poder que o setor financeiro exerce sobre o processo político tem sido uma força com a qual é difícil lidar.”(41)

Esta pirâmide de poder, tanto sobre o conjunto do sistema financeiro, envolvendo até os pequenos bancos comerciais locais ou regionais, como sobre o processo decisório político que deveria permitir a regulação, permitiu a estruturação de uma máquina que extrai recursos da economia de maneira desproporcional relativamente ao seu aporte produtivo. “Precisamos enfatizar o fato que na nossa análise, estamos estimando os custos líquidos (ênfase dos autores) do nosso sistema financeiro: os custos que ultrapassam de longe o que um sistema financeiro eficiente deveria custar à sociedade. As rentas financeiras medem quanto a mais os clientes e pessoas que pagam impostos têm de pagar aos banqueiros para ter direito aos serviços (benefícios) que recebem. Os custos de má alocação medem os custos de termos um crescimento econômico menor do que teríamos se as finanças tivessem uma dimensão otimizada e funcionassem de maneira eficiente. Estes custos são líquidos no sentido de que o cálculo reconhece que o sistema financeiro cria benefícios significativos, mas que estes benefícios seriam maiores se o sistema operasse em escala correta e de maneira correta. Finalmente, os custos da crise financeira constituem um custo líquido no sentido de que medem quanta produção foi perdida relativamente ao que seria possível se não tivéssemos tido a crise financeira.”(14)

O conceito de custo líquido do sistema financeiro é muito útil, pois envolve diretamente a questão da produtividade sistêmica das finanças de um país. Para o Brasil, considerando os custos da crise 2015/2016, da qual o sistema financeiro foi a causa principal, podemos igualmente calcular o custo sistêmico. No caso americano, os autores consideram que “precisamos incorporar os custos das crises financeiras associadas com a especulação excessiva e as atividades econômicas destrutivas que são agora bem compreendidas, no sentido de terem sido chave na crise econômica recente.” (16) A diferença é que nos EUA se reconhece as raízes da crise financeira de 2008, enquanto aqui se atribui a crise ao ridículo déficit fiscal, de menos de 2% do PIB. O rombo na realidade é criado pelo nível surrealista de juros sobre a dívida pública, a taxa Selic, que só no ano de 2015 significou uma transferência de 501 bilhões de reais, 9% do PIB, dos nossos impostos para os grupos financeiros.iii

O conceito de renta financeira (financial rent) é importante, e o próprio conceito de “renta”, diferente de renda, tem de ser introduzido nas nossas análises no Brasil. O fato é que a “renta” como forma de acesso aos recursos sem a contribuição produtiva correspondente ajuda a entender o processo (no Brasil, curiosamente, utilizamos a expressão “rentismo” mas não existe ainda o conceito de “renta”). Em inglês se distingue claramente o mecanismo produtivo que gera a renda (income) e a aplicação financeira que gera “renta” (rent). Em francês é igualmente clara a diferença de “revenu” e “rente”, respectivamente. Não há como entender por exemplo os trabalhos do Piketty sem esta distinção. Segundo os autores, “no caso das finanças modernas, as rentas vêm em duas formas básicas: uma é o pagamento excessivo feito aos banqueiros – top traders, CEOs, engenheiros financeiros e outros empregados de bancos e outras instituições financeiras com altas remunerações; a outra forma são os lucros excessivos, ou retornos muito acima dos retornos de longo prazo que são distribuídos aos acionistas como resultado dos serviços financeiros providenciados por uma empresa.” Os ganhos financeiros deste tipo agigantam-se a partir dos anos 1990. (17, 19)

Os custos destas atividades rentistas que travam as atividades econômicas em vez de promovê-las, têm de ser suportados pela sociedade: “O custo das finanças para a sociedade não é apenas o resultado de transferências de renda e riqueza da sociedade como um todo para as finanças; há custos adicionais se a mesma finança mina a saúde da economia para as famílias e os trabalhadores.”(22) Uma citação interessante trazida pelos autores é a de James Tobin, já em 1984: “Estamos jogando um volume cada vez maior dos nossos recursos, inclusive a nata da nossa juventude, em atividades financeiras distantes da produção de bens e serviços, em atividades que geram retornos privados elevados sem proporção com a sua produtividade social.”

Tobin foi um dos primeiros a constatar esta deformação sistêmica da intermediação financeira.(23) Tenho encontrado esta citação em outros textos, pois é muito relevante, inclusive pelo uso do conceito de “produtividade social”, ou seja, utilidade para a economia e a sociedade em geral, e não apenas para o banco ou outro grupo que desempenha uma atividade. O conceito de SROI – Social Return on Investment – começa também a ser utilizado mais amplamente. No nível pessoal, inclusive, muitos profissionais começam a se perguntar se, independentemente de quanto ganham, a atividade que desempenham é socialmente útil. E quando é claramente nociva, surgem as contradições e as crises existenciais, como estudado por exemplo no excelente Swimming with Sharks, de Luyendijk, focando os altos funcionários da City de Londres.iv Não são aqui divagações filosóficas, as pessoas querem cada vez mais que os seus esforços façam sentido.

A realidade é que o desvio dos recursos das atividades produtivas para ganhos especulativos trava o conjunto da economia, mas a indignação fica restrita pela simples razão que o sistema é extremamente opaco. Os autores aqui são conscientes desta dificuldade, e aproveitam para mostrar que diversas pesquisas sobre os sistemas financeiros convergem pra as mesmas conclusões: “Os sistemas financeiros privados de maiores dimensões podem ser associados com ‘finanças especulativas’, trading em maior escala, e um setor pouco associado ao fornecimento de crédito à ‘economia real’. Como argumenta Stiglitz, estes sistemas financeiros podem se orientar para a extração de recursos da economia real, e não para colocar mais recursos na economia real (ver também Mason, 2015). Este tipo de sistema financeiro pode muito bem se orientar para investimentos de curto prazo (Haldane, 2011) e empregar o que William Lazonick chama de estratégia de “desinvestir e distribuir” em vez de “reter e reinvestir”, o que significa que mais recursos são extraídos das empresas não-financeiras. Esta orientação deve também reduzir o crescimento da produtividade e o investimento, e em consequência o crescimento econômico.”(23)

O texto de Mason mencionado, também excelente leitura, constata que “as finanças já não são um instrumento para colocar dinheiro em empresas produtivas, mas em vez disto para delas tirar dinheiro.”(3) Segundo o autor, nos anos 1960 e 1970 cada dólar de ganhos e crédito suplementares levava a um aumento de investimentos da ordem de 40cents. Desde os anos 1980 leva a um aumento de apenas 10 cents. É uma mudança radical em termos de produtividade das aplicações financeiras. Segundo Mason, “isto resulta de mudanças legais, administrativas e estruturais que são a consequência da revolução dos detentores de ações nos anos 1980. No modelo administrativo anterior, mais dinheiro que entra numa empresa – por vendas ou por crédito – tipicamente significava mais dinheiro colocado em investimento fixo. No novo modelo dominado pelo rentismo, mais dinheiro que entra significa mais dinheiro saindo para as mãos de detentores de ações sob forma de dividendos e recompra de ações.”(Mason,1)v Como os dividendos são pouco taxados pelo sistema tributário – o que foi conseguido pela capacidade de pressão política – o círculo da financeirização e da riqueza não produtiva se fecha.

O novo sistema de intermediação financeira gerou também uma massa de advogados, conselheiros, contadores, gestores de fundos e semelhantes, todos ávidos maximizar os retornos e os bônus correspondentes. “Os serviços de gestão de riqueza cresceram de um universo de 51 empresas administrando US$ 4 bilhões, em 1940, para mais de US$63 trilhões em riqueza (assets) com mais de 11 mil consultores e quase 10 mil fundos mútuos registrados com o SEC em 2014”. (41) Para efeitos de comparação, lembremos que o PIB mundial de 2014 é da ordem de US$ 75 trilhões. Esta massa de profissionais gerou por sua vez um cluster importante de poder, com forte influência, em particular, no conjunto da comunicação financeira na grande mídia, que apresenta quase que exclusivamente a visão dos interesses dos grandes grupos financeiros.

No nosso caso brasileiro não dispomos de estudos correspondentes sobre a estrutura de intermediação e de poder político que estes interesses geram, capaz de atropelar qualquer tentativa de reduzir os seus lucros. Mas é evidente que quando o governo Dilma tentou reduzir os juros absurdos (tanto sobre a dívida pública como para pessoas jurídicas e pessoas físicas) em 2013, partiram para a guerra total. O fato é que o mundo financeiro e os rentistas reagiram em bloco, movimento por sua vez aproveitado por diversas esferas de oportunismo político. O paralelo com os Estados Unidos é neste sentido interessante, quando se viu os imensos recursos públicos que o governo transferiu para os bancos a partir de 2008. Não é só aqui que o sistema financeiro se tornou a força política maior.

Como foi que chegamos a este nível de deformação do sistema financeiro, que já foi tão essencial para os processos produtivos e hoje os trava? Os autores identificam cinco mecanismos: “Como no caso da maior parte das finanças, as chaves para rentas excessivas obtidas pelas empresas financeiras e traders são: 1) a opacidade, frequentemente criada de maneira deliberada, por meio de excesso de complexidade, falta de transparência (disclosure), ou mais diretamente informação enganosa que é facilitada pelo frágil marco regulatório; 2) elevada concentração do mercado dentro de linhas específicas de negócios levando a que haja pouco competição; 3) subsídios governamentais de vários tipos, inclusive resgates (bailouts), impostos subsidiados, facilidade nas regras contábeis, e vantagens legais criadas por arranjos legislativos, administrativos ou legais; 4) retirada de provisões públicas que geram um mercado aberto para as finanças e torna a população vulnerável a todos esses canais com excessos de renda e de retornos; 5) regulamentação fiduciária fraca que permite que floresçam conflitos de interesses.”(35)

A parte de baixo da sociedade é a que sustenta o maior choque desta reorganização:

“As famílias recebem informações falsas e caras por parte de conselheiros que têm um incentivo para enganar (mislead) e que podem fazê-lo graças a um ambiente legal e regulatório permissivo.” (36) Isto por sua vez gera o aprofundamento das desigualdades: “Práticas e rendimentos financeiros têm contribuído muito para a desigualdade de renda e de riqueza nos EUA nas recentes décadas. Além disso, algumas práticas financeiras contribuem para a criação e manutenção da pobreza. Em nenhum lugar estas conexões entre finanças, desigualdade e pobreza são mais aparentes do que na provisão de serviços bancários para os pobres e para famílias em dificuldades financeiras.”(40) Aqui, o paralelo com os juros extorsivos nos crediários e nos bancos no Brasil é evidente, sendo que no nosso caso, com juros de três dígitos, as distorções são simplesmente muito mais escandalosas.

Para os autores, a necessidade de uma profunda reorganização do sistema financeiro torna-se óbvia: “De forma geral, para enfrentar as questões aqui levantadas, referentes aos enormes custos do nosso sistema financeiro corrente, precisamos de três abordagens complementares: regulação financeira, reconstrução financeira, e alternativas financeiras…Para atingir estes objetivos, precisaremos provavelmente de uma nova lei Glass-Steagall para eliminar a rede de segurança social de que gozam as atividades financeiras altamente especulativas, limites mais estritos quanto à alavancagem e tamanho dos bancos de forma a dividir (break up) as instituições financeiras maiores e mais perigosas, e uma regulação mais rigorosa para limitar quanto se paga por estas atividades de alto risco.”(43/43)

E temos a consequente reformulação dos objetivos do sistema financeiro, para que volte a ser útil (e não mais prejudicial) para a economia e para a sociedade: “Nosso sistema financeiro precisa ser reestruturado de forma que sirva melhor as necessidades das nossas comunidades, pequenos negócios, famílias, e entidades públicas, tais como municípios e estados. Eliminar os subsídios dos bancos ‘grandes demais para quebrar’ ajudará a abrir espaço para instituições financeiras menores e mais orientadas para as necessidades das comunidades; no entanto, é pouco provável que isto permita gerar um número suficiente de instituições financeiras para apoiar as necessidades das nossas comunidades. Como resultado, é provável que necessitemos de um número maior de alternativas financeiras: bancos públicos, bancos cooperativos, e bancos especializados tais como osgreen banks e bancos para infraestruturas”.(43)

Os avanços deste tipo de pesquisas nos Estados Unidos reforçam a necessidade de procedermos ao estudo do fluxo financeiro integrado no Brasil, buscando o resgate da função econômica da intermediação financeira nas suas diversas dimensões.


i Stiglitz, Rewriting the Rules of the American Economy, pode ser encontrado na íntegra em http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2015/06/report-stiglitz.pdf

ii O Guardian de 16 de setembro de 2016 traz um pequeno resumo, veja aqui ; no Financial Times é assunto cotidiano, como por exemplo é o caso de manipulações atingindo 2 milhões de clientes por parte do banco Wells Fargo, noticiado na edição de 20/09/2016 do FT e reproduzido no Guardian da mesma data.

iii Ver o nosso estudo correspondente do sistema financeiro no Brasil, em Resgatando o potencial financeiro do país:http://dowbor.org/2016/08/ladislau-dowbor-resgatando-o-potencial-financeiro-do-pais-versao-atualizada-em-04082016-agosto-2016-47p.html/ .

iv Joris Luyendijk – Swimming with sharks – Guardian Books, London, 2015 http://www.theguardian.com/business/2015/sep/30/how-the-banks-ignored-lessons-of-crash

v J.W. Mason –Disgorge the Cash – Roosevelt Institute, 2015 –http://rooseveltinstitute.org/wp-content/uploads/2015/09/Disgorge-the-Cash.pdf

Boa noite, Cinderela

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