Economia

Qual é o segredo: o golpismo é bom para os negócios ou os negócios são golpistas?

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Luis Fernando Novoa Garzon – De­pois da epi­fania de que o pe­sa­delo ne­cro­po­lí­tico no Brasil aca­baria nas exatas mar­ca­ções do ca­len­dário elei­toral, ba­temos com a cara no muro. Cho­cados com a ope­ra­ci­o­na­li­zação en­co­berta do es­cracho das sedes dos Três Po­deres em Bra­sília, que atestou tanto o de­sa­li­nha­mento in­terno destes como o ex­tra­va­sa­mento ins­ti­tu­ci­onal de ou­tros po­deres ma­ni­fes­ta­mente in­su­bor­di­ná­veis. Os pro­cessos cri­mi­nais e ad­mi­nis­tra­tivos en­vol­vendo os atos pró-gol­pistas criam a ilusão de uma res­posta pro­por­ci­onal e pre­ven­tiva. Evo­lu­ci­o­nistas ins­ti­tu­ci­o­nais con­victos afirmam que o ma­logro da ur­di­dura do golpe teria sido um su­cesso no sen­tido de va­cinar o corpo po­lí­tico contra novos ata­ques.

O avanço per­mi­tido é para trás, tal como um trau­ma­ti­zado An­gelus que, avis­tando adi­ante o ho­ri­zonte da fas­cis­ti­zação da es­fera po­lí­tica, aninha-se in­con­di­ci­o­nal­mente entre os dis­po­si­tivos ul­tra­li­be­rais e pós-so­ciais que estão na origem da­quele mesmo pavor an­te­visto. Deste modo, os con­tro­la­dores e re­pli­ca­dores desta ordem con­vul­siva apro­fundam a pe­re­ni­dade de suas fór­mulas de ex­ceção, di­tando o que se­riam marcos pre­ten­sa­mente inar­re­dá­veis da ma­tu­ri­dade do país, que por sua vez têm como con­dição a sua nor­ma­li­zação fi­nan­ceira (“fi­nan­cial de­e­pe­ning”).

Na forma de uma in­ter­mi­nável ma­tri­oshka, a con­dição da con­dição do en­rai­za­mento ju­rí­dico dos re­qui­sitos do sis­tema fi­nan­ceiro é a cons­ti­tu­ci­o­na­li­zação da ma­cro­e­co­nomia ul­tra­li­beral e de sua pro­pa­lada “am­bi­ência pró-in­ves­ti­mentos”. Du­vi­dável bônus da dú­vida: ou se trata de con­dição para o fim das tu­telas mi­litar, pa­ra­mi­litar e dos mer­cados, ou seria a pró­pria con­sa­gração de todas estas tu­telas.

A le­ni­ência in­finda com Bol­so­naro, seja du­rante seu man­dato pre­si­den­cial, seja neste mo­mento, não é gra­tuita. Não há agente de mer­cado no Brasil que des­denhe tanto es­forço feito nos úl­timos anos para su­primir obri­ga­ções so­ciais e mar­gens de dis­cri­ci­o­na­ri­dade não mer­cantil sobre o or­ça­mento e as fi­nanças pú­blicas. Como po­demos qua­li­ficar agentes econô­micos que pro­metem caos re­do­brado se pri­vi­lé­gios ad­qui­ridos e/ou pro­me­tidos no pro­grama “Ponte para o Fu­turo” (2017-2018), de­pois trans­mu­tado em “Plano Mais Brasil” (2019-2022), forem ame­a­çados?

O re­gime de ex­ter­mínio so­cial, com seus três ve­tores de des­truição co­le­tiva – des­vin­cular, de­so­brigar, de­sin­dexar – con­tinua apre­sen­tando-se como in­dis­pen­sável. Exemplo disso é o po­si­ci­o­na­mento re­cente de eco­no­mistas-chefe de dois bancos emer­gentes no sis­tema fi­nan­ceiro bra­si­leiro. Ambos com­provam como é van­ta­joso o in­ter­câmbio fun­ci­onal entre as altas fi­nanças e agên­cias pú­blicas que de­ve­riam re­gulá-las. Uti­li­zarei co­mu­ni­cados ofi­ciais feitos por eles logo após a ope­ração alo­prada dos ex­tre­mistas de plantão apenas para ilus­trar o ar­gu­mento aqui ex­posto.

O ne­gócio do ne­o­fas­cismo e o gol­pismo por ou­tros meios

No dia 9 de ja­neiro, Caio Me­gale, eco­no­mista-chefe da XP, apa­ren­te­mente desvia o as­sunto cha­mando a atenção para o que seria fun­da­mental na­quele mo­mento: “a busca pelo equi­lí­brio fiscal sus­ten­tável” (1). Paso doble para manter a pressão e a ur­gência: o que não vier pelas armas, que venha pela chan­tagem dos juros as­so­ciada a re­vo­adas es­pe­cu­la­tivas. Eis a pro­fecia au­to­cum­prida lan­çada pela XP: “Desde o início das ne­go­ci­a­ções da PEC [da tran­sição], as taxas de juros nos mer­cados fu­turos su­biram quase quatro pontos per­cen­tuais – com um im­pacto es­ti­mado de R$ 160 bi­lhões no ser­viço da dí­vida. A equipe de eco­nomia da XP pro­jeta alta de 10 pontos per­cen­tuais da re­lação dí­vida/PIB nos pró­ximos dois anos”.

A chan­tagem sobre o que pode e deve ser o vin­douro “re­e­qui­lí­brio fiscal sus­ten­tável” é uma fór­mula re­cor­rente nos co­mu­ni­cados de se­ques­tra­dores aos fa­mi­li­ares das ví­timas no que toca ao res­gate de­vido: “A in­cer­teza pres­siona os ativos fi­nan­ceiros, man­tendo juros mais ele­vados e taxa de câmbio mais des­va­lo­ri­zada do que o ade­quado para o país”.

As ame­aças en­vi­e­sadas pros­se­guem: “O teto era o pri­meiro passo de um pro­cesso mais pro­fundo de ajuste. En­quanto ele fun­ci­o­nava, era pre­ciso avançar em des­vin­cular, de­sin­dexar e de­so­brigar a es­tru­tura de gastos pú­blicos no país, sob pena da pressão dos gastos obri­ga­tó­rios e in­ves­ti­mentos acabar por im­plodir o teto”.

Na ver­dade, o la­mento em­bute o que seria uma so­lução de con­ti­nui­dade da po­lí­tica econô­mica de Guedes, a mesma que apro­fundou o apartheid so­cial do país, pro­duziu uma ca­tás­trofe so­cial e sa­ni­tária du­rante a pan­demia e fez vir à tona ra­cismos e su­pre­ma­cismos de toda ordem. Como se esta po­lí­tica não ti­vesse sido der­ro­tada nas urnas. O que de­monstra que mer­ca­dores do país não lidam bem com al­ter­nân­cias de poder po­lí­tico que in­ter­firam na con­fi­gu­ração do poder econô­mico. Por isso, fas­cismo de mer­cado não é força de ex­pressão, mas ex­pressão da fi­si­o­nomia pre­do­mi­nante das ações e es­tru­turas mo­no­po­listas do ca­pi­ta­lismo no Brasil.

O se­gundo per­so­nagem, eco­no­mista-chefe do BTG, Man­sueto Al­meida, é ainda mais em­ble­má­tico da con­ca­te­nação das po­si­ções dos mer­cados com as do gol­pismo pro­pri­a­mente dito. Foi Man­sueto, li­te­ral­mente, ca­beça de ponte entre Temer-Mei­relles e Bol­so­naro-Guedes na con­se­cução das mais aca­len­tadas re­formas pró-mer­cado: a cons­ti­tu­ci­o­na­li­zação do teto de gastos, a de­sa­la­van­cagem do BNDES e a Re­forma da Pre­vi­dência. O orá­culo de Man­sueto, que vale quanto pesa, pro­jeta-se em uma de­ta­lhada mo­du­lação dos preços dos ce­ná­rios fu­turos. Em re­la­tório “macro”, fe­chado na se­gunda quin­zena de ja­neiro de 2023, faz-se re­fe­rência ao con­junto de me­didas anun­ci­adas por Haddad que si­na­lizam pra uma re­com­po­sição equi­va­lente ao que seria o úl­timo “rombo” do teto de gastos: “De fato, o pa­cote não al­terou de forma muito sig­ni­fi­ca­tiva nossas pro­je­ções para as va­riá­veis fis­cais e não im­pe­dirá um forte cres­ci­mento da dí­vida bruta nos pró­ximos anos: pro­je­tamos au­mento da dí­vida de 73,9% do PIB no fim de 2022, para 78,2% em 2023, e 82,4% em 2024. Assim, um plano de ajuste fiscal que si­na­lize para uma tra­je­tória de es­ta­bi­li­dade da dí­vida pú­blica no médio prazo ainda é im­pres­cin­dível, e a in­cer­teza em re­lação ao com­pro­misso desse go­verno com este plano traz um ce­nário de risco des­ne­ces­sário” (2).

A si­me­tria das po­si­ções não tem nada de ca­sual e con­firma a do­mi­nância da agenda de ca­pi­tais que devem sua as­censão a mé­todos não con­ven­ci­o­nais em que fi­guram: a con­dução de fu­sões e aqui­si­ções e pri­va­ti­za­ções em que grandes lotes de ri­queza são ne­go­ci­ados de roldão de forma con­cen­trada, a pro­moção da tri­an­gu­lação entre agên­cias econô­micas go­ver­na­men­tais, par­la­mento e in­ves­ti­dores e, con­se­quen­te­mente, a cer­teira an­te­ci­pação de de­ci­sões de in­ves­ti­mento a partir da re­tro­a­li­men­tação de in­for­mação pri­vi­le­giada.

Des­pri­va­tizar, des­fi­nan­cei­rizar e des­mi­li­ta­rizar

Re­me­mo­remos que o re­sul­tado elei­toral ex­pressa um so­noro NÃO a Bol­so­naro e a seus pa­tro­ci­na­dores. Es­tra­ti­fi­cando-se esse voto de ca­ráter ple­bis­ci­tário, nota-se um pre­do­mínio de mu­lheres, jo­vens, ne­gros, mo­ra­dores das pe­ri­fe­rias das re­giões me­tro­po­li­tanas, classes po­pu­lares de modo geral com grande con­cen­tração na re­gião Nor­deste e parte da re­gião Norte. São os seg­mentos que com­pre­en­deram em seus pró­prios corpos o que sig­ni­fi­caria mais 4 anos de ne­cro­li­be­ra­lismo. Há um “efeito-des­tampe” não des­pre­zível a ten­si­onar o ali­nha­mento do país com o modus ope­randi to­ta­li­tário do mer­cado, o que in­clui con­sumo cons­pícuo, ci­dades se­gre­gadas, vi­o­lência e tor­tura nas fa­velas, pe­ri­fe­rias e nas áreas de fron­teira das com­mo­di­ties. Lula, por­tanto, ca­ta­lisa uma po­de­rosa re­cusa que re­pre­senta uma li­be­ração de ener­gias cri­a­tivas e con­tes­ta­tá­rias, si­len­ci­adas e cri­mi­na­li­zadas nos úl­timos anos.

Não por acaso o gol­pismo não baixa a guarda; há um temor real de uma con­tra­onda que de­sa­cople es­tru­turas econô­micas e po­lí­ticas con­so­li­dadas desde os anos 1990. Quando Lula afirma e rei­tera que saúde e edu­cação não são gastos e que gasto mesmo é o pa­ga­mento dos juros da dí­vida pú­blica, o edi­fício oli­go­pó­lico in­teiro es­tre­mece. Quando co­loca em pé de igual­dade metas de in­flação e metas de em­prego, e ques­tiona a au­to­nomia do Banco Cen­tral para obe­decer à banca pri­vada, bolsas e dólar dis­param in­di­cando o quanto tais sa­cri­lé­gios são de­ses­ta­bi­li­za­dores.

Con­tudo, se Lula avoca a “es­tu­pidez” do teto de gastos, não de­veria per­mitir que seu mi­nistro da Fa­zenda se deixe em­purrar para re­mendar ou mi­tigar rombos apenas men­su­rá­veis nos marcos deste en­ges­sa­mento es­tú­pido das fi­nanças pú­blicas. Nem de­veria deixar que o pro­jeto do novo ar­ca­bouço fiscal vá se de­se­nhando como um outro li­mi­tador de in­ves­ti­mentos es­sen­ciais e es­tra­té­gicos em nome do sa­grado dever de manter os gastos fi­nan­ceiros da dí­vida em dia.

É certo que a so­ci­e­dade, suas ar­ti­cu­la­ções, fó­runs e par­tidos con­vo­quem e se au­to­con­vo­quem para isso. Mas o Pre­si­dente não pode deixar meias ver­dades no ar, sem, con­co­mi­tan­te­mente, abrir es­paços par­ti­ci­pa­tivos para que as mesmas ver­dades possam ser ditas por in­teiro. Qual­quer gesto no sen­tido de for­ma­lizar a par­ti­ci­pação po­pular será vão sem que haja es­paços de re­po­li­ti­zação das po­lí­ticas mo­ne­tária, cam­bial, tri­bu­tária e cre­di­tícia. O que passa pela cri­ação de es­paços de con­trole so­cial e de par­ti­ci­pação po­pular sobre as de­ci­sões do COPOM (Co­mitê de Po­lí­tica Mo­ne­tária), da Se­cre­taria do Te­souro do Mi­nis­tério da Fa­zenda, das ins­tân­cias do Banco Cen­tral de fis­ca­li­zação dos Bancos Pri­vados, dos Con­se­lhos ad­mi­nis­tra­tivos do BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econô­mica Fe­deral, entre ou­tros es­paços de for­mu­lação da po­lí­tica econô­mica.

A dis­cussão sobre o que deve ser li­mi­tado e o que deve ser am­pliado quanto à atu­ação do Es­tado e sua re­lação com o mer­cado deve ser so­ci­a­li­zada, com a prévia ela­bo­ração de es­tudos téc­nicos in­de­pen­dentes e seu pos­te­rior co­te­ja­mento em au­di­ên­cias pú­blicas que de­sem­bo­quem em uma con­sulta po­pular que se de­bruce sobre o con­trole e o des­tino das fi­nanças pú­blicas no Brasil.

Notas:

1) https://​www.​inf​omon​ey.​com.​br/​col​unis​tas/​caio-​megale/​a-​busca-​pelo-​equ​ilib​rio-​fiscal-​sus​tent​avel/

2) https://​res​earc​h-​content.​btg​pact​uald​igit​al.​com/​file/​2023-​01-​20T​1909​55.​989_​Rel​at%C3%B3r​io%20M​acro%20M​ensa​l%20-​%20J​anei​ro.​pdf?​39a​756d​10a9​12e0​886e​c7b5​58ea​97c8​5

Fonte da matéria: Qual é o segredo: o golpismo é bom para os negócios ou os negócios são golpistas? – https://correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/15359-qual-e-o-segredo-o-golpismo-e-bom-para-os-negocios-ou-os-negocios-sao-golpistas

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