Política

A patologização do fascismo

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Roger Flores Ceccon – Esses que fomentam e participam de movimentos neofascistas não são doentes e nem loucos.

Dezembro de 2022. Há um movimento neofascista em curso no Brasil. E não é de hoje. Indivíduos, coletivos e instituições têm usado a violência como estratégia, e um projeto de governo baseado no ódio e na exclusão estimulou o uso de armas de fogo, rechaçou direitos humanos, dizimou indígenas e perpetrou discursos e práticas racistas, sexistas e homofóbicas. Nos últimos anos, não foram realizadas políticas públicas de proteção social, e as que existiam foram duramente atingidas. E mais de 600 mil pessoas morreram em decorrência de uma pandemia – propositalmente – sem controle. Até a fome voltou, e atinge 15% dos domicílios e 33 milhões de pessoas no país.[1]

O projeto de governo vigente dividiu e separou, sob a égide do pensamento rasteiro de pessoas e grupos ligados à extrema direita e à ideologia bolsonarista. Se não bastasse, esses mesmos grupos, passada a eleição presidencial, que sacramentou a vitória democrática de Luiz Inácio Lula da Silva, agora pedem a volta da ditadura militar, que violentou, torturou e assassinou milhares de pessoas há pouco mais de quatro décadas.

Apoiadores de Bolsonaram questionaram resultado nas eleições 2022, durante manifestação no feriado da Proclamação da República, neste 15 de novembro

Acampamentos em frente a quarteis militares e bloqueio de rodovias dão o tom. Mas não fica nisso. Tem sido comum atos pedindo a volta da ditadura por meio de orações à Deus; pedido de socorro a extraterrestres; pessoas penduradas em para-brisa de caminhão; batendo continência a pneus; chorando; gritando ajoelhadas na chuva e no frio; fazendo saudação nazista, com fome, se amordaçando e entoando frases estúpidas de atentado à democracia. Nunca havíamos presenciado greve em frente à quartel general, nem o uso dos próprios filhos como cordão humano. Uma sandice.

Entretanto, sandice – ato que representa ignorância, tolice ou falta de inteligência – não é sinônimo de doença ou transtorno mental, como tem sido caracterizado aqueles que praticam ou estimulam os atos – suicidas – pela volta da ditadura militar. Não são loucos e nem doentes. São fascistas, que buscam pela força, pelo autoritarismo e por atos ilegais descaracterizar um pleito eleitoral para seguir violentando grupos populacionais. São práticas fascistas oriundas de um processo de subjetivação que utiliza religião, ideologia, notícias falsas, redes sociais, robôs e mentiras para criar uma realidade paralela. Vale tudo.

Esses atos são oriundos da subjetivação individual e coletiva colocadas em prática pelo que Foucault[2] denominou de governamentalidade, na qual o poder é operacionalizado pela ordem do governo por meio de procedimentos e táticas que permitem conduzir a conduta dos indivíduos. Envolve as estruturas do Estado, a micropolítica das relações, o governo de si, o individual, o coletivo e as macroestruturas institucionais.[3]

Se antigamente isso era feito através do poder infinito do Rei, depois com a conduta regulada da disciplina, o que se observa é uma ampliação do poder, que atua de modo cada vez mais profundo e imperceptível. Governar, nesse caso, é conduzir a conduta do outro, exercer ação sobre suas ações possíveis, pensar a melhor maneira de conduzir a população. Para isso, dispõe não de virtudes principescas, mas de estratégias, de dispositivos de poder que buscam a destruição da democracia. Dessa forma, por mais absurdo que pareça, o fascismo segue vivo. Um neofascismo social e político.

O fascismo, aqui, é caracterizado como um regime de relações de poder exercidas no âmbito da sociedade que concede à parte mais forte a prerrogativa de veto sobre a vida do outro e decide o modo de existência dos mais fracos. Historicamente, a aparição do fascismo como força dominante ocorreu em 1922, com a emergência do Partido Nacional Fascista italiano, e “terminou” em 1945, com a derrota e morte de Benito Mussolini e Adolf Hitler. Além da Itália e da Alemanha, há registros de movimentos fascistas na Áustria, Bélgica, Grã-Bretanha, Finlândia, Hungria, Romênia, Espanha, África do Sul e Brasil.[4]

Nos últimos anos, grupos neofascistas ressurgiram na sociedade contemporânea, adotando um regime social de distinções estabelecidas por linhas radicais que dividem a população em dois grupos: “deste lado” versus o “outro lado” da linha.[5] O “outro lado” desapareceu como realidade para aqueles que detinham o poder político e social, constituindo um universo condenado à sub-humanidade, onde vivem os excluídos: negros, pobres, gays, lésbicas, travestis, mulheres, indígenas ou simplesmente quem não se identifica com a política bolsonarista. Frases ditas pelo presidente Jair Bolsonaro como “vamos fuzilar a petralhada”, no Acre, e “você não merece ser estuprada”, à Maria do Rosário, são exemplos claros. E não tem nada de loucura nisso.

Esses que fomentam e participam de movimentos neofascistas não são doentes e nem loucos, e não se deve patologizar esse tipo de prática social. Loucura é oposta ao fascismo. Justamente o contrário. Loucura é potência, é uma condição de viver que se opõe radicalmente às normas e às convenções sociais. É diversa e foge da normalização, do padrão de como se comportar em uma sociedade excludente. Loucura é afeto e sensibilidade. E não violência.

Não são necessárias intervenções psiquiátricas, como se tem bradado, e patologizar o fascismo em curso é abrandá-lo, descaracterizá-lo e amansá-lo à condição vulnerável de doente. Apologia à ditadura é crime segundo a Lei de Segurança Nacional, a Lei dos Crimes de Responsabilidade e o Código Penal brasileiro. Na verdade, esses que clamam pela volta da ditadura não precisam de cuidado, como é primordial aos doentes. Precisam que a lei seja cumprida.

E, por favor, respeitem os loucos.

[1] Rede Penssan. Inquérito nacional de insegurança alimentar no cenário da Covid-19. Rio de Janeiro: Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 2021.

[2] Foucault, M. O sujeito e o poder. In Filosofia, diagnóstico do presente e verdade (A. Chiaquieri, Trad., pp. 118-140). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

[3] Foucault, M. Segurança, território e população. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[4] Neuhauser, S. Wir werden ganze Arbeit leisten: Der austrofaschistische Staatsstreich 1934: Neue kritische. Norderstedt, GERM: Books On Demand, 2004.

[5] Santos, B. S. (2007). Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos (Cebrap), 79,71-94, 2007.

Fonte da matéria: A patologização do fascismo – Le Monde Diplomatique – https://diplomatique.org.br/a-patologizacao-do-fascismo/

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