Antonio Martins – No último capítulo de seu novo livro, economista demonstra: nunca foram tão claras como hoje as bases materiais para sociedades baseadas na colaboração. Se quiser lutar por elas, porém, esquerda terá de atualizar seus programas
IV.
Alternativas: caminhos para
outro pós-capitalismo possível
A ausência, em meio à crise civilizatória, de uma alternativa à crise do capitalismo e à emergência do tecno-rentismo é um dos problemas mais dramáticos de nossa época – e uma das causas centrais do ressurgimento do fascismo. As políticas neoliberais estão produzindo, como se viu, desigualdade obscena, empobrecimento e desesperança. As maiorias não encontram na democracia caminhos para a mudança – e por isso veem, no jogo político, apenas ambição de poder e de aproveitamento. A ultradireita sustenta um discurso anti-establishment. Embora falso, ele tem força para mobilizar ressentimentos.
A esquerda, com raras exceções, não atualizou seus programas. Frequentemente saudosista, continua enxergando o mundo e a luta de classes como eram nos séculos passados. Ao invés de interagir com os dramas concretos que afligem as sociedades, sonha com o retorno triunfal da velha classe trabalhadora. Como esta volta é uma quimera, acaba se limitando, na prática, a defender a ordem liberal contra os assaltos do fascismo. Por isso, é vista por muitos como parte da elite e cúmplice de sua rapina. A incapacidade de compreender a nova realidade e suas brechas – e de agir em consonância – desgasta rapidamente governos como os de Alberto Fernández (Argentina), Gabriel Boric (Chile) ou Pedro Castillo (Peru). Torna extremamente penoso, para Lula, apresentar qualquer perspectiva de futuro. Abre espaço para que a ultradireita avance em toda a Europa – particularmente na Itália, França, Espanha e Alemanha.
O objetivo de Ladislau Dowbor, em seu livro, não é oferecer soluções para os impasses da esquerda. Mas ao desvendar novos mecanismos por meio dos quais o rentismo contemporâneo apropria-se do trabalho coletivo, Resgatar a função social da economia abre horizontes. Não se tratar de requentar debates como Revolução ou Reforma, que dizem respeito a um capitalismo industrial que não existe mais. Retomar os projetos emancipatórios exige encontrar meios políticos de frear a captura; de tornar comum a riqueza produzida na era da economia do conhecimento.
Em seu último capítulo, o livro esboça propostas para isso. Fala em estabelecer a Renda Básica. Reduzir dívidas financeiras. Desprivatizar. Lançar um vastíssimo programa de investimentos públicos, suficiente para desmercantilizar saúde, educação e habitação. Renovar a infraestrutura e iniciar a conversão energética. Assegurar, por meio do Estado, trabalho com direitos aos que desejem engajar-se nestas tarefas. Estabelecer a democracia participativa como base da gestão.
São medidas, como se vê, de forte apelo popular. Algumas delas foram submetidas recentemente – e com sucesso – a testes de realidade. Bernie Sanders, que esteve próximo de bater Joe Biden na disputa para concorrer à Casa Branca pelo Partido Democrata, cresceu ente o eleitorado ao propor a criação de um sistema público de atendimento universal à saúde, a anulação das dívidas estudantis e uma agenda socioambiental muito ambiciosa (o “Green New Deal”). Jean-Luc Mélenchon livrou-se da guinada da Europa à direita, ficou próximo de disputar o segundo turno das eleições presidenciais francesas e liderou uma campanha que obteve 31,6% dos votos legislativos por defender um programa semelhante. Resgatar a função social da economia permite compreender o apelo de tais propostas.
Elas seguem três lógicas, muito articuladas entre si: a) repartir: eliminar catracas, impedindo que uma oligarquia diminuta aproprie-se da riqueza produzida por todos; b) produzir a partir de novas lógicas, rompendo as barreiras que o rentismo impõe para gerar escassez artificial e mercantilizar o que deveria estar universalmente disponível; c) democratizar, estabelecendo mecanismos de controle popular sobre o que precisa – e o que não deve – ser produzido. Juntos, estes eixos podem ser base para definir um novo horizonte pós-capitalista.
Na visão de Ladislau, as três lógicas antissistêmicas parecem sempre se combinar. A renda básica da cidadania, que o livro vê como indispensável, é evidentemente um meio de redistribuir a riqueza, de desfazer parcialmente a captura da riqueza social promovida pelos rentistas. Mas também é uma maneira de destravar a produção, pois permite que, num país como o Brasil, dezenas de milhões de pessoas deixem de passar fome, consumam os alimentos que a agricultura camponesa produz, abram caminho a uma produção rural alternativa à do agronegócio. O mesmo se dá com a redução das dívidas bancárias e outras medidas que bloqueiem a apropriação da renda pelos sistema financeiro. Além de frustrar a captura rentista, elas reintroduzem no consumo dezenas de milhões de pessoas que hoje têm boa parte de sua renda sequestrada pelos juros.
O caráter desmercantilizador das propostas é claro. Dowbor quer investir maciçamente na educação e na saúde públicas, para fazer delas serviços de excelência e inovação. A ideia de pagar ao setor privado para obter atendimento de qualidade deve desaparecer. Além disso, é preciso renovar a infraestrutura, devastada pela segregação colonial das periferias e por décadas de subinvestimento. O Brasil precisa oferecer a todos saneamento básico; despoluição dos rios e córregos urbanos; ruas regulares e arborizadas. Também precisa espalhar metrôs urbanos, reconstruir uma malha ferroviária e iniciar a transição energética para o aproveitamento de seu imenso potencial solar e eólico.
Este imenso leque de tarefas exigirá enfrentar o que é, como vimos, uma das tendências centrais do rentismo: a desmobilização da força de trabalho. Inspirado em exemplos internacionais, Dowbor propõe a garantia, pelo Estado, de ocupações dignas a todos os que desejem trabalhar na obra da reconstrução nacional. É um caminho eficaz para combater o declínio dos direitos laborais: os empregadores privados serão forçados a seguir os padrões públicos, ou perderão seus próprios assalariados.
Aqui se trata de uma pequena revolução. Imagine quantos milhões de brasileiros podem se integrar em missões (para usar um conceito de Mariana Mazzucato) como a garantia de saúde e educação públicas de excelência, a universalização do saneamento, a revolução urbanística das periferias, a construção de sistemas de transporte público ou o aproveitamento da luz solar e dos ventos para a geração de energia. E são ocupações de todos os tipos: peões, mestres de obras, professorxs, médicxs, enfermeirxs, engenheirxs, psicólogxs, sociólogxs, urbanistas, planejadores urbanos e tantas outras.
O papel do Estado nestas transformações é indispensável. Dowbor demonstrou, nos capítulos anteriores que o rentismo caracteriza-se precisamente por tentar apropriar-se da riqueza social sem investir na produção ou na geração de trabalho. Para superar o desperdício de capital, que o livro descreve, é preciso que outro agente econômico dê um passo adiante. Ocorre que as políticas neoliberais bloquearam a ação estatal por meio de amarras tão absurdas como o “teto de gastos” brasileiro.
Será preciso romper estas barreiras – e aqui está algo que nem Boric, nem Alberto Fernández, nem Lula ou Dilma em seu período de governo fizeram. A disciplina fiscal imposta pelos mercados foi seguida à risca. Felizmente, a tranca está cedendo. Como se viu, a ideia de que os Estados só podem gastar aquilo que arrecadam foi desmentida de forma escancarada desde a crise de 2008. Num outro livro – Camisa de força ideológica – que merece leitura muito atenta, o economista André Lara Rezende aponta a morte do mito, e as imensas perspectivas que ela abre. Tanto Lara Rezende quanto os partidários da Teoria Monetária Moderna (TMM) lembram que não há limites “econômicos” para a emissão de moeda pelo Estado. O constrangimento é político. Para quebrar as amarras estabelecidas pela classe dos rentistas, é preciso mobilizar a sociedade. Nada melhor, para isso, que mostrar como é possível realizar direitos e aspirações há tanto negados às maiorias.
Mas o mesmo Dowbor que propõe investimento maciço do Estado reconhece que ele não pode se dar da forma ultracentralizada que marcou o passado em várias parte do mundo. “Na era do conhecimento, e com as tecnologias disponíveis”, diz o livro, “a ideia de uma sociedade descentralizada e participativa se torna realista, como vemos em numerosos países (…) Não estamos mais na pré-história em que uma minoria tinha acesso à educação e aos conhecimentos gerais. Em toda parte há, hoje, gente escolarizada e a conectividade global permite interações colaborativas. É a base de um sistema democrático muito mais participativo que precisamos assegurar, fazendo contrapeso ao sistema centralizado de interesses das grandes corporações e de suas articulações políticas (…) Quando o principal fator de produção é o conhecimento, imaterial e portanto passível de produção infinita sem custos adicionais, abrem-se imensas oportunidades em que a colaboração é mais eficiente que a competição”.
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Dowbor não é um otimista. Seu livro termina com um alerta sobre o poder cada vez mais destrutivo do rentismo. “Os rumos não são promissores. Tenho chamado isso de impotência institucional. Todos sabemos que temos de mudar, mas muito pouco acontece. Os computadores das corporações, que definem onde serão aplicadas imensas massas de recursos financeiros, seguem os algoritmos de maximização de retorno no mais curto prazo, enquanto os departamentos de relações públicas lançam declarações sobre a importância de governança ambiental e social (ESG). É um universo de faz de conta”.
Mas não deixa de haver um esperançar freiriano numa obra que, depois de desvendar o ocaso do capitalismo e o surgimento de um modo de produzir e concentrar riquezas ainda mais devastador, explica seus mecanismos – e propõe caminhos para revertê-los.
Não será fácil, frisa o livro, inclusive porque é preciso rever projetos emancipatórios. “Quando os mecanismos de apropriação do excedente social se deslocam, mudam as frentes de luta para que os recursos voltem a servir à sociedade”, lembra, em certo trecho, Resgatar o função social da economia. Mas termina com uma pergunta e um chamado: “É sonhar demais com uma mudança profunda de valores na própria cultura de competição, de exploração, de guerra de todos contra todos? Na realidade, trata-se de evitar o pesadelo. (…) Frente à força das grandes corporações mundiais, teremos democracia participativa ou não teremos democracia. E em particular, precisamos resgatar mais Paulo Freire, Franz Fanon e tantos indignados do planeta que buscaram uma vida digna para todos. Não hesitaria em dizer que precisamos de um novo humanismo, e das formas correspondentes de organização de como a sociedade decide seus rumos”.
Fonte da matéria: Dowbor vê o ocaso do capitalismo (final) – Outras Palavras – https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/dowbor-ve-o-ocaso-do-capitalismo-final/
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