Anelize Moreira – Após 75 anos de o médico e geógrafo Josué de Castro ter denunciado ao mundo o retrato do Brasil de extrema miséria por meio do livro Geografia da fome em 1946, milhões de brasileiros voltam hoje a passar fome no Brasil.
Disse Josué de Castro em entrevista concedida a Araújo Dantas em 1965: “Ora, a fome, na acepção rigorosamente científica do termo, não compreende apenas a inanição, mas, sim, todas as modalidades de deficiência alimentar, formas visíveis e formas ocultas […]. A fome é, para mim, a expressão biológica de males sociológicos”.
Um levantamento divulgado em junho pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) indica que 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer no país. São 14 milhões de brasileiros a mais do que o estudo feito no ano passado.
Diante deste cenário de crescimento da fome e da insegurança alimentar surgiu a ideia do livro Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro, organizado pela ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2011-2016) Tereza Campello e pela doutora em nutrição em saúde pública Ana Paula Bortoletto, publicado pela editora Elefante. Ambas atuam como pesquisadoras do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) e da Cátedra Josué de Castro, da Faculdade de Saúde Pública da USP.
O Brasil de Fato conversou com a Tereza Campello, que ressalta outro motivo importante para o desenvolvimento do livro: a indignação de não ver na imprensa uma cobertura de todos os fatores envolvidos na volta da fome, que acaba sendo resumida a um resultado da pandemia.
“Isso nos lembrava muito o que Josué de Castro dizia na década de 1940: ‘as pessoas dizem que a fome é natural, sempre teve fome, não é por conta da seca, é por conta da índole do povo, o povo é preguiçoso’, e ele não se conformou a situação, e dizia: ‘não é verdade, a fome é resultado da política ou da falta de política, a fome é resultado da decisão dos governantes’. A situação é a mesma de hoje, quando se atribui a culpa do crescimento da fome a um fenômeno natural, um vírus”.
Dois anos antes da pandemia, era possível notar que o país, que havia saído do Mapa da Fome das Nações Unidas em 2014, voltava a viver uma tragédia que já havia sido superada. Os aspectos não explorados pela mídia, mas que tem relação direta com o aumento da fome são os recordes de produção de grãos e de desmatamento, segundo a ex-ministra foram abordados na publicação.
“O Brasil passa fome apesar de ser um grande produtor de alimentos ou seja essa fome poderia ser evitada e o desmatamento acontece pressionado pela fronteira agrícola, modelo predatório de produção que é incapaz de preservar a natureza e alimentar o nosso povo”.
Em 27 textos, economistas, nutricionistas, pesquisadores e ativistas fazem um diálogo com o intelectual pernambucano da fome nos dias atuais. Entre os autores estão José Graziano da Silva, ex-presidente da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e Carlos Monteiro, um dos maiores especialistas mundiais em nutrição e alimentação, e os economistas Ricardo Abramovay e Ladislau Dowbor, entre outros.
Esses estudiosos tentaram responder a seguinte pergunta: olhando para esses 75 anos, de Josué de Castro até 2021, o que mudou no Brasil e a partir disso traçar um diagnóstico da fome na atualidade. “O Brasil era um país, na época de Josué de Castro, o mais pobre do mundo e que não produzia alimentos suficientes e um país com fome. O Brasil de 2021 é um dos países mais ricos, mas o povo é pobre (13º no ranking das maiores economias do mundo), e virou um dos grandes produtores de alimentos o que há 75 anos não era”.
O livro traz também como o Brasil conseguiu reverter a fome histórica e secular entre os anos de 2003 a 2014 com políticas públicas e o quanto o desmonte delas pelos governos posteriores fizeram o Brasil voltar para o Mapa da Fome da ONU.
Os eixos abordados na publicação discutem a fome relacionada com a saúde, a economia, a produção de alimentos e a concentração de renda. A professora titular da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis acrescenta que para reverter o cenário da fome, além de levar em conta os quatro eixos citados, é necessário repensar caminhos de modelo de produção de alimentos.
“O modelo de produção considerado hegemônico se baseia na monocultura, no uso intensivo de agrotóxicos, tem um completo descaso com a natureza e com o alimento que é produzido e se distanciou da nossa cultura alimentar. Enfrentar a fome exigirá que construamos soluções mais robustas para além da fome, mas também apontando um novo modelo de produção mais saudável e sustentável”.
Fonte da matéria: Livro mostra relação entre aumento da fome, produção de commodities e desmatamento no Brasil – Editora Elefante – https://elefanteeditora.com.br/livro-mostra-relacao-entre-aumento-da-fome-producao-de-commodities-e-desmatamento-no-brasil/?ct=t%28DAREDACAO_breno%2311_Tira%2323_Retratos_20201025_COPY_%29&mc_cid=0bf563117f&mc_eid=0ac7cd7efd
Deixe uma resposta