Política

O nepotismo veste farda

Tempo de leitura: 9 min

Estudio Dos Rios + Dobke – O clímax do nepotismo militar, não aconteceu. Como ensinam os gurus da autoajuda, vamos começar focando nos aspectos positivos. O filho de um capitão esteve a passos de ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos. A sucessão de vexames seria indescritível, começando pela sua incapacidade de articular uma frase básica em inglês e terminando com as dificuldades que teria, por exemplo, o Washington Post, em explicar no momento da apresentação da carta credencial, a origem da alcunha “Dudu Bananinha” que acompanharia o “Vossa Excelência”.

Então, nem tudo está perdido, nos livramos desse carma. Mas sobraram tantos e tão esdrúxulos casos, que revelam que as relações políticas baseadas na influência, na reciprocidade e na lógica do “é dando que se recebe”, tão comum na vida pública civil, é também, e talvez em dimensão maior, uma verdadeira praga na caserna. E, como ela corre solta, corremos  o risco de banalizar essas falcatruas e imoralidades.

Nepotismo, historicamente, fazia referência às regalias que tinham os sobrinhos e netos dos papas e bispos da Igreja medieval e, hoje, identifica quando um agente público usa de sua posição de poder para nomear, contratar ou favorecer parentes, pressupondo a priorização do laço de parentesco sobre a competência técnica. Não temos dúvida que essa prática dialoga com a corrupção, pois o favorecimento inicial pressupõe regalias e “costas quentes” que podem levar (e levam) ao desvio de verbas, à propinas e troca de favores.

“Missão institucional”

A cultura do meio militar é especialmente propícia à essa anomalia: em diversos casos, futuros generais quando oficiais em início de carreira, sendo filhos de generais, serviram como “ajudantes”, “secretários” ou “assistentes” de seus próprios pais, já que os critérios que regulam o preenchimento desses cargos são essencialmente pessoais.  Sabe-se, com respaldo em estudos acadêmicos sérios, que em países desenvolvidos a ascenção na carreira militar é baseada fortemente em critérios profissionais e em países periféricos predominam as relações hereditárias e sociais, isto é, em países como o Brasil a constante utilização de relações pessoais baseadas na reciprocidade, e o conseqüente acúmulo de capital simbólico, são recursos para a progressão na hierarquia das Forças Armadas.

Abordando cronologicamente o tema, em abril de 2018, às vésperas do julgamento de um habeas corpus em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o general Eduardo Villas Bôas se manifestou  dizendo repudiar “a impunidade”, afirmando ainda que o Exército estaria atento às “suas missões institucionais”, sem detalhar exatamente quais seriam tais “missões”. Isso foi interpretado, obviamente, como uma ameaça ao Supremo Tribunal Federal (STF), que simplesmente abaixou a cabeça.

Hoje poderíamos fazer outras ilações como, por exemplo, que a redução do desemprego entre parentes e apaniguados é “uma importante missão institucional” do Exército pois, já em 2019, sua filha, Adriana Haas Villas Bôas, assumiu como assessora do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, na Coordenadoria-Geral de Pessoas com Doenças Raras. O ministério, em nota naquele momento, não deixou clara a relação de uma bacharel em Direito com a complexidade do setor assumido, o que não impediu que ela fosse categorizada em uma função DAS 101.4., com salário bruto de R$ 10.373,30.

E se multiplicam os casos onde há distância quilométrica entre a as competências do candidato e as exigências do cargo, defasagem essa  sempre suprida com o “stauts do padrinho”. A filha do general Braga Netto, Isabela Oassé de Moraes Ancora Braga Netto, se formou em Design mas foi nomeada gerente na Agência Nacional de Saúde – ANS. (órgão de controle dos planos de saúde) em julho de 2020 com salário bruto de R$ 13.000,00. Ela ocuparia a gerência de Análise Setorial e Contratualização com Prestadores, que trata da relação entre a ANS, planos de saúde e prestadores de serviços, como hospitais, sem jamais ter trabalhado na área. O processo de nomeação da filha do general foi instaurado “por indicação” do diretor adjunto de Desenvolvimento Setorial, Daniel Meirelles Pereira, casualmente, irmão de Thiago Meirelles  Pereira, secretário-executivo-adjunto de Braga Netto na Casa Civil. Este caso, assim como do nosso “quase embaixador” em Washington, excepcionalmente, foi concluído com a desistência da indicada ao cargo, depois que o Sindicato Nacional dos Servidores das Agências Nacionais de Regulação (Sinagências) cobrou explicações à ANS sobre possível nepotismo cruzado na contratação.

“Esse desdobramento ‘tolerável’ da corrupção que é a entrega de cargos bem remunerados, usualmente, a despreparados cujo único item relevante do currículo é a ligação familiar com um apoiador bolsonarista fardado.”

Já a filha do general Pazuello, Stephanie dos Santos Pazuello, 35 anos, ocupou cargo na prefeitura do Rio, na gestão de Crivella, como supervisora da Diretoria de Gestão de Pessoas da Rio Saúde, com salário bruto de R$ 7.171,00 e na derrota do “pastor”  foi  nomeada para cargo de confiança na nova gestão de Paes, como Assistente I – DAS-06, com salário inicial de R$ 1.884,00. A moça parece muito atenta às oportunidades pois em 2021, quando seu pai já ocupava o Ministério da Saúde, ela recebeu um total de R$ 2,4 mil dos cofres públicos, em duas parcelas do Auxílio Emergencial, (aquele para pessoas carentes) em abril e julho.

“Me arruma uma boquinha”

Já o general Alcides Valeriano de Faria Jr. foi indicado, no início deste governo, como subcomandante no Comando Sul das Forças Armadas dos …Estados Unidos, o que causou certa estranheza. Até um general americano se gabou dizendo que tinham a mão de obra disponível mas estavam livres do custo, o que era muita esperteza do Tio Sam. Mas o que interessa mesmo em nosso apanhado é que, menos de um ano depois, o filho do general, o jornalista recém-formado Lucas Faria, pulou de estagiário na EBC para um cargo com salário de R$ 11 mil mensais. A surpresa é maior porque de acordo com a tabela salarial da estatal, um jornalista que ingressa por concurso público, sem nepotismo militar, recebe um salário inicial de R$ 4 mil.

Outro “sortudo” é  Almir Garnier Júnior, advogado formado pela PUC-Rio, filho de Almir Garnier Santos, almirante e secretário-geral do Ministério da Defesa. Júnior foi contratado pela Emgepron, empresa pública criada no final da ditadura, em 1982, vinculada ao Ministério da Defesa com o objetivo de “promover a indústria naval e gerenciar projetos que integram programas aprovados pelo Comando da Marinha”. Ele foi contratado para um cargo de livre provimento na área de Compliance da Emgepron com salário de mais de R$ 10 mil reais.

Como a família é muito ativa, a esposa do Almirante, Selma Foligne Crespio de Pinho,  assumiu em novembro de 2019, poucos meses depois de se aposentar na Marinha, o cargo de diretora de Estratégia, Padronização e Monitoramento de Projetos da Seme – Secretaria Especial de Modernização do Estado. A unidade que passou a ser dirigida por Selma, havia sido criada um mês antes. Somados, os ganhos dos três membros da família Garnier no governo, giraram em torno de R$ 56 mil mensais, em média, nos últimos meses.

Outro coronel do Exército, colega de turma de Bolsonaro na AMAN,  Ricardo Silva Marques, ganhou um cargo muito bem remunerado e foi nomeado gerente-executivo de Inteligência e Segurança Corporativa da Petrobras, em abril de 2019, com salário na faixa de R$ 70 mil. Seu filho, Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques, que é amigo dos filhos do capitão, foi indicado para uma diretoria do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Seu nome, no entanto, foi barrado pelo próprio TCU, que apontou conflito de interesse, uma vez que o BNDES é um dos órgãos fiscalizados pelo tribunal de contas. No entanto, como favor não se paga à vista, ele é o servidor investigado no TCU por produzir um relatório falso (e torpe) que questionava o número de mortes por Covid-19 no país.

Entre os vários casos de nepotismo militar, os mais comuns são, sem dúvida, o “me arruma uma boquinha” e o “me arruma uma promoçãozinha”. Nesta segunda categoria, o mais famoso é o de Antônio Rossell Mourão, filho do vice-presidente Hamilton Mourão, que foi promovido 2 vezes em menos de 6 meses no Banco do Brasil. Antes de virar gerente executivo de marketing e comunicação, ele tinha sido promovido a assessor especial do presidente do Banco do Brasil, o bolsonarista Ruben Novaes. Ele é concursado e trabalha há quase 20 anos no banco público, mas passou a ganhar R$ 36,3 mil, o triplo de seu  rendimento antes da eleição da chapa militar. O banco informou, na época, que “o cargo é de livre provimento da Presidência do BB e a nomeação atende aos critérios previstos em normas internas e no estatuto do Banco”. Não há impedimentos legais. E não há como, moralmente, dissociar essa carreira meteórica do cargo  do paizão.

Outros esquemas

A influência dos soldados somada à influência do Centrão, são as únicas razões para esse governo corrupto e inepto permanecer em pé. É claro que isso exige uma contrapartida, esse desdobramento “tolerável” da corrupção que é a entrega de cargos bem remunerados, usualmente, a despreparados cujo único item relevante do currículo é a ligação familiar com um apoiador bolsonarista fardado.

E esse assunto, certamente, tem uma dimensão bem alastrada: filhos ou cônjuges empregados viram notícia, logo sabemos o que houve. Mas, e sobrinhos, cunhados, primos e “envolvimentos sentimentais” não identificados, com indicações e contratações feitas sorrateiramente? Bem, esse é um dano imensurável aos cofres públicos, déficit que nunca contabilizaremos suficientemente.

Por outro lado, jornalistas profissionais sabem: não se entrevista um militar graduado por mais de 10 minutos sem que ele cite solenemente “a disciplina, a moralidade, a ética” e se pavoneie como se sua turma estivesse entre os mais virtuosos do planeta. Na realidade, são fervorosos praticantes das maracutaias e mamatas, escondidos atrás de muros bem caiados.

Fonte da matéria: O nepotismo veste farda – https://jacobin.com.br/2022/05/o-nepotismo-veste-farda-2/

Deixe uma resposta