Gerson Almeida – Dois projetos, a União Eurasiática e a Nova Rota da Seda, podem construir as bases de um mundo multipolar. Mas os EUA não vão ceder a primazia imperial. O povo ucraniano é o sacrificado da vez em conflito que não se resolverá com esta guerra.
Seja qual for o acordo político feito após o desfecho da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, não haverá estabilidade na região até que o conflito fundamental seja resolvido: a disputa do império americano para ampliar sua posição de poder na Eurásia. Para alcançar isto, os EUA parecem estar decididos a impedir que a Rússia volte a se consolidar como potência regional, que segundo Gao Cheng – pesquisadora do Instituto Ásia-Pacífico e Estratégia Global, Academia Chinesa de Ciências Sociais – “é uma promessa chave do terceiro mandado de Putin e materializada na União Eurasiática, cujo objetivo é integrar os mercados e recursos dos países da CEI”;1 e, também, conter a crescente liderança econômica, comercial e cultural da China, cujo projeto estratégico é a Nova Rota da Seda, uma ampla rede de relações nos cinco continentes, com fabulosos investimentos em infraestrutura. A União Eurasiática e a Nova Rota da Seda são projetos capazes de alçar a presença da China no mundo e da Rússia na Eurásia, numa escala grande o suficiente para conviver com o unilateralismo americano, consolidado depois da Guerra Fria.
A União Europeia, por sua vez, apesar de ter crescido para o Leste, incorporando uma dezena de países da antiga zona de influência russa, desde o início demonstra estar acomodada numa posição subalterna aos interesses americanos, tal a sua dificuldade em construir uma posição independente. A falta de uma liderança autônoma na UE confirma a posição do então presidente Charles de Gaulle, que retirou a França, em 1966, do comando integrado da Otan – instância que decide as operações militares e sempre sob controle americano –, em nome da soberania do país. Posição que só foi revertida em 2009, com Sarkozy.
Esse alinhamento automático da União Europeia com os EUA e o avanço acelerado da Otan para o Leste, além de ser um explícito descumprimento dos acordos feitos quando da dissolução da União Soviética, não podem ser justificados como do interesse defensivo de povos ameaçados pelo “desejo imperial russo”. Ao contrário, esse avanço começou em meio à imensa crise vivida pela Rússia, cuja economia sofreu uma retração de cerca de 40% na década de 1990, período no qual Polônia, Hungria e a República Tcheca ingressaram na Otan.
A partir de então, a Otan não parou de avançar às fronteiras Russas, sob estrita liderança dos Estados Unidos, evidenciando uma reorientação da aliança militar constituída contra o comunismo (inexistente desde 1991), agora, voltada diretamente contra a Rússia e indiretamente contra a China. Qual a razão, então, que faz o crescimento do poderio militar da Otan e o cerco à Rússia serem naturalizados como necessários para conter as pretensões imperiais… da liderança russa e defender os altos valores da liberdade e da autonomia dos povos?
No que diz respeito à relevância central da Eurásia para as potências com ambições de protagonismo no mundo, o livro de Peter Frankopan, O Coração do Mundo – uma história universal a partir da Rota da Seda: o encontro do Oriente com o Ocidente (São Paulo: Planeta, 2019), é amplamente revelador do quanto a versão dominante sobre a história geral é um “mantra do triunfo político, cultural e moral do Ocidente”. O professor de História Global na Universidade de Oxford refuta essa versão amplamente aceita, que ele classifica como uma “história preguiçosa da civilização”, que sempre fala da importância do Mediterrâneo como berço da civilização, “quando parecia tão óbvio que não era ali que a civilização havia de fato sido forjada”.
Ao longo do livro, ele apresenta uma argumentação suficientemente robusta sobre o desenvolvimento histórico para demonstrar que “durante milênios, a região entre o Oriente e o Ocidente, ligando a Europa ao oceano Pacífico, foi a que constituiu o eixo em torno do qual girava o globo” e que esta região, a Eurásia, é a verdadeira “encruzilhada da civilização”. Não por outra razão, foi ali onde as “grandes religiões do mundo ganharam vida, onde judaísmo, cristianismo, islamismo, budismo e hinduísmo abriram caminho aos empurrões, o caldeirão onde grupos linguísticos competiam” e onde os “grandes impérios surgiram e entraram em colapso, onde os efeitos dos choques entre culturas e rivais eram sentidos a milhares de quilômetros de distância”. É exatamente isto que está ocorrendo neste momento, em que o conflito entre Rússia e Ucrânia está rapidamente arrastando o mundo para uma escalada de difícil retorno, na qual o uso de armas nucleares volta ao cenário das possibilidades, evocando o período sombrio da crise dos mísseis soviéticos em Cuba (1962), quando os Estados Unidos não titubearam em impedir a instalação de armas tão letais na proximidade das suas fronteiras.
Diante de um conflito no “coração do mundo”, a primeira coisa que ressurge com virulência é a tradicional oposição entre Ocidente x Oriente, fazendo desmoronar toda a arquitetura discursiva da globalização e do mundo como uma nave comum dos humanos. Discurso que há décadas serve para deslegitimar as políticas voltadas aos interesses nacionais e usada para remover qualquer tipo de regulação à livre movimentação e acumulação dos capitais.
O consenso formado contra a liderança russa, sem qualquer consideração ao contexto e às suas razões, em grande medida pode ser explicado pela força ideológica desta versão “preguiçosa” da história, conforme definição de Frankopan.
Em condições normais, a irresignação da Rússia com o cerco às suas fronteiras e à instalação de mísseis a 700 quilômetros de Moscou seria compreendida como legítimas e objeto de acordos diplomáticos que garantissem a segurança de todos os países, mas o que está mesmo em questão é a disputa pelo coração do mundo, algo que não será facilmente resolvido para nenhum dos lados e os argumentos que demonizam Putin – e tornam Zelensky um herói – parecem ser uma versão atualizada das “armas químicas” usadas como argumento para justificar a ocupação do Iraque.
Seja qual for o resultado do conflito em curso na Ucrânia, não haverá resolução da disputa geopolítica tão cedo, pois a ordem mundial unilateral não é mais capaz de dar conta da realidade política e econômica do mundo e esta guerra é parte da longa disputa pelo domínio do coração do mundo, que desta vez vitima o povo ucraniano e já vitimou tantos outros povos. A existência de um mundo multipolar poderá trazer mais segurança ao mundo, mas essa transição será traumática, especialmente pela ausência de lideranças que coloquem os interesses da humanidade acima dos interesses econômicos. Ainda há tempo para isto.
1 Comunidade dos Estados Independentes (CEI), integrada por Armênia, Belarus, Cazaquistão, Federação Russa, Moldávia, Quirquistão, Tadjiquistão, Turcomenistão, Ucrânia, Uzbequestão, Geórgia e Azerbaidjão.
Fonte da matéria: O que se disputa na Ucrânia e o que virá depois – Outras Palavras – https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/o-que-se-disputa-na-ucrania-e-o-que-vira-depois/
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