GABRIEL BRITO – “O Brasil conquistou sua cidadania internacional”, vimos o emocionado Lula dizer na hora do almoço daquele 2 de outubro de 2009, uma segunda-feira longínqua tanto pelo tempo como, principalmente, pelo clima que se vivia no país, imune à maior crise internacional do capitalismo desde a década de 30 do século 20.
Sete anos e alguns furacões depois, um Brasil deprimido e recalcado viu Gustavo Kuerten entrar com a pira olímpica no Maracanã e Hortência assistir Vanderlei Cordeiro para inaugurar oficialmente os primeiros jogos em território sul-americano.
Passado o susto da peça de péssimo gosto que chegou a ser ensaiada para a cerimônia, a representar um menino de favela assaltando a “cidadã de bem” (e branca) Gisele Bündchen, o país viu alguns de seus maiores artistas se apresentarem e, no fim das contas, encenações sobre a história do Brasil que agradaram a quase todos.
De toda forma, a infeliz ideia não deixou de expressar o “fim do sonho”, isto é, o esfacelamento da ilusão do “país de todos” e a volta do velho estranhamento entre classes e raças que ainda permeia a condução do cotidiano e suas relações socioespaciais.
Com um custo total pouco superior a 39 bilhões de reais e supostos 55% de capital privado, os jogos do Rio tiveram a abertura menos prestigiada por chefes de Estado da história recente. O soturno presidente interino não teve coragem de balbuciar mais de 5 palavras para saudar o início da festa e as câmeras não hesitaram em fugir de seu rosto. A exemplo da Copa do Mundo, uma extraordinária isenção fiscal (calculada em R$ 3,83 bilhões) foi concedida às corporações patrocinadoras dos Jogos, enquanto raspa-se cada moeda dos cofres destinados ao financiamento das pastas sociais, sempre em nome do “ajuste nas contas nacionais”.
Do lado de fora, alguns movimentos protestaram contra as remoções de moradores pobres, a mercantilização da cidade, a violência do Estado e as próprias políticas esportivas. Alguns sempre estiveram fieis às pautas, outros aderiram nos últimos três meses, na busca de qualquer brecha pra promover palavras de ordem contra o camarada de outrora, o que, aparentemente, mais esvaziou do que inflou qualquer combatividade e audiência dos atos.
Estivéssemos em autêntica festa e estabilidade política, o famigerado filmete de 12 de junho de 2014, dia da abertura da Copa do Mundo, seria repassado e teríamos voltado a registrar setores que empunham bandeiras vermelhas a vociferar contra os mesmos manifestos.
Impossível não se chocar com tal duplicidade, dado que os grupos agora tripudiados como “ex-governistas” fecharam os olhos para tudo que houvesse de ser em nome da grande festa trazida pelo seu xamã. Violência policial, abuso de autoridade, militarização da segurança pública, leis de exceção que vieram para ficar, gentrificação das cidades, mais exclusão social, nada disso era, então, suficiente para contestar os megaeventos sem acusações de antipatriotismo, rebeldia sem causa ou serviço sujo para inimigos do “progressismo”.
Diante de tamanha exaustão, mais uma vez o país receberá uma “folga” das dores de cabeça do dia a dia, viverá duas semanas de contemplação e confraternização e tentará curtir o lado bom de receber as Olimpíadas.
A exemplo de 2014, no entanto, nenhuma euforia precedeu os dias de festa, muito menos nos afeiçoamos um pouco mais aos esportes menos populares e midiáticos, de modo a prestigiar um pouco mais alguns bravos brasileiros que suam e lutam muito em quadras, piscinas e arenas menos frequentadas pelo torcedor.
Como destacou a análise de Eliane Brum, talvez a mais lúcida de todas, chegamos ao momento olímpico divorciados dos sonhos de verão acalentados nos últimos anos, desde a quimera da conciliação entre todos os lados da sociedade até a noção de que tudo havia dado certo e, de fato, adentráramos o “clube dos grandes”.
A “caça à tocha” vista em diversas cidades do país pelas quais o símbolo olímpico transitou voltou a oferecer cenas de revolta popular espontânea, a exemplo da moradora de Angra dos Reis que conseguiu apagá-la, em meio a outros episódios bizarros, como a morte da onça em Manaus, que marcaram essa maratona.
Conforme ressalta a escritora, não se trata de transitar entre duas noções empobrecidas de Brasil, uma calcada no ufanismo autoritário, a outra no colonialismo cultural.
Assim, foi difícil não ruborizar com as declarações do prefeito Eduardo Paes, que liderou a cidade em todo o processo, quando das reclamações australianas a respeito das instalações da Vila Olímpica.
“Vamos deixar um canguru na porta do alojamento”, disse o mandatário do PMDB, que chorara ao lado de Lula na famosa cerimônia de Copenhagen. “Não, obrigado, preferimos encanadores”, devolveram os visitantes.
É de se imaginar o que tenha passado na cabeça dos australianos diante da declaração. A demonstração perfeita da crença de que nosso jeitinho realmente dá certo e, pra usar um termo bem nosso, “engambela” o estrangeiro, estupefato com o estado de coisas de alojamentos que tiveram sete anos pra se aprontarem, mas passarão por reparos permanentes. A metáfora do malandro cascateiro e o gringo da cintura dura, em vexatória emulação.
Isso pra não falar da desistência da empresa que prestaria segurança na Vila Olímpica, substituída de última hora pela polícia que segundo a ONU deveria acabar, autora do sequestro do lutador de jiu-jitsu neozelandês Jason Lee, que morava há um ano no Brasil e abandonou o país.
O episódio rememora a Copa de 2010 na África do Sul, na qual o Estado também teve de disponibilizar suas forças de segurança para o evento em cima da hora. Da ilusão do cinema de Fernando Meirelles à realidade de apartheid, em outra metáfora implacável.
“O processo, lamentavelmente, foi sendo deixado para o dia seguinte, quando se precisava ter planejamento de alto nível há sete anos, desde quando se definiu o Brasil como sede olímpica. Porém, infelizmente, a Matriz de Responsabilidades foi divulgada apenas em 2014, depois da Copa do Mundo, a fim de esclarecer qual ente governamental faria o que. Uma vez mais, tentou-se trabalhar com entes internacionais como se fossem nossos vizinhos de portão, acostumados com a desorganização tão escancarada que permeia o Brasil em diversas instâncias”, nos disse recentemente a psicóloga do esporte Katia Rubio, autora do precioso livro Atletas Olímpicos Brasileiros, com biografias de 1800 brasileiros que nos representaram na história Jogos.
Resta relaxar o espírito e esquecer um pouco das agruras de um ano marcado pela referida exaustão, refletida também no desarmamento de movimentos sociais influentes, prostrados ante um fim de ciclo político-econômico que agora dá razão aos mais ácidos críticos do lulismo, à época devidamente marginalizados ou desdenhados. Até porque a Lei Geral das Olimpíadas e a reedição, pela pena de Dilma Rousseff, da Lei de Segurança Nacional (agora chamada Antiterrorismo, a fim de se adequar à doutrina global) tornam ainda mais hostis as condições de contestação social.
A conciliação de classes e cores dissipou-se, de um lado, com a perplexidade daqueles que de alguma maneira acalentaram um projeto de país por pelo menos 30 anos e, de outro, a entrada em cena de setores que não têm ideia melhor do que bradar, raivosamente, pela volta de um Brasil que, apesar de tudo, jamais voltará a existir – simbolizados, talvez não à toa, por imprecações carcomidas da guerra fria.
Uma desolação pra “pessimista” nenhum, como sapateava Ronaldo em um dos comerciais pré-Copa, botar defeito. Imobilidade de quem perdeu o discurso e retorno histérico e senilizado de velhos demônios que chegamos a acreditar superados pela história.
“Em termos de preparação do atleta, é inegável que houve avanço em relação ao passado, em função de todo o dinheiro injetado. Porém, infelizmente, só se cobre a superfície, uma vez que o investimento na base – isto é, aquele contingente de onde podem despontar atletas olímpicos – ficou a desejar. Houve evolução? Sim. Mas não é suficiente para colocarem os atletas brasileiros entre os melhores. São necessárias pelo menos mais duas gerações olímpicas para alcançar tal objetivo. E a partir de uma atuação na base, não no topo”, resumiu Katia Rubio.
Torceremos pelas vitórias dos nossos, mas sem esquecer que mais um passe de mágica de transformar a realidade sem tocar nas velhas estruturas se provará uma farsa: não somos um país olímpico e não haverá legado para o cidadão e, especialmente no esporte, a juventude – esta que no exato momento é forjada por uma classe política que postula o fechamento do acesso ao ensino público como “solução” da crise.
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