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A esquerda na queda da ordem ocidental

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Almir Felitte – Quando uma guerra se inicia, pedidos de paz não podem ser apenas palavras de ordem vazias jogadas ao vento. E aos que realmente buscam uma solução ao conflito, duas perguntas são primordiais: como a guerra se iniciou e o que pode ser feito para ela acabar?

No atual caso da guerra na Ucrânia, buscar ambas as respostas é mais do que essencial e, de início, é preciso que se diga: este conflito não se iniciou ao fim de fevereiro de 2022. A batalha interna entre russos e ucranianos já havia sido deflagrada desde os grandes protestos de 2014, impulsionados por um cabo de guerra entre a União Europeia e a Rússia no país. Mesmo ano em que as regiões de Donbass e Lugansk, predominantemente russas, fugiram do controle de Kiev e o fracassado Tratado de Minsk fora assinado.

Os conflitos tampouco se limitaram às duas regiões, tendo ecos por todo a Ucrânia. Foi também em 2014, por exemplo, que o chamado Batalhão Azov, milícia pró-Europa abertamente neofascista ligada ao partido de extrema-direita ucraniano Pravyy Sektor, realizou o brutal ataque a um sindicato de Odessa no qual 42 pessoas foram queimadas vivas e outras 400 ficaram feridas.

Logicamente, o início de 2022 representou uma escalada sem precedentes deste conflito, mas é importante pontuar que este é apenas mais um capítulo de uma guerra que já se estende por cerca de 8 anos. E, sem novidades, a escalada atual novamente é fruto da disputa política entre o Ocidente e a Rússia na região. Já é ponto batido e indiscutível que o novo momento se iniciou com o convite da OTAN para que a Ucrânia se juntasse à sua aliança militar.

Mas este artigo, na verdade, não tem a intenção de esmiuçar a guerra que assola a região. Porém, para entrar na discussão que realmente proponho aqui, era necessário chegar a este último ponto e a dois questionamentos: quais os significados de uma nova expansão da OTAN no ano de 2022? E por que a Rússia contesta antigos territórios neste momento histórico?

Criada pouco depois do fim da 2ª Guerra Mundial, a OTAN foi fundada como uma aliança militar formada basicamente pelos EUA e por países da Europa Ocidental como uma forma de defesa a possíveis ataques soviéticos no contexto da Guerra Fria. Em outras palavras, uma espécie de cordão político-militar para evitar a expansão do comunismo na Europa.

Enquanto a Guerra Fria manteve a ordem mundial bipolarizada entre duas potências consolidadas, EUA e URSS, a estrutura da OTAN manteve-se praticamente intacta, concentrada entre os norte-americanos e os europeus ocidentais. Com a derrocada da URSS no início dos anos 1990, porém, o cenário político se alterou.

No que muitos conservadores erroneamente chamavam de “fim da história”, o Ocidente, capitaneado pelos EUA, se consolidou como o único a dar as cartas na nova ordem surgida. Hegemônico, não tardou para que o poder ocidental se expandisse sobre os territórios outrora antagônicos. Somente entre 1999 e 2004, 10 países, todos do Leste Europeu, ingressaram como países membros da OTAN.

Incontestável, o Ocidente se expandia por estar mais forte do que nunca. Junto com ele, logicamente, sua cultura, suas formas de governo e suas políticas econômicas. Era a consolidação total da democracia liberal e da ordem econômica neoliberal, com todas as suas contradições.

Mas seria um equívoco acreditar que toda tentativa expansionista é sempre uma demonstração de força. Certamente, a derrocada do mundo bipolarizado e a hegemonia norte-americana foram o impulso do avanço ocidental entre a década de 1990 e o início dos anos 2000. Mas será que o mesmo pode ser dito sobre o atual momento? Afinal, a OTAN, hoje, se expande na certeza de que o Ocidente segue forte, ou o faz justamente por sentir sua fraqueza e pelo medo de uma iminente derrocada ocidental?

Para compreender isso, é preciso analisar o conflito russo-ucraniano dentro de um contexto ainda mais amplo. Certamente, a guerra em questão está longe de ser o único evento de alta intensidade no mundo nos últimos tempos. Ao contrário, os últimos 14 anos foram marcados por golpes políticos, revoltas populares e conflitos bélicos em todos os cantos do globo. E o número 14, aqui, não foi citado à toa.

Ainda que boa parte da imprensa tente reforçar a ideia de que 2008 não teria sido mais do que uma crise cíclica do liberalismo econômico, o que vimos a partir daí, de fato, foi o questionamento global da própria democracia liberal tipicamente ocidental como forma de organização da sociedade. Se a grande crise se iniciou por fatores econômicos, suas consequências sociais e políticas não podem ser ignoradas.

Não me alongarei na discussão acerca do divórcio entre o capitalismo liberal e a democracia que se arrastou ao longo do século XX culminando no fatídico ano, o qual já abordei de forma mais completa neste mesmo espaço em artigo de 2019 (leia aqui1). Apenas volto ao ponto de outro texto ainda mais antigo (leia aqui2), quando, lá nos idos de 2017, ao analisar as semelhanças dos tempos atuais com o período do Entreguerras, afirmei que o desenrolar de uma crise que se iniciou como apenas econômica em 2008 poderia resultar no surgimento de uma nova ordem política global já na década de 2020.

De Trump à Obrador, dos gilets jaunes aos manifestantes colombianos, dos protestos pelo fechamento da Suprema Corte Brasileira à Constituinte Chilena, entre perspectivas distintas e até contrárias, a efervescência global passa por um claro questionamento à velha ordem democrática liberal imposta por um mundo ocidentalizado. Em outras palavras, passa pelo questionamento da própria ideia que a palavra “Ocidente” sempre representou, mesmo dentro de seus territórios. Neste cenário, a guerra na Ucrânia é apenas mais um capítulo desta história.

Este enfraquecimento da ordem ocidental, por sua vez, age em duas frentes.

De um lado, os limites artificialmente impostos pelo Ocidente aos não-ocidentais, sejam eles geográficos, econômicos ou culturais, passaram a ser questionados. É tal fraqueza que permite aos russos o questionamento de suas fronteiras impostas ao fim da URSS. A mesma que permite aos chineses contestar seus antigos limites impostos pelo colonialismo ocidental, como em Taiwan ou Hong Kong. A mesma que também permite a nós, latino-americanos, questionar uma ordem que, ao longo da história, nos impôs ditaduras militares, Bancos Mundiais e FMI’s.

Do outro lado, o que se vê é um expansionismo ocidental que, ao contrário dos anos 1990, demonstra mais desespero do que força. Desde 2008, são mais do que desastrosas as ingerências do Ocidente no mundo não-ocidental. Golpes fracassados na Bolívia e na Venezuela, a imposição de uma cartilha econômica que levou a uma verdadeira revolução no Chile, a abertura ao radicalismo religioso nos países que passaram pela Primavera Árabe e o próprio conflito ucraniano, empurrado pelo expansionismo da OTAN, são sinais disso.

Diante deste cenário global, em que a velha ordem parece caminhar para a morte enquanto uma nova ainda não nasceu, que papel deve assumir a esquerda de forma global?

O questionamento a esta ordem democrática ocidental capenga se dá nas formas mais distintas. Desde movimentos que buscam convergir para um novo sistema realmente democrático, que supere as contradições do capitalismo liberal, até os neofascistas europeus ou o próprio conservador Putin, caminhando em um sentido ainda mais autoritário.

Diante disso, devemos simplesmente deixar que este segundo grupo seja o único a rivalizar com os representantes da velha ordem? De que vale, por exemplo, uma esquerda europeia que prefere morrer abraçada aos princípios falidos da OTAN ao invés de apresentar uma saída para a crise no caminho pela busca de um sistema mais igualitário e democrático? O medo de um mundo não-ocidentalizado fala mais alto para estes?

Já por aqui, na periferia do mundo, o que mais falta para compreendermos que sequer fazemos parte deste mundo que a mídia tanto nos fala? Se até os “brancos” europeus ucranianos estão descobrindo, da pior maneira, desde que a primeira bomba russa explodiu sobre Kiev, que eles próprios não pertencem ao Ocidente, quanto tempo levará para nos darmos conta de que não somos mais do que mera área de domínio desta ordem ocidental?

O quanto realmente vale nos apegarmos a uma ordem que só nos aceita quando subjugados por uma ditadura militar ou quando rezamos pela cartilha econômica de desigualdades do FMI? Quando colocaremos também as nossas cartas neste tabuleiro que parece formar uma nova ordem global? Por que não aproveitamos este momento para colocar em debate ideias de igualdade e participação popular que a própria democracia liberal historicamente nos negou? O quanto vale defender valores que nunca nos beneficiaram como povo?

A ordem democrática ocidental acostumou-se a ser construída sobre contradições e explorações que fingia não ver. Apenas à título de exemplo, vale tocar no pensamento de Achille Mbembe, o qual nos lembra que a democracia liberal do Ocidente fora historicamente construída sobre os horrores do colonialismo racial ao redor do mundo. Com esta velha ordem falsamente democrática ruindo, por que a radicalização da democracia, em seu significado mais puro, não é colocada como uma opção possível?

Sei que este artigo já traz bem mais perguntas do que respostas, mas não poderia encerrar sem deixar um questionamento central: em um mundo em que o Ocidente fosse apenas uma localização geográfica, e não esta ideia hegemonicamente imposta, teríamos mais ou menos chances de construir uma sociedade global mais igualitária, justa e pacífica do que a que vivemos hoje?

1 https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/liberalismo-e-democracia-a-historia-de-um-divorcio/

2 http://www.justificando.com/2017/11/16/por-que-proxima-decada-pode-ver-o-surgimento-de-uma-nova-ordem/

A esquerda na queda da ordem ocidental – Outras Palavras

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