Immanuel Kant – Esclarecimento[1] é a saída do homem da menoridade pela qual é o próprio culpado. Menoridade é a incapacidade de se servir do próprio entendimento sem direção alheia. Essa menoridade é por própria culpa por esta incapacidade, quando sua causa reside na falta, não de entendimento, mas de resolução e coragem em se servir a si mesmo, sem a direção de outra pessoa. Sapere aude![2] Ouse empregar teu próprio entendimento! Eis o lema do Esclarecimento.
É, portanto, difícil para cada homem livrar-se da menoridade que nele se tornou quase uma natureza. Até afeiçoou-se a ela e por ora permanece realmente incapaz de se servir de seu próprio entendimento, pois nunca se deixou que tentasse. Preceitos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos de um uso, antes, de um mau uso racional de seus dons naturais, são as correntes para uma permanente menoridade. Mesmo quem deles se livrasse, faria apenas um salto inseguro sobre o menor fosso, visto não estar habituado a uma liberdade de movimento. Por isso são poucos os que conseguiram, mediante o exercício individual de seu espírito, desembaraçar-se de sua menoridade e, assim, trilhar um caminho seguro.
Que, porém, um público se esclareça[4] é perfeitamente possível; mais que isso, é quase inevitável, se lhe for dada a liberdade. Pois, mesmo dentre os tutores estabelecidos do vulgo, sempre se encontrarão alguns livre pensadores[5], os quais, após terem sacudido de si o jugo da menoridade, difundirão arredor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e a vocação de cada um de pensar por si próprio. Há, nisto, uma peculiaridade: o público, que antes se encontrava submetido por eles a este jugo, em seguida obriga-os a permanecer sob ele, quando incitado por aqueles dentre seus tutores incapazes de todo Esclarecimento. Tão prejudicial é cultivar preconceitos, pois terminam voltando-se contra aqueles que foram seus autores, quer tenham sido eles próprios, quer seus antecessores. Por isso um público pode chegar ao Esclarecimento apenas lentamente. Uma revolução pode, talvez, produzir a queda do despotismo pessoal e da opressão ávida e ambiciosa, mas jamais uma reforma verdadeira do modo de pensar; antes, novos preconceitos servirão, assim como os antigos, como amarras à grande multidão destituída de pensamento.
Para este Esclarecimento, nada é exigido senão liberdade; e, aliás, a mais inofensiva de todas as espécies, a saber, aquela de fazer em todas as circunstâncias uso público da sua razão. Só que ouço clamarem de todos os lados: não raciocinem! O oficial diz: não raciocine, mas exercite! O fiscal diz: não raciocine, mas pague! O sacerdote: não raciocine, mas creia! (Somente um único senhor[6] no mundo diz: raciocine tanto quanto quiser, e sobre o que quiser; mas obedeça!)
Por toda parte, o que se vê é limitação da liberdade. Porém, qual limitação à liberdade é contrária ao Esclarecimento? Qual não o é, sendo-lhe, antes, favorável? – Respondo: o uso público de sua razão deve sempre ser livre, e ele apenas pode difundir o Esclarecimento entre os homens; o uso privado da mesma pode, contudo, ser estreitamente limitado, todavia, sem por isso prejudicar sensivelmente o progresso do Esclarecimento.
Compreendo, porém, sob o uso público de sua própria razão aquele que alguém faz dela como instruído diante do inteiro público do mundo letrado. Denomino uso privado que alguém pode fazer de sua razão em de seu determinado posto ou encargo público confiado. Ora, em alguns ofícios, que concernem ao interesse da coisa pública, um determinado mecanismo faz-se necessário, através do qual alguns membros da república precisam comportar-se de modo puramente passivo, para que, através de uma unanimidade artificial, sejam orientados pelo governo a fins públicos, ou ao menos para impedirem a destruição destes fins. Aqui, evidentemente, não é permitido raciocinar; antes, deve-se obedecer. Porém, tão logo esta parte da máquina se considera como membro de uma inteira república, sim, até mesmo da sociedade civil universal, portanto, na qualidade de alguém instruído, que se dirige por meio de escritos a um público em sentido próprio, pode naturalmente raciocinar, sem que, por isso, prejudique os ofícios a que em parte está ligado como membro passivo.
Dessa forma, seria muito prejudicial, se um oficial, que recebesse alguma ordem de seus superiores, quisesse abertamente raciocinar em serviço sobre a conformidade ou o benefício desse comando; ele deve obedecer. Mas não se pode recusar-lhe devidamente que faça observações sobre os erros no serviço militar e as exponha à apreciação de seu público. O cidadão não pode recusar-se a arcar com os impostos cobrados; uma censura impertinente de tais taxas, na ocasião em que deve pagá-las, pode até mesmo ser punida como um escândalo (que poderia ocasionar insubordinações generalizadas). Apesar disso, o mesmo indivíduo não age contra o dever de um cidadão, quando, na condição de instruído, exprime publicamente seus pensamentos contra a impropriedade ou mesmo injustiça de tais imposições.
Do mesmo modo, um sacerdote está obrigado a professar seu sermão para seus pupilos ou para a congregação conforme o credo da igreja a que serve, pois foi sob essa condição que aí foi admitido. Entretanto, na condição de instruído, possui completa liberdade, antes possui a missão de compartilhar com o público todos os seus pensamentos cuidadosamente refletidos e bem intencionados sobre as imperfeições neste credo e as propostas voltadas para uma melhor orientação da religião e da Igreja. Nisto não há nada que pudesse ser reprovado a sua consciência. Pois o que ele ensina por conta de sua função enquanto dignitário da Igreja, isso ele expõe como algo em vista do que não possui livre poder para ensinar conforme bem entender, mas tem de fazê-lo segundo a instrução e em nome de outro. Dirá: nossa igreja ensina isto e aquilo, e eis os argumentos de que se serve. Em seguida, junto a sua congregação, irá extrair todos os benefícios práticos de preceitos que ele mesmo não subscreveria com inteira convicção; Esses preceitos, porém, que pode empenhar-se em expor, pois não é inteiramente impossível haver alguma verdade envolta neles – desde que, porém, não se depare com nada que colida com sua religião interior. Pois, caso concluísse estar diante de uma contradição deste tipo, não poderia exercer com boa consciência sua função; deveria renunciá-la. Logo, o uso que um ministro encarregado do ensino faz de sua razão junto a sua congregação é tão-somente um uso privado: porque, por maior que possa ser, esta é apenas uma reunião doméstica, em relação à qual ele, enquanto sacerdote, não é livre, nem pode sê-lo, pois se encarrega de uma tarefa alheia. Em contrapartida, enquanto homem instruído que fala por meio de escritos para o público propriamente dito, isto é, o mundo, o eclesiástico usufrui no uso público de sua razão de uma liberdade ilimitada de servir-se de sua própria razão e em seu próprio nome. Pois que os tutores do povo (em coisas espirituais) devam ser eles mesmos também menores é um absurdo, que favorece a perpetuação dos absurdos.
Todavia, não deveria ser justificado a uma sociedade de eclesiásticos, algo como um sínodo, ou uma alta “classe” (como se intitula entre os holandeses), obrigar-se uns aos outros quanto a um credo, de modo a conduzir e perpetuar uma tutoria superior sobre cada um de seus membros e, mediante isso, sobre o povo? Afirmo que isso seja inteiramente impossível. Tal contrato, que seria concluído para afastar definitivamente da humanidade todo novo Esclarecimento, é absolutamente nulo e sem validade. Ainda que fosse homologado pelo poder supremo, pelos parlamentos e pelos mais solenes tratados de paz seria inválido. Uma época não pode conspirar para impor a época seguinte uma situação que torne impossível expandir seus conhecimentos (principalmente conhecimentos tão caros a si), purificar-se dos erros e, de modo geral, avançar no Esclarecimento. Isso seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação originária reside exatamente nesta avanço. Portanto, os descendentes estão completamente justificados a rejeitar aquelas resoluções como absurdas e injuriosas. A medida de tudo o que pode ser decidido como lei para um povo requer a pergunta: pode um povo impor-se tal lei?
Sim, isso seria possível por um período determinado e breve, na expectativa de uma lei melhor, a fim de introduzir uma certa ordem; período em que se deixaria livre cada cidadão, especialmente o sacerdote, na qualidade de homem instruído, para fazer publicamente, isto é, através de escritos, suas considerações sobre as imperfeições da instituição vigente. Entretanto, a ordem estabelecida permaneceria em curso até que a compreensão da natureza dessas questões tivesse se estendido e se consolidado publicamente, a ponto de unificar suas vozes (ainda que não todas) para levar ao trono uma proposta em defesa das congregações que, a partir de um exame aprofundado, concordassem acerca de uma reorientação religiosa, sem, todavia, opor àquelas que se contentassem com o estado prévio das coisas. Porém, é absolutamente ilícito pactuar uma constituição religiosa permanente, que se pretendesse publicamente inquestionável por todos, mesmo durante o curso da vida de um homem. Desse modo, se aniquilaria uma época na marcha da humanidade rumo ao melhor e torná-la estéril, prejudicando sua posteridade.
Na verdade, quanto à sua pessoa um homem pode – mesmo assim, somente por algum tempo – adiar o Esclarecimento quanto ao saber incumbido; mas renunciá-lo, quer quanto à sua pessoa, quer ainda mais quanto à posteridade, implica lesar os veneráveis direitos da humanidade e pô-los abaixo.
Mas o que nem um povo pode decidir sobre si mesmo, menos ainda sobre o povo um monarca pode decidir; pois sua autoridade legislativa consiste exatamente no fato de que ele unifica sua vontade com a inteira vontade do povo. Caso se satisfaça em garantir que qualquer melhoria, presumida ou verdadeira, concorde com a ordem pública, quanto o resto, pode deixar seus súditos fazerem o necessário para a salvação de suas almas. Sua incumbência não é esta, mas sim evitar que os súditos, pela violência, impeçam uns aos outros de trabalhar por sua determinação e promoção segundo todas as suas capacidades. É igualmente prejudicial o envolvimento de sua majestade nisto, quando submete à vigilância de seu governo os escritos por meio dos quais seus súditos procuram purificar suas ideias, quer o faça a partir de sua própria compreensão superior – no que se expõe à objeção: Caesar non est supra grammaticos[7]– quer, e em maior grau, quando rebaixa seu poder supremo, a ponto de sustentar em seu Estado o despotismo espiritual de alguns tiranos sobre o resto de seus súditos.
Se for perguntado: vivemos em uma época esclarecida? A resposta será: não, mas em uma época de Esclarecimento. No atual estado de coisas, falta ainda muito para que os homens, tomados em seu conjunto, estejam em condições, ou possam ter condições, de servir-se de seu próprio entendimento sem a direção alheia de modo seguro e desejável em matéria de religião. Todavia, temos sinais claros que é o momento para eles poderem trabalhar livremente o campo e diminuírem gradativamente os obstáculos do Esclarecimento geral ou da saída da menoridade da qual eles próprios são culpados. Desse ponto de vista, esta época é a época do Esclarecimento, ou o século de Frederico.
Um príncipe — que se desconsidera indigno de afirmar possuir o dever prescrever aos homens nada em matéria de religião, mas de deixá-los em total liberdade, que, assim, recusa lhe associarem o soberbo termo “tolerância”, é ele próprio esclarecido. Desse modo, merece ser louvado pelo mundo e pela posteridade em reconhecimento, como quem primeiro libertou o ser humano da menoridade –- ao menos por parte do governo –- e fez cada um livre para servir-se de sua própria razão em tudo o que concerne à consciência. Sob tal príncipe podem veneráveis eclesiásticos, como funcionários instruídos e sem prejuízo de seus deveres funcionais. submeterem livre e publicamente à prova seus julgamentos e reflexões em tópicos distantes do credo estabelecido. Isso vale com mais forte razão para quem não estiver limitado por um dever funcional. Este espírito de liberdade expande-se mesmo ao exterior, onde se tem de enfrentar obstáculos externos de um Estado que não se compreende. Pois a esse último há um exemplo de que, em regime de liberdade, não há o mínimo a temer quanto à paz pública e a unidade da república. Gradativamente, os homens se desvencilham de sua brutalidade; basta parar o ardil de mantê-los intencionalmente nela.
Tratei do principal ponto do Esclarecimento, isto é, da saída dos homens da menoridade da qual são os próprios culpados, principalmente em matéria de religião; pois no que concerne às artes e ciências nossos senhores não possuem interesse de exercer a tutela sobre seus súditos.
Ademais, aquela menoridade é a mais prejudicial dentre todas, como também a mais desonrosa. Mas o modo de pensar de um chefe de Estado, que favorece o Esclarecimento em matéria religiosa vai além e percebe que, mesmo em relação a sua legislação, não há perigo em admitir que seus súditos façam uso público de sua própria razão e que apresentem ao mundo seus pensamentos sobre como tornar melhor sua redação, mesmo se isso for acompanhado de uma crítica franca da legislação estabelecida; temos disso um exemplo ilustre, que faz com que nenhum monarca preceda aquele que reverenciamos.
Entretanto, somente aquele que auto-esclarecido não teme as sombras, mas possui à disposição um numeroso e bem disciplinado exército para assegurar a ordem pública, pode dizer o que um estado não monárquico não pode se permitir: raciocine quanto quiser e sobre o que quiser; apenas obedeça!
Aqui as coisas humanas demonstram um estranho e inesperado curso. Do mesmo modo, quando consideramos esse curso em larga escala, quase tudo nele é paradoxal. Um grau maior de liberdade civil parece vantajoso à liberdade de espírito do povo, pondo, entretanto, barreiras [8] intransponíveis. De outro lado, um grau menor dessa liberdade proporciona o espaço para o povo expandir conforme suas capacidades. Portanto, se a natureza desenvolveu sob este duro invólucro a semente de que cuida tão delicadamente, isto é, o pendor e a vocação ao pensamento livre, este gradativamente reincide sobre o modo de sentir do povo (o que pouco a pouco torna este mais apto a agir livremente) e finalmente inclusive sobre os princípios do governo, o qual considere propício a si mesmo tratar o homem, que é mais que uma máquina, conforme sua dignidade.
Königsberg, Prússia
30 de setembro de 1784
[1] Ou Iluminismo.
[2] Ouse a saber!
[3] Maioridade por meio da natureza.
[4] Aufkläre.
[5] Selbstdenkende.
[6] Frederico, o Grande, da Prússia.
[7] César não está acima dos gramáticos.
[8] Schranken
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