Brian O’Connor – Chris, profissional da área de tecnologia da informação residente nos Estados Unidos, afirma que sofreu terríveis condições de trabalho nos seus últimos empregos.
Ele conta que dois empregadores diferentes – um que não pagava licenças médicas e o outro que cobria apenas uma semana de ausência – forçaram-no a voltar ao trabalho mesmo estando doente. Em outros empregos com forte sobrecarga de trabalho, ele afirma que acabou precisando cuidar das próprias feridas.
Mas um emprego em assistência ao cliente foi além da conta. Seu trabalho, que pagava menos de US$ 13 (R$ 70) por hora, exigia que ele verificasse se os dependentes das pessoas tinham direito a seguro-saúde. E ele conta que seria demitido se fornecesse aos clientes certas informações úteis que ele não estava autorizado a revelar, como o prazo em que eles deveriam enviar a documentação.
“Havia pessoas literalmente implorando por suas vidas ao telefone e eu não podia fazer nada”, ele conta. “Isso me perturbou tanto que percebi que absolutamente nada nesse sistema funciona… é pura falta de empatia e gentileza humana. Não sei como isso aconteceu.”
Após dois anos de pandemia, os trabalhadores de todo o mundo estão cansados. Problemas de saúde mental e burnout são comuns, particularmente entre os trabalhadores essenciais e com salários mais baixos. Esse período prolongado de incertezas fez com que muitos deles repensassem a forma como seus empregadores tornavam as coisas piores – e o número de trabalhadores deixando seus empregos em busca de melhores opções vem batendo recordes em muitos países.
Mas algumas pessoas estão indo além, perguntando-se se existe algum propósito para o seu trabalho, ou para o próprio sistema econômico. Essas pessoas são parte do movimento “antitrabalho”, que busca romper com a ordem econômica que sustenta o ambiente de trabalho moderno.
O antitrabalho baseia-se nas críticas econômicas anarquistas e socialistas e argumenta que a maior parte dos empregos de hoje em dia não são necessários; ao contrário, eles impõem a escravidão do salário e impedem os trabalhadores de receberem o total valor da sua produção.
Mas isso não significa que o trabalho deva deixar de existir. Os apoiadores do movimento antitrabalho acreditam que as pessoas deveriam organizar-se e trabalhar apenas o necessário, em vez de trabalhar por longas horas para gerar excesso de bens ou capital.
Alguns anos atrás, o antitrabalho era uma ideia marginal, radical, mas a encarnação pandêmica desse movimento cresceu rapidamente e tornou-se mais conhecida fora dos círculos políticos.
Ela está baseada na comunidade r/antiwork, em inglês, do agregador de conteúdo e rede social Reddit. A comunidade ainda está fundamentada na ação direta, mas, à medida que sua popularidade foi crescendo, seu foco foi suavizado e ampliado para formar um diálogo mais amplo sobre as condições de trabalho.
Atualmente, a comunidade contém uma mescla de narrativas pessoais sobre pedidos de demissão, criação de mudanças em locais de trabalho hostis, defesa de greves trabalhistas em andamento, organização trabalhista e formas que as pessoas podem buscar para advogar em causa própria.
A comunidade cresceu rapidamente. Em um momento em que a insatisfação dos trabalhadores e os direitos trabalhistas são intensamente analisados, qual o significado do crescente interesse por esse movimento? E ele poderá ter um papel a desempenhar na efetivação de mudanças?
“Rejeição visceral do trabalho”?
Chris ajuda a moderar a comunidade r/antiwork, que reúne atualmente 1,7 milhão de assinantes (eram apenas 100 mil até março de 2020). “Temos um aumento constante do número de membros, entre 20 mil e 60 mil seguidores por semana. Temos enorme crescimento e muitos membros engajados. Recebemos centenas de postagens e milhares de comentários todos os dias”, acrescenta Doreen Ford, que também atua com moderadora da comunidade.
O nome e a filosofia da comunidade vêm de diversas fontes. Ford afirma que uma delas é Bob Black, filósofo anarquista cujo ensaio de 1985 “The Abolition of Work” (A abolição do trabalho, em tradução livre) foi baseado em pensamentos anteriores sobre o trabalho – uma história que Black afirma vir desde os filósofos Platão e Xenofonte, na Grécia antiga.
“Muitos trabalhadores estão saturados com o trabalho… Pode haver algum movimento rumo a uma rejeição consciente do trabalho, não apenas visceral”, escreve Black, sugerindo que as pessoas façam apenas o trabalho necessário e dediquem o restante do seu tempo para a família e as paixões pessoais.
As pessoas que acreditam no antitrabalho não são necessariamente contra todas as formas de trabalho. Seu sentimento global é de hostilidade contra “trabalhos que sejam estruturados com base no capitalismo e no Estado”, segundo a seção de perguntas frequentes (FAQ, na sigla em inglês) da comunidade: “o objetivo de r/antiwork é começar a conversar sobre a problematização do trabalho como o conhecemos hoje”.
Embora esses ideais sigam sendo fundamentais para o movimento, o foco da comunidade se ampliou para englobar direitos trabalhistas mais genéricos. Os usuários compartilham histórias de abuso por parte dos empregadores, pedem conselhos sobre como negociar melhores salários, contribuem com memes ou postam notícias sobre greves trabalhistas em andamento.
Os participantes também fornecem dicas aos usuários sobre como apoiar movimentos grevistas. Em dezembro de 2021, os membros da comunidade apoiaram os esforços para inundar o portal de vagas da Kellogg’s quando a companhia rompeu as negociações com trabalhadores sindicalizados em greve e afirmou que contrataria novos funcionários não sindicalizados. Embora não esteja clara a importância da influência direta dos membros da comunidade r/antiwork sobre as ações da empresa, a Kellogg’s e o sindicato chegaram a um acordo no final daquele mês.
A comunidade também fornece links para leituras e podcasts sobre o movimento antitrabalho fora do Reddit. A maior parte das postagens vem de trabalhadores norte-americanos de todos os gêneros e profissões, mas há também participantes internacionais.
“Interrupção do trabalho como o conhecemos”
O movimento antitrabalho não é novo, mas recentemente voltou a chamar a atenção.
“Com a covid, houve uma interrupção do trabalho como o conhecemos”, afirma Tom Juravich, professor de estudos trabalhistas da Universidade de Massachusetts em Amherst, nos Estados Unidos. “Em momentos como esse, as pessoas têm tempo para refletir. O trabalho se degradou para muitas pessoas. Nossas estruturas de autoridade tornaram-se mais draconianas e controladoras do que nunca. As pessoas realmente sentiram isso de uma nova maneira.”
Para os trabalhadores braçais, a covid-19 expôs brutalmente as profundas desigualdades existentes: baixos salários, falta de licença médica paga em alguns países e necessidade de frequentar ambientes de atendimento a clientes com medidas inadequadas de segurança, que deixam as pessoas vulneráveis para contrair covid no local de trabalho.
Enquanto isso, trabalhadores de todos os níveis salariais vêm lutando para conciliar as pressões do trabalho com as responsabilidades familiares causadas pelo fechamento das escolas, gerando maior burnout e problemas de saúde mental – e, para alguns, até questões existenciais.
Mas Kate Bronfenbrenner, diretora de pesquisas sobre educação trabalhista e professora sênior da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, observa que, embora a covid-19 tenha sido um catalisador importante, o movimento antitrabalho atual possui raízes mais profundas que vêm de antes dos últimos dois anos.
“Os trabalhadores vinham mantendo um limite espantoso de tolerância a abusos praticados pelos empregadores contra eles”, afirma Bronfenbrenner. “Mas, quando esse abuso avançou ao ponto de arriscar suas vidas, esse limite foi ultrapassado; no contexto da covid-19, os empregadores solicitavam a eles que trabalhassem mais do que nunca enquanto tinham lucros enormes.”
É claro que nem todos os trabalhadores desiludidos adotarão o antitrabalho. Muitos estão claramente procurando novos empregos, em busca de garantir melhores condições. Outros estão se demitindo e decidiram trabalhar por conta própria. Mas alguns estão tentando defender mudanças.
“Nem todas as pessoas estão se demitindo”, afirma Bronfenbrenner. “Alguns estão dizendo que vão consertar as coisas se organizando, promovendo greves ou resistindo.”
“Parece um grande momento para nós”
Ainda é muito cedo para dizer se essa comunidade online poderá causar impactos mensuráveis sobre os direitos trabalhistas, seja com discussões mais acaloradas e apaixonadas ou com outras rupturas. Mudanças fundamentais no trabalho da noite para o dia são improváveis, mas estamos vivenciando uma reorganização sem precedentes, em termos de como os trabalhadores fazem seu trabalho e o tipo de condições que eles esperam receber dos empregadores.
Muitos trabalhadores claramente estão no seu limite – e já existem sinais de que os empregadores, temendo atritos generalizados com seus funcionários, estão começando a reagir com melhorias crescentes. Se o antitrabalho e seus primos ideológicos continuarem a ganhar simpatizantes, isso pode fazer com que os empregadores – e talvez até os políticos – parem um pouco mais para pensar.
Ao mesmo tempo, é importante observar como o movimento antitrabalho se desenvolveu no passado. Um paralelo são os “longos anos 70” – o período entre meados da década de 1960 e o início dos anos 1980 -, um período de inflação e recessão econômica nos Estados Unidos, que levou muitos líderes trabalhistas (que, em muitos casos, haviam entrado em greve sem aviso prévio) a abandonar seus empregos e reivindicar mais do que apenas aumentos salariais dos empregadores. Suas exigências também incluíam melhores condições de trabalho e mudanças na liderança dos sindicatos.
Mas esse movimento não reuniu a força necessária. Falta de energia e aumento do desemprego enfraqueceram os esforços para alterar radicalmente as condições de trabalho, especialmente quando os empregadores pediram maiores concessões aos sindicatos para compensar a perda de lucros em meio a uma enorme recessão.
O poder do trabalho desvaneceu-se enquanto “o medo de perder a segurança no trabalho” prejudicava o movimento na época, afirma Leon Fink, professor de história da Universidade de Illinois, em Chicago, nos Estados Unidos.
Fink acrescenta que mudanças econômicas e o declínio da economia acabaram por destruir a influência dos trabalhadores para sustentar mudanças de longo prazo. De forma similar, condições econômicas futuras e a evolução das relações de poder no ambiente de trabalho acabarão por afetar o direcionamento do movimento antitrabalho atual.
Mas os movimentos trabalhistas do passado indicam que momentos de oportunidade podem gerar alguma mudança, mesmo que seja gradual ou por curto período. “Acho que existe uma possibilidade real de alguma movimentação” com o movimento antitrabalho atual, segundo Juravich. Ele relembra as implicações do movimento Occupy Wall Street em 2011, que “continua a reverberar em todos os outros movimentos populares”.
Ford é otimista: “eles estão iniciando muitas discussões. Parece um grande momento para nós.” Já Chris considera o movimento antitrabalho como uma pequena parte do que ele espera que venha a se tornar um esforço maior para destruir totalmente a estrutura do trabalho – ainda que ele não espere ver isso acontecer.
“Espero poder facilitar [esse processo] para as gerações futuras”, afirma ele.
Nota: pouco depois da publicação desta reportagem em 26 de janeiro de 2022, a comunidade r/antiwork tornou-se um grupo privado, devido a comentários publicados no Reddit. O texto da reportagem foi preparado antes dessa mudança.
Fonte da matéria: EUA: movimento antitrabalho renasce na pandemia – Outras Palavras – https://outraspalavras.net/outrasmidias/eua-movimento-antitrabalho-renasce-na-pandemia/
Deixe uma resposta