Maurício Thuswohl – Para a economista Laura Tavares Soares, aumento da idade mínima para aposentadoria não será apenas injusto para quem contribui desde adolescente. Trará consequências sociais dramáticas
Laura: nossa proteção previdenciária representa maior grau de formalização do emprego e, naturalmente, da cidadania
Laura Tavares Soares faz parte de um grupo de economistas que enviou, em abril, uma carta ao Supremo Tribunal Federal pedindo empenho contra a tentativa de golpe no Brasil. Além de condenar a ruptura com a democracia traduzida no afastamento da presidenta Dilma Rousseff, ela lamenta que o governo interino de Michel Temer, qualificado como “usurpador” e “ilegítimo”, esteja tentando impor “políticas regressivas” no que diz respeito às conquistas dos trabalhadores e da população de baixa renda.
Especialista em estudos sobre Previdência Social e desigualdade social, professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora investigadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), Laura afirma que uma eventual desvinculação dos benefícios da Previdência, sobretudo as aposentadorias, do salário mínimo, é “criminosa”. E lembra que a aposentadoria inserida na política de valorização do mínimo sustenta a maioria das famílias em mais de 60% dos pequenos municípios.
Como pesquisadora e intelectual, Laura deu importante contribuição à elaboração da Constituição de 1988, quando atuou na equipe de formuladores dos artigos relativos à Seguridade Social. Ela condena a proposta de aumento da idade mínima de aposentadoria para 65 anos, ou mais, e diz que “muitos brasileiros e brasileiras morrerão antes”.
A economista ressalta que os trabalhadores de menor renda entram mais cedo no mercado e diz que ignorar a diferença de expectativa de vida entre as classes sociais significa agravar as desigualdades, inclusive no que diz respeito a condições de saúde e de educação. Nas ideias defendidas pelo governo interino, perdem, e muito, os mais pobres.
Não me venham com argumento demográfico. Se nosso jovens estiverem empregados, darão conta de manter a solidariedade entre gerações, o regime de repartição, por um bom tempo
A economia voltou a rezar pela cartilha do neoliberalismo como nos tempos de FHC?
Ah, com certeza. É assustador que, em tão pouco tempo, o governo provisório e usurpador de Temer esteja implementando e propondo políticas regressivas sob todos os pontos de vista. Sob o econômico, aprofundará mais ainda uma crise que assume contornos mundiais, uma crise à qual o Brasil não está imune. No entanto, a crise não vem sozinha. Ela é amplificada e agravada, em boa medida, por políticas que denominávamos de ajuste neoliberal. Sobretudo na adoção de medidas que paralisam os investimentos produtivos, deixam de criar empregos e, o que é pior, criam um desemprego que, no ritmo que vai, chegará aos patamares críticos que tivemos nos anos 90.
Se lembrarmos que chegamos a uma situação denominada de “pleno emprego” (em 2014), trata-se de um brutal retrocesso. Eu estudo a série histórica da Previdência desde os anos 70, e pela primeira vez a proporção de contribuintes, ou seja, de empregados formais, supera o patamar de 60%, quando historicamente chegava, no máximo, a 40%. Os dados mostram como o crescimento da ocupação em todos os períodos supera o aumento da população economicamente ativa. Essa diferença corresponde exatamente à diminuição do desemprego. Por sua vez, o número de pessoas filiadas e contribuindo para a Previdência superou em muito, em todos os períodos, o crescimento dos postos de trabalho. Essa maior proteção previdenciária representa um maior grau de formalização do emprego e, naturalmente, da cidadania.
O atual cenário representa ameaça a essas conquistas obtidas na última década?
O neoliberalismo é muito mais que um conjunto de medidas econômicas. É uma ideologia que continua forte e traz propostas que modificaram e estão modificando o modo como as políticas sociais são implementadas. Passa por uma visão de que o Estado deve apenas atender aos “mais pobres”. Na área social, é claro. Porque na área econômica, o Estado sempre atendeu aos interesses do capital hegemônico – hoje o capital financeiro – e das classes dominantes remanescentes que detêm ainda o poder sobre a propriedade da terra, os grandes latifundiários. As classes dominantes não têm nenhum pudor em disputar e desfrutar do Estado. Bem como a classe média brasileira, que possui uma renda e um estilo de vida superior às demais classes médias latino-americanas. Ela desfruta da isenção do Imposto de Renda nos gastos, não apenas com educação privada e com saúde privada, e promove uma enorme renúncia tributária ao descontar integralmente os planos de saúde e os fundos de previdência privados. Para estes, não há nenhum problema que o Estado dê uma mãozinha na chamada reserva de mercado para o setor privado em duas áreas sensíveis e historicamente subfinanciadas, como a saúde e a educação.
Eu fiz Economia no doutorado exatamente para me contrapor aos economistas. Outro dia, preparando aula, descobri que a economista inglesa Joan Robinson disse que estudou Economia para não ser enganada por nenhum economista. Estou em boa companhia! Sempre defendi a política social como indutora de um novo padrão de desenvolvimento, ainda que capitalista, menos excludente mas, sobretudo, mais igualitário e garantidor de direitos de cidadania, palavras que andam meio esquecidas desde a Constituição de 1988.
Que impacto haveria sobre os trabalhadores a reforma da Previdência pretendida pelo governo interino?
Vou me referir a duas medidas que considero as que causariam impactos sociais inimagináveis. A primeira é a criminosa desvinculação do salário mínimo dos benefícios da Previdência Social, especialmente as aposentadorias. Aliás, a Previdência Social hoje em dia deveria ser chamada de Previdência Fazendária. Nem nos piores casos de neoliberalismo que estudei na América Latina, nunca vi a Previdência ir para o Ministério da Fazenda tão explicitamente. Hoje, a aposentadoria no valor de um salário mínimo, acompanhada de uma valorização sem precedentes, acima da inflação, sustenta a maioria das famílias residentes em mais de 60% dos pequenos municípios, e alguns médios. Se não acreditarem nos dados oficiais dos governos eleitos Lula e Dilma, consultem os dados do Dieese ou da Anfip (associação de auditores da Previdência). Até na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE se pode verificar o aumento da importância da Previdência, em muitos casos logo abaixo da renda do trabalho, quando ele existe. Na área rural, então, considero uma verdadeira revolução social que um casal que se aposenta pelo trabalho, ou seja, que tem o direito de receber uma aposentadoria digna, receba hoje R$ 1.736. Isso, para a área rural, é uma renda considerável, muitas vezes maior que o próprio trabalho rural. Detalhe: as mulheres passaram a receber igual aos homens desde a redemocratização, conquista que foi fruto de uma longa luta. Para mim, é a mais redistributiva política social universal que temos, única na América Latina.
Uma auxiliar de enfermagem que comece a trabalhar aos 20 anos, aos 65 está um bagaço ou já não existe mais. Desculpem o realismo
É uma questão antiga…
Aqui vale fazer uma pausa e afirmar, com veemência, que a Previdência rural não é assistencial e sim vinculada ao trabalho! Essa é uma briga antiga dos trabalhadores rurais e nossa, quando enfrentávamos os parlamentares em 1998 e em 2003 nos debates sobre a reforma da Previdência. Sem nenhum demérito à palavra assistencial, pelo contrário. O BPC (Benefício de Prestação Continuada), este sim um benefício assistencial destinado aos idosos urbanos e a pessoas com deficiência de baixa renda, já que a Previdência urbana ainda não é universal, possui uma enorme relevância social. Destaco isso porque a Previdência rural foi e continua sendo alvo dos defensores da reforma da Previdência neoliberal, que quer retirar a população rural do sistema da seguridade. Com isso se perde, no mínimo, a vinculação dos atuais benefícios rurais com o salário mínimo, por exemplo, caindo a patamares ínfimos, como era no período da ditadura. Em outubro de 2014, somente o INSS pagava por mês mais de 32 milhões de benefícios, transferindo renda e movimentando a economia nos municípios. A maior parte dos benefícios (71,2%) foi paga à clientela urbana. Portanto, 28,8% foi pago aos trabalhadores rurais. São milhões de rurais recebendo um salário mínimo na sua velhice ou invalidez.
É verdade que a Previdência Social gasta mais com os ricos do que com os pobres? Existe algum retorno social com o montante que se gasta hoje com Previdência?
Fiz em 2012 uma apresentação exatamente com o objetivo de demonstrar o retorno social da despesa da Previdência Social com benefícios. E aqui entra a ideia da Constituição de 1988 de que a Previdência, tal como a saúde e a assistência social, pertence à seguridade social. A maioria das pessoas não sabe nem o que é isso. Sempre recomendo para meus alunos, como tarefa de cidadania, a leitura, pelo menos, do capítulo da Seguridade Social na Constituição.
Por outro lado, a grande maioria dos benefícios pagos hoje é de um salário mínimo. Eu não sei ao certo o dado agora, mas é cerca de 80%. O último dado que calculei e que tenho disponível aqui é que as despesas com benefícios, desde 2006, ultrapassam a metade do valor arrecadado pelo governo em impostos e contribuições sociais e econômicas, quando deduzidas as transferências constitucionais a estados, Distrito Federal e municípios, restituições e incentivos fiscais. Em 2013 essa proporção chegou a 54,3%. Isso significa que pouco mais da metade da parcela dos impostos e contribuições que fica no orçamento federal retornou para os segmentos sociais mais necessitados. Além do grande significado social, essas transferências têm um papel econômico importante, pois atingem um quantitativo importante de famílias, distribuídas regionalmente e com uma grande capilaridade.
Da mesma forma, os Benefícios de Prestação Continuada, da Loas (Lei Orgânica da Assistência Social), custam o equivalente a 0,6% do PIB, e cada R$ 1 pago gera R$ 1,19 no PIB. Cada R$ 1 pago de seguro-desemprego, cujos gastos alcançam também 0,6% do PIB, rende R$ 1,09 no PIB. O conjunto dos benefícios da Seguridade Social tem a capacidade de diminuir a desigualdade e a pobreza, com grande poder multiplicador na economia. Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgado em 2013 reafirma que, além da Previdência, as despesas com o Bolsa Família representam apenas 0,4% do PIB (Produto Interno Bruto), mas cada real gasto com o programa adiciona R$ 1,78 no PIB.
As despesas com políticas sociais então, retornam na forma de dinamização da economia…
Na economia, o impacto multiplicador tem outra vantagem. Ao elevar a produção e a circulação de bens e serviços, obviamente cresce a arrecadação. Portanto, parcela considerável dos recursos públicos aplicados retorna. Quem faz contas da Previdência de modo meramente atuarial olha apenas receitas e despesas, ignorando, além da cidadania e o direito à previdência, as demais contas de arrecadação envolvidas.
A diversificação de fontes de financiamento da seguridade social é um princípio pioneiro instituído na Constituição de 1988 que revolucionou o financiamento dessas três áreas: Previdência, Saúde e Assistência Social. Por esse princípio, todas essas áreas deveriam ser financiadas pelo orçamento da seguridade social. Infelizmente, a partir do desmonte dos anos 90, as fontes setoriais ficaram separadas, o que, a meu ver, repõe eternamente o debate do subfinanciamento da Saúde e da Assistência Social. A sacada genial introduzida na Constituição, e batalhada por muitos técnicos que já trabalhavam na Previdência na época do ministro Waldir Pires (1985-1986) e pelos movimentos sociais, é que as contribuições não deveriam apenas incidir sobre o trabalho. Com a crise do mundo do trabalho, nenhum país do mundo sustenta seu sistema de proteção social com folha de salários! Dessa forma, criamos duas contribuições, que incidissem sobre o capital, que são as atuais CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). Essas contribuições sempre cresceram acima do PIB e da arrecadação federal. Como está na moda dizer hoje, são absolutamente sustentáveis. O resultado da seguridade social em 2013, ou seja, o seu superávit, foi de R$ 76,241 bilhões. Com todas as desvinculações e as isenções fiscais às empresas, que diminuíram a receita da Previdência, o superávit ainda foi de R$ 12,626 bilhões.
Não existe isonomia na vida cotidiana das mulheres. Só conheço homem que participa do trabalho doméstico jovem, ilustrado, de classe média e progressista. E olhe lá!
O aumento da idade mínima para a aposentadoria é um “mal necessário“ para garantir a estabilidade do sistema de Previdência?
O problema é que as desigualdades no Brasil ainda são enormes, e elas têm influência direta sobre a expectativa de vida. Calcular uma média em um país como o Brasil é uma medida de alto risco que, no caso da Previdência, trará consequências sociais dramáticas. Aprendi, desde o meu curso de sanitarista da Escola Nacional de Saúde Pública, que expectativa de vida depende das condições de vida e, junto com elas, das condições de saúde. Isso vai mais além da renda. Depende fundamentalmente do acesso aos serviços de saúde, à habitação digna, ao saneamento, às condições de trabalho, entre outras coisas. Se a idade mínima aumentar de forma linear, muitos brasileiros e brasileiras morrerão antes de receber sua aposentadoria.
Até as pedras sabem que os de mais baixa renda têm que entrar mais cedo no mercado de trabalho. E vão ter que esperar a idade mínima muito mais tempo do que aqueles que ingressam mais tarde, como os jovens que têm acesso ao estudo médio e universitário sem precisar trabalhar e que depois ainda podem fazer mestrado, doutorado, cursinho para concurso etc., custeado pelos pais ou pela família. Quase sempre o grupo de baixa renda que tem que trabalhar desde cedo ingressa em trabalhos de pior qualidade, mais precários, com evidentes prejuízos para a sua saúde. E aqui também reside uma diferença perversa: ainda hoje, as mulheres possuem piores condições de trabalho e remuneração. É uma diferença de gênero que persiste no nosso mercado de trabalho, especialmente no mercado privado.
Mas diferenças também existem no setor público. Quando o presidente interino e ilegítimo disse que todos os servidores públicos iriam se aposentar com 70 anos, eu, com apenas 62, quase tive um infarto. Trata-se de um total desconhecimento do que é o setor público neste país e sua também enorme heterogeneidade. Não é a mesma coisa trabalhar em estatais ou no Poder Judiciário, com salários muitíssimo acima da média dos servidores públicos, além de muitos privilégios, do que trabalhar no Executivo, onde, a princípio, somos meros assalariados nos três níveis de governo. Isso acontece especialmente nas áreas de saúde, onde pelo menos dois terços são mulheres que trabalham na enfermagem ou em áreas extremamente exaustivas, e educação, onde a maioria é de professoras primárias ou secundárias. E essas são as áreas majoritárias em mão de obra no setor público. Uma auxiliar de enfermagem que comece a trabalhar aos 20 anos aos 65 está um bagaço ou já não existe mais. Desculpem o realismo.
A mulher pobre é quem mais perde com essa proposta de aumento da idade mínima?
Essa mesma “isonomia” entre homens e mulheres proposta para a idade mínima na Previdência, como já disse, não existe no mercado de trabalho. De novo, a mulher vive mais tempo na média. Mas a mulher de baixa renda sofre, além da discriminação de gênero, a racial. A maioria dos postos precários de trabalho ainda é preenchida por mulheres. Por essas e outras é que afirmo que as mulheres trabalhadoras rurais conseguiram o que muitas que trabalham no meio urbano não conseguiram: uma Previdência universal pelo simples fato de ter trabalhado. Tampouco existe isonomia na vida cotidiana das mulheres, especialmente nas de baixa renda, que não podem pagar domésticas ou diaristas. Só conheço homem que participa do trabalho doméstico jovem, ilustrado, de classe média e progressista. E olhe lá! A inclusão do trabalho doméstico na ampliação da Previdência na chamada “inclusão previdenciária” nunca foi compreendida pelos homens tecnocratas e políticos com quem tínhamos que conversar no Ministério da Previdência e no Congresso.
E ainda falta um componente, que já se encontra muito mais avançado nos países que de fato dispõem de um Estado de bem-estar social, que é a questão do cuidado. E aí, o cuidado com os filhos e com os idosos sobra para as mulheres mesmo. Melhorou a política de creches? Sim. Mas falta muito. E com os idosos, quem não tem dinheiro para cuidadoras – também mulheres – e assim mesmo quem “cuida” das cuidadoras são as mulheres, mesmo de classe média.
E não me venham com o argumento demográfico, pelo menos não no Brasil, onde ainda temos um bônus de jovens que, se estivessem todos, ou a maioria, empregados, dariam perfeitamente conta de manter a solidariedade intergeracional, o regime de repartição, por um bom tempo. E, como já vimos, no caso brasileiro ainda temos muitos recursos que, se não fossem “desviados” para os superávits fiscais, daria conta de sustentar todos os idosos deste país, me arrisco a dizer, de modo universal. Onde todos, como no campo, tivessem pelo menos a garantia de um salário mínimo.
http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/120/muitos-morrerao-antes-3817.html
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