Teoria

O testamento filosófico de György Lukács

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Antonio Rago Filho – Mészáros, certa feita, ao debruçar-se sobre a obra de György Lukács (1885-1971), advertira acerca das falácias engendradas pelas arbitrárias contraposições entre obras de juventude e obras de maturidade de um autor. O caso clássico desse “destino trágico” é a obra de Marx. Sabemos os prejuízos e deformações que foram gerados por essas imputações e a dissecação por meio de “rupturas epistemológicas”. Claro está que podemos detectar momentos de ruptura, o giro radical, o divisor de águas de um autor, com base em sua atividade prática sensível e no conjunto da produção intelectual.

Lukács, no século passado, é outro caso exemplar. De extração social rica e título nobre, desde a juventude se contrapôs ao modo protocolar das elites imperiais, posicionando-se de modo hostil contra a vida burguesa. Seu caminho a Marx e à práxis revolucionária está crivado dessa ética de resistência em busca de uma vida autêntica, contraposta aos valores dominantes, ao inautêntico do gradiente burocrático, às iniquidades do sistema do capital, que o conduziu, estimulado pela Revolução Bolchevique, diretamente à direção do Partido Comunista Húngaro, no ano de 1918.

Lukács foi um dos membros da breve Comuna de Budapeste, de 1919. No exílio, em Viena, safou-se da pena de morte, caso fosse consentido seu repatriamento exigido pelos tiranos da monarquia húngara. Há que registrar também os rigores e sofrimentos a que foi submetido após a Revolução Húngara de 1956 pelos agentes soviéticos e congêneres stalinistas, deportado e confinado num campo de concentração na Romênia.

Em seu exílio moscovita, nos princípios dos anos 1930, mesmo solitário e vigiado, trabalha em parceria com Mikhail Lifschitz no restauro da obra Manuscritos Econômico-filosóficos, de Marx. O impacto dessa obra será decisivo no giro do filósofo húngaro. Ao evocar esse momento fecundo, Lukács, em sua Ontologia, esclarece que, “pela primeira vez na história da filosofia, as categorias econômicas aparecem como as categorias da produção e reprodução da vida humana, tornando assim possível uma descrição ontológica do ser social sobre bases materialistas”. Esse salto, por sua vez, é que permitirá a Lukács abandonar os “exageros idealistas” de História e Consciência de Classe (1923) que exerceram forte influência no marxismo ocidental, que se valeu do critério gnosiológico da “totalidade” correspondente ao ponto de vista revolucionário da classe operária, ao sujeito-objeto idêntico como superação da “alienação”.

Os Prolegômenos
A belíssima edição de Prolegômenos para uma Ontologia do Ser Social, de György Lukács (1885-1971), segue a empreitada da Boitempo Editorial de fornecer novas bases teóricas para o desenvolvimento de um pensamento marxista renovado em nosso país. Com justa razão, Nicolas Tertulian, no posfácio, situa o significado concreto desse autêntico “testamento filosófico” – um prolegomenon – que consumiu as últimas energias de Lukács, ainda ancorado em extrema lucidez revolucionária, mas acometido de moléstia incurável. Segundo o filósofo romeno, Lukács pretendia, “com o texto da grande Ontologia, exprimir com suficiente clareza suas próprias intenções fundamentais. (…) Para expor, em termos mais claros e sintéticos, o seu programa de reconstrução da Ontologia. Concebidos, pois, como introdução ao texto principal da Ontologia, os Prolegômenos representam, de fato, uma vasta conclusão”.

Segundo Lukács, o atributo da objetividade é ineliminável dos seres naturais (orgânicos e inorgânicos) e do ser social em sua historicidade. A história é a história da transformação das categorias. As categorias são formas determinadas dos seres, modos particulares da existência. O trabalho como forma originária do ser social propicia o salto da generidade muda para a generidade humana. A irreversibilidade do processo histórico abre a possibilidade de superação dos estranhamentos que impedem a realização da generidade humana como ser-para-si real da existência humana.

Ao longo de sua vida, estabeleceu um confronto bastante vigoroso contra a hegemonia do neopositivismo, a filosofia avalista do mundo mercantil reificador, do capitalismo manipulatório. Combateu de modo intransigente o taticismo stalinista dos partidos operários. Por essa razão, enfatizava que: “Só o renascimento do marxismo, cujo conteúdo é, em última análise, apenas o socialismo como unidade teórico-prática da integração econômica com a generidade autêntica e, embora paulatinamente, difícil de realizar, pode dar resposta correta a esse complexo de questões”.

Fonte da matéria: O testamento filosófico de György Lukács – Revista Cult. Link: https://revistacult.uol.com.br/home/o-testamento-filosofico-de-gyorgy-lukacs/

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