Carlos Bocuhy – A desertificação é um problema ambiental grave. Afeta 15% das terras cultiváveis do globo terrestre. Mas as mudanças climáticas, que se intensificaram nos últimos anos, estão piorando este cenário. Os processos de savanização da Amazônia e a crise hídrica da região Sudeste do Brasil nos dão uma dimensão do problema e suas implicações.
O planeta apresenta um aquecimento médio de 1,09 grau Celsius. Porém, nas áreas continentais, a temperatura média já atinge muito mais, cerca de 1,7 grau Celsius. O Nordeste brasileiro acumula mais de 2ºC. Gilbués (PI), Irauçuba (CE), Cabrobó (PE) e Seridó (RN), hot spots da desertificação, mergulham agora em cenários sombrios, especialmente diante da falta de expectativa em ações efetivas do governo federal, que não apresenta planos e políticas públicas para prevenir e mitigar os efeitos nocivos das alterações climáticas.
O apelo por imediatas ações governamentais é imprescindível. Está em risco a própria segurança alimentar, a sobrevivência do setor agrícola e a qualidade de vida das comunidades locais.
O Brasil sediou a conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992 (Rio 92), que deu origem aos acordos internacionais sobre Clima, Diversidade Biológica e de Combate à Desertificação. Quase 30 anos depois, estamos mergulhando nos piores temores que levaram à criação dessas convenções.
A humanidade não conseguiu adequar-se aos limites planetários. Os prognósticos e indicadores atuais apresentam quadros alarmantes, especialmente os retratados no AR6 – 6º relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Os biomas Amazônia, Cerrado, Caatinga e Pantanal sofrem a olhos vistos. No Sudeste, os reservatórios de água caminham para uma possibilidade frequente de adentrar em seu volume morto, reserva estratégica cujo consumo apresenta riscos decorrentes da ressolubilização de poluentes presentes nos sedimentos.
A crise hídrica assola São Paulo, Paraná e Minas Gerais, com biomas de cerrado e Mata Atlântica. Os diagnósticos e as soluções apontadas são semelhantes: interromper a degradação provocada por desmatamento, reflorestar, proteger mananciais e áreas de recarga de aquíferos, além de capacitar agricultores para o manejo adequado da água e dos meios agrícolas, evitando a salinização e o esgotamento do solo.
Quando falamos em desertificação estamos falando de água. Não há dúvida de que crises hídricas mais frequentes e intensas provocarão consequências, especialmente conflitos por posse de água. Quando Mikhail Gorbachev enfrentava os prenúncios da dissolução da União Soviética, no final dos anos 80, seus esforços voltaram-se para alertar a humanidade de que a paz global dependia do equilíbrio e possibilidade de acesso aos recursos ambientais, especialmente a água.
Para a realidade brasileira, já se desenham os conflitos institucionais. Todo o sistema hídrico brasileiro é gerenciado pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), cujo principal foco é a geração de energia elétrica. Além disso, a água é tratada como commodity, um recurso natural mensurado por mecanismos econômicos. Daí decorre o próprio nome “recurso” hídrico, que acabou por distanciar-se de sua essência: a água, elemento essencial a todas as espécies vivas.
Empresas privadas têm dificuldades para gerir bens públicos. Sua missão estatutária é primordialmente a lucratividade, e a gestão de bens públicos demanda uma outra lógica de eficiência. Por exemplo, deixar de implementar meios de racionalização para vender água até que se atinja o volume morto dos reservatórios nunca será uma prática de boa gestão pública, que deve ser adequada aos princípios de segurança e sustentabilidade ambiental.
Tendências de monetarização dos recursos naturais essenciais à vida nos leva a reflexões mais profundas. Diante da crise hídrica progressiva que se instala e se intensifica, há uma necessidade da preocupação com a gestão democrática da água. O fato de a água ser um bem público e um elemento essencial à vida traz prerrogativas de essência que, de per si, afastam perspectivas de privatização.
As Nações Unidas reconhecem a água como um direito humano fundamental, especialmente com relação ao mais nobre de seus usos: o consumo humano e dessedentação (tirar a sede) das espécies vivas. Na mesma linha de priorização, o Capítulo de Meio Ambiente da Constituição Federal afirma que a gestão dos bens naturais deve ser participativa. O Acordo de Escazú, que entrou em vigor em 22 de abril, reforça a necessidade de acesso à informação e participação direta da sociedade na gestão dos bens naturais. A água é coberta por um pacto intergeracional, como bem de uso comum do povo, de todos, garantia que se estende para as futuras gerações.
Sob o novo signo da crise hídrica, é preciso rever os critérios de gestão privada, estatal ou semiestatal da água, assim como os mecanismos efetivos de participação social em sua gestão. Á água, gerida democraticamente e para todos, vai muito além das limitações impostas pelos comitês de bacia hidrográfica com prevalência de interesses governamentais, o que também ocorre nos conselhos estaduais de recursos hídricos e de meio ambiente.
A gestão hídrica que se impõe diante das mudanças climáticas exigirá um rearranjo institucional que possa garantir políticas públicas permanentes, eficazes. Será preciso romper o círculo vicioso da má gestão que vem se arrastando há décadas, que não foi capaz de conter desmatamentos, proteger ou recuperar as áreas de mananciais, sem interesse em envolver e empoderar atores sociais que não são meros usuários de um sistema com fins econômicos, mas sim detentores do direito de acesso à água para a manutenção da vida e da qualidade de vida.
Desde Emmanuel Kant, a tradição utopista demonstrava uma sociedade de indivíduos dotados de razão e que compartilham das mesmas necessidades de um meio ambiente saudável. Porém, reconhece Kant que há nos interesses de governos uma oposição a essas aspirações, em constante protecionismo aos elementos interestatais. De fato, há de se pensar em romper com formas de gestão autocrática e enfrentar de forma eficaz a crise hídrica.
O presidente Jair Bolsonaro
No governo de Jair Bolsonaro a participação social foi praticamente extinta ou neutralizada nas esferas federais. Bolsonaro montou um aparato de governo autoritário, inchando as instâncias governamentais com mais de seis mil militares, extinguindo e reduzindo conselhos. A perspectiva de que as instituições federais tenham bons ouvidos para a percepção social na gestão pública da água é simplesmente nula. Então, é de se esperar que o governo priorize o favorecimento de setores que estão imbricados em sua base política, como o agronegócio e o setor industrial. Também tenderá a priorizar a produção de energia em detrimento dos usos mais nobres de abastecimento humano.
A gestão da água demanda governos eficientes e democráticos, voltados a uma boa administração dos ecossistemas hídricos. Uma política eficiente para a proteção da água demanda esforço constante.
No atual caso da região Sudeste, não adianta tapar o sol com a peneira e colocar a culpa em São Pedro: temos décadas de má gestão, que vêm ocorrendo debaixo de constante grita da ciência e da sociedade civil. O governo paulista não tem feito sua lição de casa. Tem sido omisso com a proteção dos ecossistemas produtores. O Sistema Cantareira vem colapsando há mais de uma década sob as vistas grossa dos governos estadual e municipais, em que pese o fato de que dezenas de milhões de pessoas dependem deste complexo hídrico para suprir suas necessidades diárias de abastecimento, manutenção de serviços essenciais e empregos.
O Sistema Cantareira é um gigante com pés de barro. Recebe a cada ano menor umidade via transposição atmosférica da Amazônia pelos rios voadores, cuja eficácia ecossistêmica vem diminuindo. Nasce nos estados de Minas Gerais e São Paulo, abastece a megalópole de São Paulo e seu entorno, seguindo pelo poluído rio Tietê até sua foz no rio Paraná.
De outro lado, os reservatórios Billings e Guarapiranga, assim como reservatórios do Alto Tietê, além dos sistemas produtores periféricos dos quais a Grande São Paulo drena água para sobreviver, vêm apresentando uma progressiva perda na média da produção hídrica anual, com desmatamento em suas cabeceiras, ausência de planos de recuperação florestal, além de serem constantemente atingidos por processos de assoreamento e poluição.
Apesar de a Sabesp tentar demonstrar uma falsa tranquilidade, a situação de hoje é pior do que a que ocorreu na pré-crise hídrica que se iniciou em 2014 – e a tendência é que os episódios futuros venham a apresentar quadros ainda piores. O 6º relatório do IPCC (AR6) relata que eventos extremos de calor, que ocorriam 1 em cada 50 anos, passaram a ser 39 vezes mais frequentes e 39% mais fortes. As secas que ocorriam uma a cada dez anos também passaram a ser 39 vezes mais frequentes. A Terra continuará a aquecer até que as medidas de contenção de gases efeito estufa (GEE) sejam tomadas, ou seja, as condições climáticas tenderão a piorar.
Quais são os rearranjos institucionais de participação social e de gestão estatal para que a sociedade possa enfrentar com eficácia os extremos climáticos? Essa é a grande questão que paira sobre a crise hídrica, diante do prognóstico científico de piora progressiva das condições climáticas, o que exigirá o melhor da sociedade humana para a gestão democrática e eficiente da água, o elemento mais essencial para sua sobrevivência.
Fonte da matéria: Desertificação e crise hídrica põem o Brasil num caminho sombrio – CartaCapital. Link: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/desertificacao-e-crise-hidrica-poem-o-brasil-num-caminho-sombrio/
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